Topo

'Não reconheci o rosto do meu pai': o drama das perdas em hospital de covid

Herculano Barreto Filho

Do UOL, no Rio

20/03/2021 04h00

Tarde de quarta-feira, 17 de março. Um grupo de 15 pessoas enfrentava um calor de 30 ºC enquanto aguardava a liberação de corpos de mortos com suspeita de covid-19 em frente ao Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, em Acari, zona norte do Rio.

"Olá! Tem algum parente da Eliane? Sou o rapaz que vai remover o corpo", disse em voz alta um homem grisalho com a máscara pendurada no queixo. No pescoço, um crachá onde se lia "agente funerário".

O UOL acompanhou o drama de famílias no hospital —que é referência na capital no tratamento de covid— em meio a um cenário de alta de mortes e aumento da ocupação de leitos.

Até as 15h de ontem (19), a taxa de ocupação na cidade do Rio era de 89% dos leitos para covid na rede pública —com 638 pacientes em UTIs e uma fila de 58 pessoas aguardando vaga, segundo o painel Rio Covid-19, da Prefeitura do Rio. Até ontem, a taxa de ocupação da UTI do Ronaldo Gazolla, que conta com 205 vagas, era de 96% —havia apenas nove vagas disponíveis. A taxa de ocupação da unidade, incluindo UTI e enfermaria, era de 82%, com 329 pacientes internados.

Ana Júlia com a mãe Eliane da Silva Santos, 45, que morreu com suspeita de covid no Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, unidade de referência para o novo coronavírus no Rio de Janeiro Imagem: Arquivo pessoal

Em meio à grande quantidade de mortes por covid, houve demora para a liberação dos corpos. Depois de mais de três horas de espera, a família de Eliane da Silva Santos, 45, teve de voltar para casa —o corpo só seria liberado no dia seguinte.

"O hospital demorou muito para liberar. E eles não dão satisfação", reclamou a autônoma Ana Júlia da Silva Santos, 21, filha de Eliane, que morreu na madrugada de terça-feira (16) com pneumonia, insuficiência respiratória e suspeita de covid, segundo o atestado de óbito.

O enterro ocorreu na quinta (18) com caixão fechado em uma cova rasa no Cemitério de Santa Cruz, na zona oeste. Ela era casada e mãe de duas filhas —a caçula tinha apenas nove anos.

Sem o último abraço

O reconhecimento do corpo é um dos momentos mais traumáticos por causa dos protocolos de segurança, que limitam o contato para minimizar o risco de contágio.

"Foi muito impessoal. As pessoas estão sofrendo, sabe? E ninguém parece se importar", desabafou Ana Júlia. "Nem pude chegar perto. Falaram que eu não poderia nem ver. Não posso dizer que enterrei a minha mãe, porque não vi o corpo."

Luto impessoal das famílias

O luto das famílias, impossibilitadas de dar um último abraço, parece ser um roteiro repetido em meio à constante entrada e saída de agentes funerários na unidade.

Mariana com o pai, o aposentado Hélio Lima da Silva, que morreu em decorrência da covid-19 no Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, unidade de referência no Rio de Janeiro para o tratamento do novo coronavírus Imagem: Arquivo pessoal

Não reconheci o rosto do meu pai. Ele estava muito inchado, talvez pela falta de oxigenação. A pior parte da doença é não poder ter contato. Não pude nem abraçar o meu pai pela última vez. Depois, travam o caixão. Até a despedida foi com caixão fechado

Mariana Lima da Silva, filha de Hélio Alves Lima da Silva

"A doença é tão ingrata que meu pai foi enterrado de fralda. Não pode botar roupa, não pode mexer na pessoa. O caixão é lacrado logo após o reconhecimento do corpo", completou.

Mariana com o pai, o aposentado Hélio Lima da Silva Imagem: Arquivo pessoal
O contador aposentado Hélio Alves Lima da Silva, 84, que morava com a esposa no bairro da Abolição, zona norte, morreu na noite de 8 de março no CTI do Hospital Ronaldo Gazolla.

