Governo atrasa tratamento pós-AVC, e 73 mil ficam sem assistência no SUS
Ercília de Lima, 41, emocionou os médicos do Hospital das Clínicas, em São Paulo, ao deixar a UTI após um AVC (Acidente Vascular Cerebral) que a deixou "perto da morte". Ela foi salva por uma trombectomia mecânica, técnica que reduz em quase três vezes as sequelas do AVC isquêmico, a principal responsável por incapacidade motora no mundo.
Aprovada no SUS em 2021, a técnica ainda não foi incorporada pelo governo, deixando cerca de 73 mil pacientes sem o tratamento desde então.
O que é trombectomia mecânica?
Consolidada em estudos internacionais na década passada, a trombectomia mecânica é uma cirurgia pouco invasiva. Ela é recomendada para o AVC isquêmico, quando um vaso no cérebro é obstruído por um coágulo. Esse tipo de derrame equivale a 80% de todos os AVCs, segundo o Ministério da Saúde.
Todo os anos, mais de 12 milhões de pessoas têm algum tipo de AVC no mundo, com 6,5 milhões de mortes — a segunda principal causa de óbitos, atrás apenas de problemas no coração. No Brasil, o AVC matou 50 mil no primeiro semestre deste ano e 114 mil em 2022, segundo os Cartórios de Registro Civil do Brasil.
O médico introduz um cateter por uma artéria da virilha. "Ele chega ao pescoço e, de lá, um cateter menor vai até o vaso entupido no cérebro", explica o médico Francisco José Mont'Alverne, pesquisador da RNPAVC (Rede Nacional de Pesquisa em AVC). Na ponta do cateter, um stent (tubo expansível) colocado sobre o coágulo funciona como um "saca rolha", que retira a obstrução.
Mas a técnica ainda usada no SUS é a trombólise: um remédio dissolve o coágulo desde que ministrado quatro horas e meia após os sintomas.
A trombectomia desobstrui o vaso em 77% dos casos, contra 11% da trombólise. 46% de quem passou pelo procedimento ganharam independência em três meses, contra 26,5% do outro grupo, segundo um estudo publicado em 2017 na 'New England Journal of Medicine'.
No Brasil, uma pesquisa avaliou por dois anos a trombectomia em 221 pacientes de 12 hospitais. Financiado pelo Ministério da Saúde, a pesquisa da RNPAVC — publicada na 'New England Journal of Medicine' em 2020 — constatou que a trombectomia reduziu as mortes em 16% e aumentou em duas vezes e meia a chance de o paciente voltar para casa sem sequelas.
"O tempo de internação caiu de 25, 30 dias para três, cinco dias", diz Mont'Alverne, que participou da pesquisa e realiza o procedimento no Hospital Geral de Fortaleza.
Por que não chega ao SUS?
Aprovação foi em 2021. O pedido para autorizar o tratamento chegou em 2020 à Conitec, órgão responsável por decidir as técnicas incorporadas ao SUS. Em fevereiro de 2021, o órgão deu até seis meses (agosto) para o SUS oferecer a trombectomia a pacientes que registraram os primeiros sintomas até oito horas antes. Em dezembro, estendeu o prazo para 24 horas, mas a incorporação não aconteceu até hoje.
Devido ao atraso, até 73 mil ficaram sem atendimento. A conta da RNPAVC — que leva em consideração a incidência de AVC isquêmico sobre a população com acesso exclusivamente ao SUS— estima que 99 pessoas poderiam se beneficiar da trombectomia todos os dias no Brasil. Entre o prazo máximo para a incorporação da técnica, em agosto de 2021, e 31 de agosto deste ano, 73.458 pessoas poderiam ter recebido o tratamento.
Falta dizer de onde virá o dinheiro. De acordo com Mont'Alverne, o procedimento ainda não foi incorporado porque o governo federal não publicou portaria indicando de onde sairá o dinheiro para bancar a técnica e quais hospitais estariam capacitados. O tratamento só é oferecido em hospitais particulares ou em algumas unidades públicas bancadas por governos estaduais, como HC de SP e o Hospital Geral de Fortaleza.
Procurado, o Ministério da Saúde não respondeu sobre a necessidade de publicar a portaria. Disse em nota que "não foi efetivada a incorporação [da trombectomia] pela antiga gestão da pasta", em referência ao governo anterior.
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O prazo foi estimado pelo coordenador-geral de Atenção Especializada do Ministério da Saúde, Rodrigo Cariri, em audiência pública de agosto. Ele atribuiu o atraso à necessidade de restaurar a Câmara Técnica — extinta no governo Jair Bolsonaro (PL) —, para debater com sociedades científicas "onde se deve iniciar a implantação". Ele também deseja reeditar protocolos com as diretrizes terapêuticas e monitorar o aprendizado dos médicos.
Esse espaço tem viabilidade de acontecer no segundo semestre de 2023. Espero terminar o ano voltando ao Congresso para discutir outras perspectivas no cuidado ao paciente com AVC e ter superado a questão da trombectomia mecânica.
Rodrigo Cariri, do Ministério da Saúde
"O AVC causa uma legião de sequelados no Brasil", diz Mont'Alverne, cuja equipe realiza 15 trombectomias por mês em Fortaleza. "Mas não temos equipamento para todos e precisamos escolher quem salvar."
Você não sabe o que é olhar para um paciente e saber que ele vai voltar para casa sequelado. Na alta, a família vira e diz: 'eu vou levar ele assim?'
Francisco José Mont'Alverne
A técnica vai economizar dinheiro público. Além de tempo menor de internação, o pesquisador lembra que o paciente sem sequelas não vai pedir afastamento do trabalho por incapacidade. Nos seis primeiros meses do ano, 6.411 pessoas foram afastadas pelo INSS após sofrer AVC, diz o Ministério da Previdência Social.
"Ela está entrando em óbito!"
"Corre que ela está entrando em óbito", ouviu a diarista Ercília — do início deste texto — de um médico que a levava de maca para a cirurgia. Àquela altura, ela não falava nem mexia o lado esquerdo do corpo.
Ercília teve tontura e enjoo em um ônibus. Quando tentou se levantar ao chegar no ponto final, o lado esquerdo do corpo não mexeu "e a língua enrolou". Com o marido, procurou um pronto-socorro. "Acharam que era ansiedade e receitaram diazepam! Mas quando outro médico me viu, me mandou de ambulância para o HC", conta.
Quando acordou da anestesia, não conseguia falar, escrever ou mexer a perna. Mas depois de dois dias na UTI, foi para o quarto já sentindo os movimentos. "A equipe estava emocionada, diziam que foi Deus."
Aos poucos a voz também voltou. "Sai do hospital andando depois de oito dias", diz ela, que não entendia porque outros pacientes do quarto permaneciam paralisados. "Disseram que eles não passaram pela trombectomia", lamenta.
Estou 100%. Voltei a trabalhar depois de um mês: limpo, passo, cozinho. Quando falo que tive AVC, ninguém acredita. O que mudou foi minha visão de mundo: hoje eu trabalho menos para ficar mais tempo com meus filhos.
Ercília Aparecida de Lima
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