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A água no Chile: de propriedade privada a direito humano na nova Constituição

02/09/2022 12h00

A apenas 80 km de Santiago, mais da metade dos habitantes de Til Til não têm água. "Se o caminhão não vier, como darei água a meus animais", questiona Luz Rojas, na localidade marcada pela seca e sobre-exploração hídrica.

No Chile, a água está em mãos privadas através da concessão estatal perpétua amparada pela Constituição vigente desde a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Esta situação pode mudar se a nova Carta Magna, que estabelece o "direito universal à água", for aprovada no plebiscito de 4 de setembro.

Este "mercado da água" e uma seca que já dura mais de uma década no centro do Chile minaram o acesso a este líquido vital em localidades como Til Til, onde rios e poços subterrâneos secaram pela falta de chuvas e também pela presença de mineradoras e agroindústrias que o sobre-exploram.

"A escassez hídrica em nosso território é alarmante", adverte a AFP o prefeito Luis Valenzuela.

As empresas "agem de forma muito simples: têm direito à água, constroem um poço, extraem a água, secam o lençol freático, vão a outro lençol e o secam também e continuam sem fim porque têm direito à exploração", explica.

Desta forma, 60% dos 20 mil habitantes de Til Til não têm hoje acesso à água encanada e devem ser abastecidos por caminhões-pipa, que dividem gratuitamente cerca de 360 mil litros diários, percorrendo estradas de terra estreitas e empoeiradas entre as montanhas.

"Ver a chuva cair é quase um milagre", afirma Rojas, que recebe água uma vez por semana. Enquanto isso, o prefeito apoia a opção "Aprovo" no plebiscito sobre a nova Constituição que, entre outras coisas, estabelece que "sempre prevalecerá o exercício do direito humano a água, saneamento e equilíbrio dos ecossistemas".

- Propriedade privada -

A atual Constituição chilena dispõe que "os direitos dos particulares sobre as águas, reconhecidos ou constituídos de acordo com a lei, outorgarão a seus titulares sua propriedade".

Esta normativa "deu acesso a operadores não apenas de explorar a água mas também de manejar sua infraestrutura, algo inédito porque em outros países há limitações", declarou à AFP, Darío Soto, diretor-executivo da instituição Aliança Global sobre a Água.

"Estes direitos sobre a água foram concedidos de forma gratuita e de forma perpétua (...) em uma modalidade que "beneficiou a indústria, gerou emprego e produtividade, mas em detrimento do acesso à água", acrescenta.

Nos últimos 12 anos, a Direção Geral de Águas do Chile entregou em todo o país 47.758 concessões à particulares, principalmente a mineradoras e à agroindústria. 

Ecoando uma das principais preocupações dos chilenos, sobretudo após os anos de seca, a proposta de nova Constituição altera este modelo e "reconhece o desejo de que a água seja um direito humano essencial para o ecossistema", afirma Soto.

O texto determina que o Estado zele "pelo uso razoável das águas". Também muda os direitos de propriedade por "autorizações de uso da água que serão outorgadas pela Agência Nacional da Água, de caráter não comercial, concedidas com base na disponibilidade efetiva das águas e que obrigarão ao titular que justifique seu uso".

Rodrigo Mundaca, governador da região de Valparaíso e um dos principais ativistas pelo direito universal à água, considera que o novo texto "acaba com as intenções lucrativas em torno dos bens naturais".

Segundo Mundaca, 1% dos detentores do direito à exploração de água destinada à agricultura e à mineração concentram aproximadamente 80% de todos os direitos.

"O que a (nova) Constituição fará é acabar com o mercado da água", sustenta o governante.

Mas um grupo de organizações de detentores de direitos à água, opositores ao novo texto, afirmaram em uma declaração pública que a substituição dos direitos de exploração é "uma porta aberta ao declínio do uso produtivo das águas". 

Eles consideram que as novas definições afetarão "na mesma medida pequenos, médios e grandes usuários de água e, indiretamente, ao país em sua totalidade, colocando em risco a segurança jurídica".

msa/pa/pb/jc

© Agence France-Presse