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'Não consigo relaxar nunca': cuidadoras falam de sobrecarga na pandemia

Stéphanie Araújo e Ludmila Almeida (texto); Izzy Credo (imagens)

Colaboração para as Chicas Poderosas*

22/11/2021 04h00

Da rua estreita de um dos lares de idosos de Goiânia, nos arredores de dois bairros nobres da capital, é possível ver quem mora ali. O portão delimita a área onde visitantes e servidoras da administração não podem adentrar para evitar o contágio dos idosos pela covid-19.

Quieto, observando o movimento, um dos residentes faz um sinal lento chamando para ir até lá. Ao fundo, embaixo de uma árvore, uma cuidadora ajuda uma idosa a sentar na cadeira e ver televisão com os demais.

A tranquilidade do abrigo dá a sensação de que a pandemia não chegou por ali. Porém depoimentos de funcionários revelam outra face. Como muitos deles foram contaminados, foi necessário reforçar os protocolos de segurança contra a covid-19.

Uma das medidas foi reduzir o quadro de profissionais de fisioterapia, psicologia, logística e nutrição e fazer o remanejamento dessas atividades entre as cuidadoras e cuidadores.

Procurada, a direção da instituição não quis comentar sobre o assunto. Mas as cuidadoras relatam que, além de cobrir turnos extras ou imprevistos, como as férias de algum colega, tiveram que trabalhar mais para suprir as demandas dos profissionais afastados devido às medidas de segurança sanitária.

Elas, que lidam diretamente com o principal grupo de risco, foram as que mais precisaram redobrar a atenção para prevenir o contágio pelo vírus.

Vários meses depois, no Brasil, essas trabalhadoras tão solicitadas durante a pandemia estão sobrecarregadas, exaustas e sofrendo com doenças crônicas, dores na coluna e desgaste mental.

É o que indica a pesquisa Cuida-Covid da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), realizada online entre agosto e novembro de 2020. O trabalho ouviu 2.354 cuidadoras e cuidadores remunerados, dos quais, 58,8% disseram que aumentaram os esforços no trabalho devido à pandemia.

Entre os profissionais participantes do estudo, 91,2% são mulheres, das quais 60% são negras.

Ainda de acordo com a pesquisa, sete a cada dez cuidadoras têm jornadas de trabalho de 12 horas ou mais e uma a cada cinco trabalham todos os dias. Além disso, na pandemia, 30,8% tiveram a carga horária de trabalho aumentada.

Profissão do futuro?

Na instituição de longa permanência, encontramos as cuidadoras Gláucia Érica da Silva, 33, e Maria Lúcia de Souza, 35, que também é técnica em enfermagem. Elas se revezam com mais 14 cuidadores para dar banho, remédios, alimentação e sanar outras necessidades dos 42 idosos que vivem no lar.

Boa parte deles têm transtornos neurológicos, doenças crônicas ou problemas de mobilidade e, portanto, exigem atenção total, até mesmo para atividades simples.

Enquanto conversávamos, Gláucia e Maria Lúcia mantinham-se atentas aos celulares, caso fossem chamadas para cuidar de qualquer emergência. Nesse estado de vigilância constante, é impossível descansar ou se dedicar a um almoço tranquilo.

Sem a possibilidade de se isolar em casa ou de optar por trabalho remoto durante a pandemia, as cuidadoras tiveram que lidar com o acúmulo de tarefas domésticas e profissionais.

Além da carga de trabalho habitual, que já é grande, elas precisaram se virar para cobrir escalas de outros funcionários que pegaram covid, ajudar os filhos com o ensino remoto, levá-los ao médico, limpar a casa e cuidar das refeições. Assim, quase não sobra tempo para lembrar de si e da própria saúde.

"As pessoas falam muito: o cuidador é a profissão do futuro. Sim, mas e aí? O que a gente está fazendo por esse profissional? O que nós sabemos sobre esses profissionais?", questiona Ana Gilda Soares dos Santos, mulher negra, cuidadora, presidenta da Associação dos Cuidadores da Pessoa Idosa, da Saúde Mental e com Deficiência do Estado do Rio de Janeiro (Acierj) e uma das pesquisadoras do estudo da Fiocruz.

E quem cuida da cuidadora?

"Chega em casa, eu estudo, coloco as meninas pra banhar, olho a atividade, faço a janta, ponho roupa pra lavar. Termino isso, vou estudar, fazer algum trabalho, para poder depois dormir. Isso é no dia que eu chego. E no dia que eu tô de folga? Que tem muito mais pra gente fazer? Tem que levar menino pra uma consulta, pra vacinar, às vezes tem que levar na aula presencial, que é dia de prova. Era pra ser uma folga, mas a gente não tem um descanso", conta Gláucia, que é mineira, vive em Goiás há 17 anos, mulher negra e mãe de duas meninas, de 13 e 9 anos. Além de trabalhar no lar de idosos, ela ainda faz curso técnico de enfermagem.

