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Gays enfrentam dilema para sair do armário em Brasil 'polarizado'

10/04/2013 06h09

A decisão da cantora baiana Daniela Mercury de assumir um relacionamento afetivo com uma mulher trouxe à tona um dilema enfrentado pelos gays brasileiros atualmente. Se por um lado mudanças recentes criaram um ambiente mais aberto para que homossexuais possam "sair do armário", por outro, a sociedade brasileira vive hoje um cenário de crescente polarização sobre o assunto.

  • instagram.com/danielamercury

    Imagens divulgadas por Daniela Mercury no Instagram mostram a cantora com a companheira, a jornalista Malu Verçosa

O quadro atual inclui a conquista de direitos pelos gays, como a decisão do STF que aprovou a união civil estável, e a mobilização dos movimentos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transsexuais) para mantê-los e ampliá-los. Mas há também confrontos acirrados com grupos religiosos e uma preocupação cada vez maior com ataques homofóbicos em todo o país, que matam uma pessoa a cada 26 horas - segundo o Relatório de Assassinato de LGBT de 2012, publicado pelo Grupo Gay da Bahia.

Lideranças de movimentos gays apontam que parte deste momento de tensão na sociedade brasileira se intensificou com a eleição do deputado pastor Marco Feliciano (PSC-SP) - acusado de homofobia - para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias do Congresso (CDHM). A posse de Feliciano no cargo desencadeou uma série de protestos.

O acirramento do debate, no entanto, é visto como consequência natural do processo democrático, na visão dos entrevistados pela BBC Brasil.

"É natural que quanto mais direitos a comunidade LGBT obtenha e mais a sociedade avance, maior seja também o extremismo dos que são contra", diz Rafael Puetter, ativista baseado no Rio de Janeiro conhecido por seus vídeos em que seu personagem "Rafucko" satiriza a "ditadura gay" - regime que, segundo algumas lideranças evangélicas, os homossexuais estariam tentando implementar no Brasil.

"A discussão está num ponto muito nervoso no país nesse momento", diz ele.

Aos 27 anos, Rafael representa a geração atual, que faz questão de defender seus direitos. Seu blog e suas manifestações já foram alvo de reportagens no Jornal do Brasil e na Folha de S. Paulo. No Twitter, ele já tem quase 9 mil seguidores, e no Facebook, mais de 5 mil.

A opinião do carioca é partilhada pelo jornalista Julio Wiziack, de 39 anos, autor do livro Abrindo o Armário: Encontrando uma Nova Maneira de Amar e Ser Feliz, que reconta suas experiências ao se declarar abertamente gay.

"Eu ainda estou com dúvida se o surgimento de Marco Feliciano é bom ou ruim, porque nunca se falou tanto da comunidade gay no país. O confronto é inevitável, e é difícil prever o que vai sair daí, mas acho que não há como avançar sem termos esse confronto, que pode ter um saldo muito positivo", diz.


"Hoje em dia é muito mais fácil se assumir abertamente gay, e creio que não há espaço para retrocesso. A abertura é irreversível e acho que não está em risco. (...) Antes não havia confronto porque todo mundo estava dentro do armário", avalia.

Mercury

Foi exatamente neste cenário de polêmica que Daniela Mercury publicou, na semana passada, uma série de fotos em sua conta na rede social Instagram, tornando público seu relacionamento com a jornalista Malu Viçosa: "Malu agora é minha esposa, minha família, minha inspiração pra cantar".

Dias antes, diversas celebridades já haviam engrossado a lista dos que protestam contra o deputado Marco Feliciano. A atriz Fernanda Montenegro, de 83 anos, beijou a colega Camila Amado, de 77, na boca, durante a entrega de um prêmio teatral, e os atores Bruno Gagliasso e Matheus Nachtergale protagonizaram manifestação semelhante.

Mas a cantora foi a primeira figura de destaque nacional a mencionar o parlamentar ao tomar uma decisão deste porte.

"Eu comuniquei meu casamento com Malu para tratar com a mesma naturalidade que tratei outras relações. É uma postura afirmativa da minha liberdade e uma forma de mostrar minha visão de mundo. Numa época em que temos um Feliciano desrespeitando os direitos humanos, grito o meu amor aos sete ventos. Quem sabe haja ainda alguma lucidez no Congresso Brasileiro!", disse em um comunicado.

Em entrevista ao Fantástico, programa da TV Globo, Daniela disse que "não foi por causa dele (Marco Feliciano) que fiz isso, mas fico muito feliz que essa minha necessidade pessoal tenha coincidido com esse momento em que isso se faz tão necessário para o Brasil. (...) Não gosto de rótulos, mas estou nessa luta, na luta da comunidade LGBT, sem dúvida".

'Momento contraditório'

Luiz Mott, antropólogo e fundador do Grupo Gay da Bahia, que há mais de três décadas integra o movimento LGBT no Brasil, diz que o país vive um momento "extremamente contraditório" e que o cenário para os 20 milhões que integram a comunidade e são cerca de 10% da população ainda é incerto.

"Do lado cor de rosa, abrigamos a maior parada gay do mundo, temos a união civil aprovada pelo STF e em dez Estados já se pode casar diretamente, sem passar pela união estável. Mas também somos campeões no índice de assassinatos de homossexuais e transsexuais, com 338 execuções em 2012, e há que se ressaltar que a realidade ainda é muito pior no interior do que nos grandes centros", avalia.

Mott cita como exemplos negativos o veto da presidente Dilma Rousseff a uma cartilha contra a homofobia, que seria divulgada nas escolas brasileiras e já havia sido aprovada pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e pelo Conselho Federal de Psicologia, e a um material de campanha de prevenção ao HIV/Aids durante o último Carnaval, retirado de circulação por fazer menções a relações homossexuais.

Já a decisão de Daniela, sua conterrânea, é vista como um bom sinal. "Com certeza muitos jovens com medo de se assumir vão se inspirar na Daniela Mercury", diz.

Observando os avanços e retrocessos da sociedade brasileira nos últimos 30 anos, o baiano é categórico ao avaliar o momento atual. "O Brasil é um país onde os gays podem se casar, mas não podem andar de mãos dadas nas ruas".