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Meses após alta, pacientes têm de aprender a conviver com sequelas da covid

Andre Coelho/Getty Images
Imagem: Andre Coelho/Getty Images

Carolina Marins

Do UOL, em São Paulo

13/06/2021 04h00

Francisco das Dores, 50, está desde dezembro reaprendendo a andar. Tem a ajuda de um andador e diz, com uma voz com traços de rouquidão, que o braço "está duro". Ainda assim, faz questão de dizer que está bem, "graças a Deus", após sobreviver a 107 dias de internação em uma UTI (Unidade de Terapia Intensiva) para pacientes da covid.

Ele procurou a Santa Casa de Piedade, no interior de São Paulo, em setembro, depois de sentir muita falta de ar. Um exame de raio-x acusou o comprometimento do pulmão, e a internação foi imediata. Com dificuldade para respirar, Francisco pediu para ser intubado.

Eu não estava conseguindo, então pedi ao médico para ser intubado. Fiquei 107 dias na UTI, levando agulhada, tomando medicamentos e me alimentando por sonda.
Francisco das Dores, vítima da covid

A alta ocorreu pouco antes da virada do ano, em 28 de dezembro de 2020. Mas os resultados de tantos dias de internação se manifestam até hoje. O tempo deitado deixou ferimentos nas costas e nas coxas, suas pernas e braços enfraqueceram e a voz continua rouca devido à intubação.

Tenho formigamento nas pernas também, e os pés não esquentam. Mas estou bem, graças a Deus.
Francisco das Dores, vítima da covid

Embora tenha ficado desconfortável em ilustrar a reportagem, para Francisco, o pior parece já ter ficado para trás, mas as sequelas da covid são motivo de preocupação para os sistemas de saúde no mundo todo. Os estudos ainda são preliminares, mas apontam para a necessidade de atenção e cuidados.

Ainda assim, o Brasil não tem uma diretriz nacional para tratar dessas sequelas no SUS (Sistema Único de Saúde). O risco, segundo médicos, é no futuro haver uma sobrecarrega por reabilitação, além de impactos econômicos de pessoas incapacitadas para o trabalho e vida social.

Um estudo conduzido no Reino Unido mostrou que quase um terço dos pacientes atendidos pelo NHS (sistema de saúde britânico) precisaram ser readmitidos nos hospitais mesmo após estarem curados devido às sequelas. Um em cada dez deles morreu.

Questionado pelo UOL, o Ministério da Saúde não informou dados sobre atendimento de pacientes com sequelas no sistema público. Apenas informou sobre a criação do "REAB Pós-COVID 19", ainda piloto, de estudo e reabilitação de pessoas com sequelas motoras.

Mais de um ano após o início da pandemia, um corpo técnico criado pelo ministério deve entregar até agosto um protocolo para tratamento das sequelas da covid-19.

A percepção de quem atua nessa linha de frente, em especial na atenção primária, é de aumento na busca por reabilitação. Principalmente agora, quando pessoas mais jovens nos hospitais passam mais tempo internadas.

"O tempo de UTI tem sido muito maior nessas pessoas jovens, então elas saem com muitas sequelas neurológicas, motoras, cognitivas e respiratórias. E há sequelas de que ninguém fala, que são as psicossociais", diz a médica sanitarista Bernadete Perez, vice-presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).

Reabilitação em um sistema lotado

A reabilitação —de preferência precoce— é fundamental para que os pacientes retomem suas vidas. Porém, a falta de preparo antecipado do SUS só fez aumentar um gargalo que já existia na busca por esses tratamentos.

"Os centros de fisioterapia não dão conta", diz Bernadete. "Além da covid, tem outras morbidades, pessoas com demandas como AVC, acidente de trânsito... As filas geralmente são enormes."

Quem é egresso da UTI de covid-19 entra na fila comum para reabilitação e se perde.
Bernadete Perez, vice-presidente da Abrasco

Apesar de todos os problemas físicos que Francisco Das Dores apresenta, meses após a saída do hospital, não conseguiu o atendimento de reabilitação. Seus cuidados são feitos em casa, com auxílio da esposa.

Eu mesmo estou fazendo aqui a minha fisioterapia, esticando as pernas. Já consigo andar bem no andador.
Francisco das Dores

Em São Paulo, a Rede Lucy Montoro tem recebido cada vez mais pacientes que tiveram covid. Segundo a médica fisiatra e diretora da rede, Linamara Rizzo Battistella, essa reabilitação requer uma atenção especializada.

