Reconciliar vítimas e algozes do Apartheid, o sonho inacabado de Tutu
Cidade do Cabo, 26 dez 2021 (AFP) - Durante o segundo dia de audiências da Comissão de Verdade e Reconciliação (TRC) para investigar crimes cometidos durante o apartheid em 1996, Desmond Tutu apoiou a cabeça sob as mãos e começou a chorar.
À sua frente estava Singqokwana Ernest Malgas, em uma cadeira de rodas, um ex-prisioneiro político da famosa prisão da Ilha Robben.
Diante da comissão presidida pelo arcebispo Tutu, ele relatou as torturas que sofreu nas mãos da polícia: foi enforcado pelos pés, com a cabeça dentro de um saco, com o corpo suspenso.
Pela primeira e única vez, em sua longa carreira pública, Tutu desmoronou na frente das câmeras. "Não foi justo", disse ele mais tarde. "A mídia focou em mim em vez de nos assuntos legítimos."
Entre 1996 e 1998, as sessões da comissão abalaram todo o país.
Todos os domingos, os sul-africanos assistiam a resumos semanais na televisão, às vezes difíceis de suportar. Muitos espectadores descobriram o horror e a brutalidade do regime racista branco, que terminou com a eleição presidencial de Nelson Mandela em 1994.
Durante dois anos, militantes negros, oficiais de segurança do regime, torturadores, vítimas e parentes de desaparecidos falaram à Comissão.
O "presidente" Tutu escreveu mais tarde em seu volumoso relatório de sete volumes que queria fazer da Comissão um "espaço onde as vítimas pudessem compartilhar a história de seu trauma com o país".
A ideia do próprio TRC foi revolucionária. Carrascos e líderes que assim o desejassem poderiam confessar seus crimes em troca de anistia. Mas com uma condição: Tutu insistiu que a reconciliação e o perdão só seriam dados quando houvesse uma revelação completa dos fatos.
Ao contrário dos julgamentos do regime nazista, os do apartheid não visavam "julgar a moralidade dos atos cometidos, mas ser como uma câmara de incubação para a cura nacional, reconciliação e perdão", explicou Desmond Tutu.
Foi um remédio amargo para muitos observadores e vítimas. Mas Tutu rejeitou que a justiça fosse "por natureza vingança e punição". Ele defendeu "uma justiça que não se preocupa tanto em punir, mas em corrigir desequilíbrios e restabelecer relacionamentos rompidos".
"Qualquer que seja a experiência dolorosa, as feridas do passado não devem infeccionar", ele insistiu. "Elas devem ser abertas. Limpas. Você tem que dar-lhes bálsamo para que curem."
No entanto, sua visão não foi compartilhada por todos. "Alguns consideraram que a anistia deixava barato", indicou uma das comissárias do TRC, Dumisa Ntsebeza, próxima a Tutu. "Por que barato? Só porque ninguém estava indo para a prisão", explicou esta advogada à AFP em 2015.
Mas sua visão de que o país se sairia melhor com as sessões coletivas de psicanálise da Comissão tinha seus limites. Depois que Tutu publicou seu relatório, o governo mal seguiu suas recomendações.
Os oficiais ou dirigentes que não participaram da Comissão não foram levados à justiça.
As autoridades nunca pressionaram pela proposta de um imposto para os ricos, uma forma de reduzir as desigualdades abissais criadas pelo apartheid que 30 anos depois continuam a minar a sociedade sul-africana.
A Desmond Tutu não faltavam reprovações. "A forma como administramos a verdade, uma vez contada, define o sucesso do processo. Lá tivemos um fracasso trágico", confessou com tristeza em 2014. No entanto, seus colaboradores são menos severos com o trabalho da Comissão.
"Está inacabado", reconheceu Dumisa Ntsebeza. "Mas eu me pergunto se poderíamos imaginar a África do Sul sem ele", concluiu.
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