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Quem está destruindo as unidades de conservação da Amazônia

Destruição de Unidades de Conservação da Amazônia - Caco Bressane
Destruição de Unidades de Conservação da Amazônia Imagem: Caco Bressane

Ciro Barros e Rafael Oliveira*

Da Agência Pùblica

14/03/2022 04h00Atualizada em 15/03/2022 13h22

Resumo da notícia

  • 11 UCs concentram 75% de todas as multas na região da Amazônia
  • Multas estão relacionadas principalmente ao desmatamento e queimadas
  • Zona de influência da BR-163 é onde há maior concentração de infrações

As UCs (Unidades de conservação) federais ao redor da BR-163, no Pará, são as que concentram a maior parte das multas aplicadas pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) entre 2009 e 2021 na região da Amazônia Legal. Entre os principais autores de infrações ambientais das UCs da Amazônia, há políticos regionais e pessoas vinculadas a eles, grandes empresas e infratores com vasta ficha de acusações criminais, o que inclui assassinato em conflitos agrários.

Análise realizada pela Agência Pública com base em dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) pela Fiquem Sabendo, agência de dados especializada no acesso a informações públicas, mostra que são cerca de 10,5 mil autuações lavradas pelo órgão na região ao longo do período analisado.

A reportagem selecionou as 132 UCs federais do bioma amazônico, tanto de proteção integral quanto de uso sustentável, que são administradas pelo ICMBio. Estas 132 UCs concentram 9,4 mil multas com valor especificado, totalizando mais de R$ 3 bilhões. Não é possível saber quantas foram pagas pelos infratores. Fontes afirmam que raramente são quitadas.

Essas autuações estão relacionadas principalmente a desmatamento e queimadas, mas outras ações que geram prejuízos à natureza, como construção de obras, barramentos e garimpo, também estão entre as atividades autuadas e contidas na base analisada.

Entre as 11 unidades de conservação com maior valor aplicado em multas nesse período na Amazônia - que concentram 75% do valor total -, seis estão na zona de influência da BR-163. São elas: Flona (Floresta Nacional) do Jamanxim, Esec (Estação Ecológica) da Terra do Meio, Rebio (Reserva Biológica) das Nascentes da Serra do Cachimbo, Parna (Parque Nacional) do Jamanxim, Flona de Altamira e Flona de Itaituba II.

Neste "top 11" de UCs, há ainda outras quatro unidades de conservação que estão próximas a importantes rodovias federais: as Flonas do Jamari e do Bom Futuro, que estão na zona de influência da BR-364; a Flona do Iquiri, influenciada pela 364 e pela BR-317, que teve parte da sua extensão pavimentada recentemente; e o Parna Mapinguari, também na zona da 364 e igualmente próximo da BR-319, rodovia que o governo federal tenta promover o asfaltamento. A única exceção na lista é a maranhense Rebio do Gurupi, que não é cortada por rodovias mas está localizada no estado onde a maior parte da Amazônia já foi desmatada.

multas - Mapa agencia publica -  -

Registro de imóveis sobrepostos a UCs aumentou

A relação direta entre a proximidade da malha rodoviária e as infrações ambientais dentro de UCs não é por acaso. "Já tem vários estudos que comprovam que a grande maioria do desmatamento na Amazônia ocorre num raio de proximidade das estradas", explica Antonio Oviedo, assessor do Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do ISA (Instituto Socioambiental).

Um estudo conduzido pelo ISA revelou que houve um aumento de mais de 274% dos registros de imóveis no CAR (Cadastro Ambiental Rural) em sobreposição a unidades de conservação de uso sustentável entre 2018 e 2020, além de um aumento de 54% nas de proteção integral.

Como não é possível regularizar uma terra que incida em área protegida, a expectativa dos invasores ao registrar o imóvel no CAR é que as unidades sejam extintas, reduzidas ou que sua classificação mude, permitindo a posterior regularização da ocupação. De acordo com a ong WWF, há centenas de propostas que podem afetar as unidades de conservação ao redor do país.

Para José*, analista ambiental e fiscal do ICMBio que lavrou autuações contra vários dos infratores citados nesta reportagem, muitas das multas são "impagáveis", mas a atuação administrativa do órgão ambiental pode gerar "repercussão na esfera jurídica". "Como o órgão judicial é mais poderoso, tem mais força para agir contra aquela pessoa, as sanções são mais pesadas. Então quando chega na esfera judicial, se existem provas robustas contra aquela pessoa, aí sim ela vai sentir o peso do que fez, de ter desmatado. Não vai ficar tão impune assim", diz. Ele preferiu não se identificar por temer represálias internas.

multas - Grafico agencia publica -  -

A recordista: Flona do Jamanxim

A Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim, um dos alvos do Dia do Fogo, quando produtores rurais e empresários locais provocaram vastas queimadas na região em 2019, é quem lidera o ranking de unidades de conservação com maior valor aplicado em multas pelo ICMBio. São R$ 571,1 milhões em multas, distribuídas em 531 autuações.