No começo da pandemia, seu marido foi demitido e ela precisou arrumar uma forma de cobrir os gastos da família: foram cerca de 15 dias se revezando entre o lar de idosos e plantões em hospitais nas "folgas".

Essa é uma situação comum para muitas brasileiras. A pesquisa "Sem parar", da Gênero e Número, indicou que 40% das entrevistadas entendem que a pandemia colocou em risco o sustento da casa; 55% delas são negras.

Passar fome ou correr risco de morrer pela covid-19? Esse é o dilema das cuidadoras que, em sua maioria, são mulheres negras e chefes de família, conforme afirma Ana Gilda.

Dentre as cuidadoras profissionais entrevistadas pela Fiocruz, 263 (11%) perderam o trabalho na pandemia; 78% delas tiveram diminuição na renda domiciliar e cerca de 70% ficaram em situação de insegurança alimentar —ou seja, passaram fome. Porém, este número pode ser ainda maior, visto que a pesquisa foi respondida por pessoas que dispunham de tempo e acesso à internet para tal.

"Eu não consigo relaxar de nada, nunca", desabafa Maria Lúcia, cearense radicada em Goiás, que é mãe solo de dois filhos, um de 11 e outro de 10 anos.

Além de cuidadora de idosos e técnica de enfermagem, ela também virou "professora". Durante o pico da pandemia, ao chegar em casa, cansada das 36 horas de trabalho no lar, ainda precisava ajudar seus filhos com os deveres da escola —isso sem falar das tarefas domésticas.

O filho mais velho, que está no espectro autista, teve a rotina especialmente alterada, o que afetou seu tratamento. Antes, ele ia à escola, encontrava colegas e praticava esportes.

Com a pandemia, parou tudo, está mais isolado, não faz as atividades escolares devido à mudança repentina na rotina e até o acompanhamento com o neurologista foi suspenso para evitar o risco de contaminação.

Apesar de pessoas com autismo não integrarem o grupo de risco para covid-19, elas estão mais propensas à contaminação devido a fatores sensoriais e comportamentais.

"Vai gerar todo um caos quando voltar. Vamos ter que começar do zero", desabafa Maria Lúcia sobre o filho.

"Eu ouço muita música, danço com minhas meninas. Às vezes, saio para a chácara de um colega meu, porque eu não tenho. Eu leio muito, estudo muito. Às vezes, quando estou muito estressada, vou assistir uma série, porque fico ansiosa", diz Gláucia sobre o que faz para cuidar um pouco de si quando está fora do trabalho.

Para ela, a amizade com Maria Lúcia também é uma forma de autocuidado. O diálogo e o incentivo mútuo as fortalecem no dia a dia.

Para Ana Gilda, a falta da regularização da profissão de cuidadora colabora para a exploração da mão de obra e impõe que muitas profissionais trabalhem como autônomas.

As extensas jornadas de trabalho sem intervalos de descanso adequados entre os plantões, a baixa remuneração e a insegurança de direitos deságuam em prejuízos para a saúde física e mental.

Ao comentar sobre cuidadoras que trabalham sete dias por semana e 24 horas por dia, o coordenador do relatório da Fiocruz, Daniel Groisman, ressaltou que essas condições alarmantes de trabalho poderiam ser consideradas um regime análogo ao trabalho escravo.

A Pesquisa Cuidadores do Brasil, realizada em 2021 pelo Instituto Lado a Lado pela Vida, mostrou que muitas dessas profissionais sofrem com problemas emocionais e de saúde.

Das 487 cuidadoras remuneradas ouvidas, 48% relataram distúrbios como estresse emocional, 49% sentem dores nas costas, 22% têm insônia, 32% desenvolveram lesão por esforço repetitivo e 26% afirmam que o trabalho impacta a saúde mental com média e alta intensidade.

"É muito triste ver gente que já trabalhou pra caramba para esse país jogada de qualquer jeito. Lidar com uma pessoa com transtorno ou demência grave não é qualquer coisa. Isso não tem que ser responsabilidade só da mulher, só da família, tem que ser responsabilidade do Estado", diz, emocionada, a presidenta da Acierj. "É uma mercantilização do cuidado que impõe um trabalho autônomo, sem direitos trabalhistas", acrescenta.

Pandemia é ausência de direitos

Cuidar de idosos é um serviço considerado essencial na pandemia. No entanto, isso não garantiu prioridade na vacinação para todas que exercem esse trabalho. Apesar de as cuidadoras de idosos constarem no grupo prioritário do Plano Nacional de Imunização, cada município estabeleceu seu próprio calendário.