'Ele achava que covid era coisa inventada pela imprensa'

O intervalo entre os primeiros sintomas e a morte de Eliane e Hélio foi de cerca de um mês. No começo de fevereiro, Hélio apenas espirrava. Os outros parentes com quem ele teve contato passaram a apresentar outros sintomas, como dor de garganta, resfriado e dor de cabeça.

O meu pai era aposentado e ainda trabalhava, para complementar a renda. Ele andava de ônibus, pegava trem. Eu falava: 'Pai, se cuida', 'pai, lava as mãos'. Ele achava que covid era coisa inventada pela imprensa

Mariana Lima da Silva, filha de Hélio

Já Eliane quebrou o isolamento para ir a uma festa de aniversário. "Tinha pouca gente, mas ninguém estava usando máscara", conta a filha Ana Júlia.

No começo de fevereiro, ela começou a apresentar um quadro de tosse e febre. Em apenas cinco dias, a situação se agravou —em 19 de fevereiro, foi levada ao Hospital Municipal Rocha Faria, em Campo Grande, zona oeste.

Ela não queria ir para o hospital. Dizia que era só um resfriado. Foi a última vez que vi a minha mãe

Ana Júlia da Silva Santos, 21, filha de Eliane

Dois dias depois, Eliane foi transferida para o CTI do Ronaldo Gazolla.

Agente funerário (de camisa branca e de costas) fala com família de Eliane no Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, unidade de referência para o novo coronavírus no Rio de Janeiro Imagem: Herculano Barreto Filho/UOL

'Ele tomou a vacina. Mas já era tarde'

Com 84 anos, Hélio chegou a tomar a primeira dose do imunizante contra a covid, no dia 15 de fevereiro. Mas não houve tempo para a imunização porque ele já estava infectado pelo vírus.

"Ele tomou a vacina. Mas já era tarde. Logo depois, piorou e precisou ser hospitalizado. A doença não veio com cara de covid. Veio de maneira silenciosa, com cara de resfriado", disse a filha.

Três dias depois da vacina, Hélio foi levado pela filha à UPA (Unidade de Pronto-Atendimento) de Engenho de Dentro, na zona norte, com tosse seca e sintomas de resfriado. Teve alta, mas precisou voltar no dia seguinte, já com baixa oxigenação no sangue. Em seguida, foi transferido para o Hospital Ronaldo Gazolla, onde acabou sendo intubado.

'Muita gente morrendo ao mesmo tempo'

Às 21h24 de 8 de março, Mariana recebeu a ligação que tanto temia, solicitando que ela comparecesse ao Hospital Ronaldo Gazolla no dia seguinte. Lá, sentiu o impacto de ter contato direto com a face mais assustadora do vírus.

Eu presenciei entradas e saídas de carro de funerária como se fosse linha de produção de sanduíche nessas lojas de fast-food. Tá morrendo muita gente

"Era muita gente ficando doente e morrendo ao mesmo tempo. Era como se a equipe não estivesse preparada para uma situação tão grave", lembra. "Fui reconhecer o corpo do meu pai em uma sala no subsolo do hospital, onde fica a garagem. Reservaram ali porque não tinha lugar para o corpo devido à quantidade de pessoas em óbito."

O que diz a Secretaria de Saúde

Questionada pelo UOL sobre o episódio envolvendo a liberação do corpo no subsolo, a SMS (Secretaria Municipal de Saúde) explicou que há área no local para o atendimento das famílias e reconhecimento dos corpos, "devidamente acondicionados na câmara fria até a retirada pela funerária".

Sobre a demora para a liberação dos corpos, a SMS disse ser necessária a identificação do paciente para a devida apuração. "No geral, os corpos são liberados após o reconhecimento pelo familiar e a entrega do documento de identidade do paciente, para que a Declaração de Óbito (DO) possa ser emitida pelo médico e entregue à família (...). Após a entrega da Declaração de Óbito, cabe à família resolver as questões com o cartório e a funerária para a retirada do corpo", explicou.

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

'Não reconheci o rosto do meu pai': o drama das perdas em hospital de covid - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade


Coronavírus