Entre todos os infratores com atuação na Flona, uma família se destaca: os Piovesan/Cordeiro - em alguns casos, o sobrenome da família é grafado como Piovezan. A grande campeã em valor de autuações considerando todas as unidades federais da Amazônia é Sandra Mara Silveira, que já recebeu R$ 95,8 milhões em multas. A maior das multas, de R$ 86,3 milhões, foi aplicada em novembro de 2017 e refere-se ao impedimento, "mediante uso de fogo, da regeneração natural de 5.758,67 hectares" - área superior ou semelhante à de pequenos países, como San Marino e Bermudas.

Sandra Silveira é esposa de Márcio Piovezan Cordeiro, que segundo apuração da reportagem com fontes próximas, seria o verdadeiro operador dos desmatamentos. Além dela, um outro parente de seu marido também aparece entre os maiores infratores da Flona do Jamanxim: Edson Luiz Piovesan. Ele já foi condenado em ação civil pública por desmatamento e é réu por queimadas. Segundo colocado em multas da Flona com R$ 33,95 milhões, Edson é filho de Edson Miguel Piovesan, ex-prefeito de Juara (MT), que faleceu em março do ano passado.

Segunda colocada, Flona do Iquiri

Entre 2019 e 2021, um quarto de todas as multas aplicadas nas UCs federais da Amazônia foram lavradas contra infratores na Floresta Nacional do Iquiri, localizada em Lábrea (AM), em um total de R$ 300 milhões. Ela é a segunda no ranking de UCs federais da Amazônia com maior valor aplicado em multas ao longo de todo o período analisado, com R$ 377,5 milhões.

Na unidade, quatro infratores concentram 91% do valor das multas aplicadas entre 2019 e 2021. Os dois primeiros são Edson Domingos Lopes (R$ 83,6 milhões no período) e Evandro Aparecido de Souza Barros (R$ 73,5 milhões). Ambos foram multados por destruir ou danificar milhares de hectares no interior da Flona.

A dupla foi denunciada pelo Ministério Público Federal, que apresentou uma ação civil pública contra os dois. Segundo o órgão, eles são responsáveis por aberturas de ramais e de estradas clandestinas no Iquiri e aterraram e barraram cursos d'água com a construção de pontes irregulares, entre outros crimes ambientais.

Procurado, Evandro Barros disse ter comprado, em 2013, uma área que já era ocupada desde antes da criação da Flona e reclamou da falta de indenização por parte do governo. Ele admitiu ter construído um curral em mais de uma ocasião e disse não ter condições financeiras de pagar as multas. Já a esposa de Edson Lopes, Marlecy Suave, confirmou que seu marido foi autuado pelo ICMBio, mas negou que ele seja responsável pelas infrações ambientais. Marlecy afirma que ela e o marido são "proprietários legais" da área.

Quem fecha o "top 4" do período na Flona são os madeireiros Francisco de Souza Lima, com mais de R$ 73,1 milhões, e Valdeci da Costa, com R$ 43,6 milhões.

unidades, conservação - Agência Pública - Agência Pública
Campeões de multas em Unidades de Conservação da Amazônia
Imagem: Agência Pública

Infratores acumulam acusações criminais

Além de crimes ambientais, alguns dos maiores infratores das unidades de conservação federais da Amazônia figuram nas páginas policiais.

Na Flona do Jamanxim, um dos infratores já foi acusado de assassinato em contexto de conflito agrário. Trata-se de Alex Agenário Ferreira Carneiro, que foi multado em R$ 23,1 milhões em abril de 2021, por desmatar mais de 2,3 mil hectares.

Alex Carneiro foi acusado, juntamente com seu pai, Edino Batista Carneiro, e um tio, de mandar matar Flávio Oliveira Ramos, assassinado em dezembro de 2008, em Novo Progresso (PA). Edino, que foi vereador de Cassilândia (MS), já cumpriu pena por roubo qualificado. Segundo reportagens que relatam o caso de homicídio, Ramos teria vendido uma fazenda para Edino no valor de R$ 850 mil, mas o valor não teria sido quitado. Ele chegou a registrar ameaças recebidas pela família antes de ser morto. Em fevereiro de 2013, Edino foi assassinado na própria casa, também em Novo Progresso. No mesmo ano, o júri fora transferido para outra comarca, em virtude "dos acusados possuírem grande poder econômico", segundo a desembargadora que relatou a transferência. Após a mudança, Alex e o tio foram inocentados em 2015 no júri popular.