Em Goiânia, segundo a prefeitura, apenas as trabalhadoras que conseguissem comprovar vínculo com Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIS) puderam se vacinar conforme previsto no plano, o que exclui as profissionais que trabalham em domicílios ou não são registradas como cuidadoras.

Em fevereiro de 2021, o Ministério Público do Trabalho (MPT) alertou que muitas cidades não estavam vacinando as pessoas cuidadoras de idosos e defendeu a prioridade para estas profissionais, independentemente do tipo de vínculo trabalhista, fossem informais ou com carteira assinada. A orientação era que a vacinação ocorresse simultaneamente à dos idosos, com garantia disso pelas Secretarias de Saúde.

"O secretário [municipal do RJ] falou na minha cara assim: 'Bom, mas você está querendo furar fila dos idosos, você sendo cuidadora?' E eu falei: 'Não, a gente não tá querendo furar a fila dos idosos, não'. O médico, se ele não tiver vivo, ele não vai poder cuidar de quem tiver doente. O cuidador, se ele não tiver vivo, ninguém vai cuidar do idoso", relata Ana Gilda.

Com um modelo específico de declaração e autodeclaração, também indicada pelo MPT, muitas cuidadoras domiciliares informais conseguiram se vacinar no Rio de Janeiro.

Em Goiânia, no entanto, segundo Ednamar Aparecida, cuidadora, presidenta da Associação dos Cuidadores de Idosos e Similares de Goiânia e Região Metropolitana (ACIS-GRM), apenas as cuidadoras com vínculo institucional comprovado foram vacinadas.

Além do atraso na vacinação, a falta de regularização da profissão fez com que muitas trabalhadoras tivessem que se submeter a condições ainda mais precárias de trabalho durante a pandemia.

De acordo com Ana Gilda, boa parte das cuidadoras acabam sendo registradas como empregadas domésticas. Por isso, ela recebeu denúncias do sindicato dessa categoria sobre cuidadoras que foram mantidas em cárcere privado durante a pandemia. "Teve cuidadora que ficou três meses sem ver a própria família", relata.

"A gente tem cuidadores que não conseguem trabalhar mais, devido a sequelas da covid-19", diz Ednamar. "Muitos foram demitidos ou foram obrigados a ficar 15 dias, um mês sem ir pra casa ou, então, a fazer turnos de 24 x 24 horas, 48 x 36 horas. A maioria não podia ir de ônibus, tinha que ir de uber ou carro próprio, quem tem. Mas sem que fossem ressarcidos pelos empregadores", comenta sobre as denúncias que recebeu na ACIS-GRM.

Projetos de lei para regulamentar a profissão tramitam desde 2007. A última proposta de legislação sobre o assunto foi vetada em 2019 pelo presidente Jair Bolsonaro. A decisão, feita antes da pandemia, repercutiu em meio à situação de emergência sanitária e à alta procura por esse tipo de profissional.

A Regulamentação da Profissão de Cuidador de Pessoa delimitaria o âmbito de atuação, fixaria a remuneração mínima para a categoria e garantiria direitos trabalhistas previstos na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).

Enquanto a regularização e a valorização da categoria não fazem parte da realidade dessas profissionais, o acúmulo de funções não dá trégua e as contas não cessam, mulheres como Maria Lúcia, Gláucia, Ana Gilda e Ednamar continuam em segundo plano.

"Se falar assim: 'Hoje você vai ficar com 25 idosos sozinha, porque fulano passou mal, teve que ir embora', eu fico sozinha e a gente dá conta", diz Maria Lúcia.

"É sobrecarga? É sobrecarga. Às vezes, a gente fica aqui, você vai lá fora, lava o rosto, respira fundo e volta para lá de novo. Nem que dê 'sangue na canela', mas eu vou dar conta. Não tem outro jeito", desabafa.

* Esta reportagem foi feita com o apoio do Laboratório de Histórias Poderosas Brasil, uma iniciativa de Chicas Poderosas, comunidade internacional e organização sem fins lucrativos que busca fomentar o desenvolvimento de mulheres e pessoas LGBTQI+ em meios de comunicação e criar oportunidades para que todas as vozes sejam ouvidas. O Laboratório recebeu apoio da Open Society Foundations. As cinco equipes selecionadas receberam auxílio financeiro, participaram de oficinas sobre jornalismo feminista colaborativo e tiveram acompanhamento editorial, de checagem de dados e de segurança durante todo o processo.

Créditos

Texto: Stéphanie Araújo e Ludmila Almeida
Imagens: Izzy Credo
Edição: Bruna Escaleira
Checagem: Alessandra Monnerat
Acompanhamento de segurança: Helena Bertho
Coordenação de projeto: Equipe Chicas Poderosas