Essa é uma doença sistêmica. O vírus entra pelo pulmão, mas agride todos os órgãos e sistemas do corpo humano, e tem que ser tratado como tal.
Linamara Rizzo Battistella, médica

A consequência de não se fazer uma reabilitação adequada é de possivelmente conviver com uma sequela eterna. "Se não fizer nada, vai piorar", diz a médica.

'Covid de cauda longa'

Um ano depois que Edna Bastos da Silva Lima, 49, teve covid, a tosse seca persiste. Ela procurou o hospital de campanha de Cotia (SP) em junho de 2020, depois de sentir febre e tosse. Por ser paciente renal, os médicos acharam mais seguro interná-la, e lá ficou por dez dias.

Edna Bastos da Silva Lima, 49, tem episódios de tosse mesmo um ano após a infecção pela covid-19 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Edna Bastos da Silva Lima, 49, tem episódios de tosse mesmo um ano após a infecção pela covid-19
Imagem: Arquivo pessoal

A alta aconteceu no dia 20 de junho, uma data marcante, pois foi o dia em que nasceu o seu neto. "Eu saindo e ele nascendo", comemora. O paladar, no entanto, demorou alguns dias para voltar ao normal. Já a tosse seca "vai e volta".

"Os médicos já haviam falado que alguns sintomas nos acompanham por um tempo indefinido", conta. Edna foi acompanhada pela secretaria municipal de saúde, que ligava regularmente. Agora, o acompanhamento é feito na clínica onde realiza sua hemodiálise.

"Vi muita coisa ao meu redor, o que afeta mais o lado psicológico. São tantas histórias que vi se desenrolar bem ali ao meu lado", lamenta, relembrando os colegas de enfermaria que não tiveram a mesma sorte de se curar.

Os sintomas persistentes relatados por Edna Bastos são chamados de "covid de cauda longa", por se prolongar por um período maior que as primeiras semanas da infecção. Esses sintomas podem aparecer semanas ou meses depois da recuperação, até mesmo em pacientes que foram assintomáticos, segundo o CDC (Centro de Controle de Doenças), dos EUA.

Herbert Falcão, 27, não chegou a ser internado quando contraiu a covid em março deste ano, mas sente até hoje os efeitos da doença. Seus primeiros sintomas foram confundidos com dengue, pois apresentava dor articular e vermelhidão na pele. Por precaução, fez o teste para covid-19 na UBS do Butantã, em São Paulo, e o resultado foi positivo.

A falta de ar e uma forte diarreia o levaram a retornar ao médico muitas vezes, preocupado. Hoje, está 8 kg mais magro devido à desidratação e à dificuldade para comer, ainda sente dores articulares e precisa fazer inalação todos os dias.

Herbert Falcão, 27, sente dores no joelho e tem problemas respiratórios meses após a infecção - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Herbert Falcão, 27, sente dores no joelho e tem problemas respiratórios meses após a infecção
Imagem: Arquivo pessoal

"Após a covid, eu já fui ao médico fazer exame geral e, como meu pulmão ainda não está 100%, ele pediu para fazer pelo menos uma inalação por dia", conta. Durante a doença, seus joelhos e calcanhares incharam e até hoje sente dor ao andar.

O joelho é uma coisa que eu preciso ir ao médico para ver direito. Ele falou que é uma sequela e não me deu solução. Não disse se isso vai passar um dia.
Herbert Falcão, vítima da covid

Segundo Bernadete Perez, todas as sequelas precisam ser acompanhadas pelo serviço de saúde. "Tem casos leves que precisam de algum tipo de ajuda na reabilitação, principalmente psicossocial. Não ficam com sequelas motoras em casos leves e moderados, mas algumas repercussões como insônia, transtorno de ansiedade acontecem."

Sem uma diretriz nacional do Ministério da Saúde, os próprios centros de reabilitação criaram protocolos de atendimento. Priorizam os casos mais graves, deixando os leves e moderados para o fim da fila. Com isso, o país tende a ter uma legião de pacientes com sequelas e sem tratamento adequado.

1 a cada 10 tem sequelas

Segundo dados da OMS, um em cada 10 pacientes de covid-19 apresentam sequelas até três meses após o diagnóstico e 30% podem apresentar sintomas persistentes nove meses depois.

Médicos e cientistas possuem uma lista extensa de complicações:

  • Cardiovascular: Inflamação do músculo cardíaco;
  • Respiratório: Anormalidades da função pulmonar;
  • Dermatológico: Irritação na pele
  • Neurológico: Perda de paladar e olfato, distúrbios do sono;
  • Psicológico: Depressão, ansiedade, mudanças de humor.

Há ainda outras possíveis sequelas em estudos, como impactos renais, uma síndrome inflamatória multissistêmica (SIM) e doenças autoimunes.