Já na Rebio Nascentes da Serra do Cachimbo, o infrator ambiental com ficha criminal é André Fernando Ferri. Em agosto de 2020, ele foi condenado por corrupção ativa por ter tentado subornar policiais militares em 2015, após ser abordado por realizar "manobras perigosas" em Dois Irmãos do Buriti (MS).

Somados, ele e o irmão Edner Aparecido Ferri acumulam R$ 71,2 milhões em multas por infrações no interior da UC paraense. Contatado pela reportagem, Edner disse ter comprado uma área na região em 2002, período anterior ao estabelecimento da reserva. Ele diz que "nunca derrubou uma árvore" e que sofre com a invasão de grileiros e posseiros em suas terras. No entanto, Edner admitiu que mantinha gado dentro da área, mas que vendeu os animais — "para não perder injustamente" — quando soube que o ICMBio pretendia fazer a operação na região.

Empresas mais multadas

Nas unidades de conservação federais da Amazônia, grandes empresas também estão por trás de vultosos desmatamentos e outras ações responsáveis por destruir a floresta. Somadas, três delas já receberam um total de R$ 130,8 milhões em multas aplicadas pelo ICMBio entre 2009 e 2021. São elas: Salobo Metais S/A, ligada à Vale, Energia Sustentável do Brasil (ESBR) S/A, concessionária da Usina Hidrelétrica (UHE) de Jirau e a Floraplac, que produz chapas de MDF, ligada ao Grupo Concrem, gigante do setor madeireiro na Amazônia.

A Salobo Metais S/A, que é subsidiária e a maior operação de cobre da Vale — companhia que obteve lucro recorde de R$ 121,2 bilhões em 2021 — foi multada por infrações no interior da Flona de Carajás, da Área de Proteção Ambiental (APA) do Igarapé Gelado e da Flona do Tapirape-Aquiri, todas na região de Marabá (PA), num total de R$ 52,6 milhões em multas. A Salobo, que acumula outras acusações de crimes ambientais, auxilia na administração de algumas das unidades de conservação da região.

Já a segunda colocada na lista é a concessionária da Usina Hidrelétrica (UHE) de Jirau, a Energia Sustentável do Brasil (ESBR) S/A. Ela recebeu uma multa no valor de R$ 48,5 milhões em março de 2017 por "danificar 4.047 hectares de floresta nativa". A empresa, que desde 2021 passou a se chamar Jirau Energia, é a com maior valor em autuações no Parque Nacional (Parna) Mapinguari, localizado entre o Amazonas e Rondônia.

Na terceira colocação entre as maiores infratoras está a Floraplac, a segunda maior empregadora privada de Paragominas (PA). A empresa já recebeu cinco autuações por infrações ambientais no interior da Reserva Biológica (Rebio) do Gurupi, no oeste do Maranhão, próxima à fronteira com o Pará. Somadas, as multas ultrapassam R$ 32,1 milhões. Em resposta aos questionamentos da reportagem, a empresa enviou uma nota.

A reportagem procurou todos os citados, mas alguns não foram localizados. Após a publicação desta reportagem, a assessoria da Vale encaminhou uma nota na qual afirma que as atividades da Salobo Metais atendem aos "requisitos previstos pela legislação ambiental", o que inclui, segundo a empresa, "o desenvolvimento de ações voltadas à conservação da flora e fauna da região".

Segundo a nota, aa multas recebidas estão sendo discutidas nos respectivos processos administrativos.

A Vale afirma, por meio da mesma nota, que apoia o ICMBIO na proteção das unidades de Conservação de Carajás e que atualmente são preservador "mais de 800 mil hectares, o equivalente a mais de 800 mil campos de futebol, de floresta Amazônica".

"A atividade de mineração desenvolvida pelo grupo ocupa menos de 2% do total da área de conservação citada. Para tanto, são mantidos acordos de cooperação para a execução conjunta de ações ambientais que potencializam importantes projetos desenvolvidos nas unidades de conservação que apoiamos" diz a empresa, que cita como exemplo "ações desenvolvidas na floresta Nacional do Tapirapé-Aquiri".

No local, diz a nota da Vale, a emrpesa incentiva "a implantação de sistemas agroflorestais e de conservação da castanheira" para gerar alternativas de renda para as comunidades que vivem no entorno dessa unidade".

*Com colaboração de Beatriz Carneiro e Bianca Muniz


*Esta reportagem faz parte do Especial Amazônia Sem Lei, da Agência Pública -- apublica.org.