Diabetes, câncer e mais: Brasil vive apagão de dados sobre doenças crônicas
Resumo da notícia
- Além de não ter Censo em 2021, país não contará com estudo da Vigitel, importante raio-x da saúde da população
- Situação é "tragédia", definem pesquisadores
- Levantamento era feito anualmente desde 2006
O Brasil não ficará "só" sem o Censo neste ano. Também a pesquisa anual sobre doenças crônicas aumenta o apagão de dados no país.
O levantamento da Vigitel (Vigilância de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico) é conduzido pelo Ministério da Saúde desde 2006 e era feito —até agora— todos os anos.
A pesquisa integra o sistema de vigilância de fatores de risco para doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), ao lado de dois outros inquéritos.
Realizada através de ligações para telefones residenciais das capitais de todos os estados, é uma importante base de dados para acompanhar a saúde da população e desenvolver políticas públicas na área.
Entre as enfermidades monitoradas estão diabetes, câncer, doenças respiratórias crônicas e doenças cardiovasculares, enquanto os fatores de risco incluem tabagismo, alimentação não saudável, inatividade física e consumo de bebidas alcoólicas.
"Se você vê, por exemplo, um aumento no número de fumantes, você aumenta as políticas públicas para combater o tabagismo; se você começa a ver um aumento no consumo de alimentos ultraprocessados, você sabe que é para esse lado que tem que direcionar", explica Renata Levy, pesquisadora científica do Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) e do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP (Nupens).
Mas o monitoramento está parado desde maio de 2020 e não será concluído neste ano. A razão é a não renovação do contrato do qual a pesquisa dependia, afirma Rafael Claro, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) que tem prestado auxílio técnico ao estudo desde 2003.
"A pesquisa tem sido realizada em uma joint venture entre três partes: um grupo de técnicos do Ministério de Saúde, uma empresa contratada para a coleta de dados e um grupo de universitários que fornecem apoio técnico", explica.
Ele detalha que os contratos com a empresa são anuais e renováveis por um período médio de até cinco anos. Geralmente, por volta de outubro há uma reunião para definir os rumos do inquérito no ano seguinte.
Quanto essa reunião ocorreu em 2019, já se sabia que o contrato iria expirar em maio do ano seguinte. Foram então propostos dois planos. O primeiro era seguir com a operação normal e começar com a coleta nas capitais o quanto antes. O segundo era fazer uma nova licitação para expandir o sistema da Vigitel.
A gente ia começar a fazer uma operação ligando também para celulares e para telefones não apenas das capitais, tendo assim um sistema mais representativo dos estados.
Rafael Claro, professor da UFMG
Foi elaborado um termo de referência, mas, segundo conta Claro, houve "dificuldades" no ministério e o preço estabelecido para o contrato foi "baixíssimo", o que fez com que não fosse aceito.
Ausência, silêncio e ocultação de dados
Sem essa questão resolvida, a coleta começou em janeiro de 2020. Em março, veio a pandemia. A UFMG propôs, então, para a empresa um módulo para que a Vigitel também coletasse dados sobre a covid-19. A proposta aprovada foi um inquérito paralelo focado especificamente em coronavírus.
A investigação estava composta de quatro blocos. O primeiro, de perguntas sobre medidas de proteção: se o entrevistado lavava as mãos, se tinha higiene respiratória, se estava saindo de casa.
O segundo bloco focava em uma dessas medidas de proteção e procurava conseguir informações mais detalhadas sobre como, quando e com que frequência ela estava sendo adotada. A medida em foco poderia mudar de acordo com as necessidades e prioridades do momento.
Em seguida, vinha um bloco direcionado à comunicação. Ali se perguntava onde as pessoas estavam buscando informações sobre a covid e quais eram as principais fontes de informações (rádio, TV, internet etc.).
Por fim, foi feito um bloco com questões sobre doenças crônicas e fatores de vulnerabilidade, como acesso a serviços de saúde e posse de planos de saúde.
O Vigitel continuou com a pesquisa habitual e o inquérito sobre a pandemia até 5 de maio de 2020, quando acabou o contrato e a coleta de dados foi interrompida.
"O tempo foi passando, a pandemia foi piorando e isso foi deixado para trás", diz Claro. O ano chegou ao fim, nada foi acordado para 2021 e até o momento não há sinais de que isso vá acontecer.
Mas, além dessa ausência de perspectivas para que a Vigitel seja retomada, o Ministério da Saúde ainda não liberou os dados coletados no ano passado. Em um processo normal, diz Claro, a coleta termina em 15 de dezembro e em janeiro o relatório está pronto.
"O ministério optou por não publicá-los", afirma Renata Levy. "Isso eu acho mais grave ainda, porque não é nem uma questão orçamentária. Já foi feita, ela já está pronta."
A pesquisadora também afirma que algumas instituições estão requisitando os dados através da Lei de Acesso à Informação para torná-los públicos, sem sucesso por enquanto.
Embora a coleta tenha sido incompleta e os dados só se refiram ao período até maio, eles são a única fonte de dados federal e oficial sobre doenças crônicas e fatores de risco.
Covid-19 e doenças crônicas
A pandemia torna essas informações ainda mais urgentes. Diversas doenças crônicas aumentam o impacto da covid e o risco de morte por pessoas infectadas.
Uma pesquisa da Opas (Organização Pan-Americana de Saúde) em setembro de 2020 apontou que 42% dos brasileiros entrevistados aumentaram o consumo de álcool durante a pandemia.
Um mês antes, um estudo da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) informou que 34% dos fumantes entrevistados declararam ter aumentado seu consumo de cigarros. Outros levantamentos também têm apontado crescimento no consumo de alimentos ultraprocessados.
Sem o monitoramento nacional, pondera Levy, é muito difícil avaliar a situação e ajustar políticas públicas.
O contexto é ainda mais preocupante com a ausência do Censo, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A ausência de Vigitel e Censo no momento mais crítico da história recente do país "é uma tragédia, vai prejudicar muito o Brasil", define Claro.
Para Claro e Levy, a ausência do levantamento nacional é um fator de desequilíbrio em cascata: "O IBGE faz a calibração de todos os inquéritos", diz Claro. "Então, ao não ter Censo, todos os inquéritos que continuam vão vir com algum grau de cansaço."
Essa ausência de dados afeta não apenas a área de saúde. Sem o levantamento nacional, os inquéritos irão trabalhar com projeções populacionais, explicam os pesquisadores. Mas, depois de mais de uma década sem o Censo, é questionável a precisão desses números.
Para Levy, a ausência de dados é uma nova realidade com a qual os pesquisadores não estão acostumados. "A gente tinha facilidade de acesso a dados nacionais, sejam produzidos pelo IBGE ou pelo próprio ministério. Qualquer pesquisador de qualquer universidade conseguia acessar os dados e trabalhar com eles."
De acordo com Claro, há tentativas de voltar a dar andamento ao Vigitel. Se a licitação for concluída até agosto, ele conta, a coleta poderia ser reiniciada, mas com início no final do ano, em vez de ser no começo dele.
Contatado pelo Joio, o Ministério da Saúde confirmou que um novo processo de licitação está em andamento e afirmou que "em breve" os dados da pesquisa de 2020 estarão disponíveis. Por enquanto, permanecemos no escuro.
* O Joio e o Trigo é um projeto de jornalismo investigativo sobre políticas alimentares e de saúde pública. Leia a reportagem completa em https://ojoioeotrigo.com.br/2021/05/mais-uma-da-turma-do-pazuello-brasil-fica-sem-pesquisa-sobre-doencas-cronicas/
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