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Santa Maria: um ano depois, famílias deixam luto e exigem justiça

27/01/2014 10h10

O temor de que culpados fiquem impunes e autoridades públicas sejam isentas de responsabilidade permeia o primeiro aniversário do incêndio da boate Kiss, que matou 242 pessoas e deixou mais de 600 feridos em Santa Maria (RS).

No ano que se passou desde a tragédia, famílias e amigos das vítimas passaram do luto a um crescente engajamento para exigir justiça. Na vigília feita nesta madrugada para marcar o dia 27 de janeiro, a charge feita para a ocasião - pendurada em um cartaz na fachada da boate e estampada na camiseta vestida por boa parte da multidão - resumia bem o sentimento de muitos familiares.

Uma mulher carrega uma placa com a palavra "JUSTIÇA" e a foto da filha, enquanto um promotor público tapa sua boca e autoridades municipais e estaduais olham com um sorriso irônico, de braços cruzados atrás da boate Kiss. O desenho foi feito para os familiares pelo cartunista Carlos Latuff.

E de fato os clamores por justiça deram o tom da vigília, em que cerca de 600 pessoas se reuniram em frente à boate Kiss. Sirenes foram acionadas às 3h da manhã, horário em que o fogo começou na boate no ano passado, e a multidão seguiu para um palanque onde organizadores do evento fizeram discursos emocionados - e prometeram não descansar enquanto todos os responsáveis pela tragédia fossem punidos.

"A justiça não foi feita. Estamos muito longe disso. Vivemos a impunidade em Santa Maria", diz à reportagem da BBC Brasil Adherbal Ferreira, presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).

"Meu maior temor é que ninguém seja punido. Nós queremos que a punição seja plena e alcance todos que tiveram uma parcela de responsabilidade. Cada um dentro de sua culpabilidade, nem que seja só para pagar uma cesta básica", diz ele, que perdeu a filha Jennifer, de 22 anos, no incêndio.

A associação foi formada para agregar as famílias após o acidente, mas começou a "pegar pesado na parte judicial" quando os pais começaram a acreditar que estavam sendo "engambelados", como afirma Ferreira.

"Mas sensação de abandono pelo poder público e de impunidade nos levou à ação."

A desconfiança irrompeu quando o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) não levou adiante todos os indiciamentos feitos no inquérito da Polícia Civil, que apontou 16 pessoas e responsabilizou outras 12 no âmbito administrativo - entre elas o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer.

  • Fachada de boate Kiss, em Santa Maria (RS), antes e depois do incêndio

Mas o pedido inicial dos promotores de Santa Maria de arquivar o processo contra parte das autoridades públicas não chegou a ser homologado.

A Polícia Civil está realizando duas novas investigações a partir de novas evidências de irregularidades na documentação da Kiss, e agora o processo terá que voltar para Santa Maria para ser novamente contemplado pelos promotores à luz das novas conclusões e provas reunidas - que, de acordo com a delegada responsável, Luiza Souza, deverão ser apresentadas até o fim de fevereiro.

A primeira investigação apura uma denúncia anônima indicando que a consulta popular à vizinhança exigida por lei para que a boate pudesse abrir naquele local pode ter sido fraudada.

Os proprietários precisavam apresentar um abaixo-assinado em que os vizinhos dessem seu aval para o empreendimento - "em um raio de 100 metros, onde as pessoas são verdadeiramente afetadas", diz Souza.

"Mas cerca de 90% da consulta foi feita por pessoas de áreas que não seriam afetadas. Além disso, verificamos assinaturas duplicadas."

A partir daí, a polícia resolveu analisar todas as licenças obtidas pela Kiss e constatou diversas irregularidades.

"Durante todo o período em que a Kiss funcionou, em nenhum dia ela funcionou com todas as licenças vigentes. Sempre tinha alguma irregularidade", diz Souza.

A segunda investigação é sobre um termo de ajustamento de conduta (TAC) gerado em 2010, depois que uma patrulha fez medições sonoras na área e concluiu que o nível de ruído estava muito alto.

"Foram feitas as reformas, mas o MP, que tem engenheiros, só mandou um secretário de diligências para verificar o que havia sido feito", diz Luiz Fernando Smaniotto, advogado da ASVTM.

"Todo mundo sabia que a boate era irregular, mas ninguém fazia nada. Iam lá, multavam e ficava tudo certo", diz.

A animosidade da população com o MP ficou escancarada no domingo, no último debate do dia do congresso que vem sendo promovido pela AVTSM para debater o incêndio na Kiss e promover o diálogo sobre políticas de prevenção.

Na mesa representantes da Polícia Civil, MP-RS, Defensoria Pública e advogados da associação, Arigony - que foi aplaudido de pé longamente ao subir no palco.

Já Marcelo Dornelles, Subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais do MP-RS, teve que enfrentar uma tensa sabatina de repórteres e familiares na entrada do evento e foi hostilizado por pais na sessão de perguntas ao término do evento.

Em seu discurso, Dornelles enfatizou o compromisso do MP-RS em apontar os culpados pelo incêndio de Santa Maria "com firmeza e seriedade" e rejeitou um sentimento de "caça às bruxas" - a seu ver instigado pela imprensa em um primeiro momento após o incêndio.

Ele afirmou que o MP-RS deve trabalhar tecnicamente as denúncias que dependem de provas e não podem ser baseadas em revolta ou sentimentos.

Segundo o subprocurador, a atitude "mais fácil e cômoda" dos promotores teria sido encaminhar todos os indiciamentos para o Poder Judiciário.

"Então também estaríamos sendo aplaudidos de pé aqui hoje", alfinetou. "Fizemos o mais difícil, que é a correta aplicação da lei contra as pessoas de quem efetivamente temos convicção da responsabilidade", disse.

Em resposta à notória insatisfação da comunidade pela ausência de uma acusação ao prefeito, Dornelles afirmou não haver elementos que o vinculem diretamente ao fato.

Enquanto a população cobra que autoridades sejam responsabilizadas por improbidade administrativa, dois processos criminais correm na Justiça contra os oito réus denunciados inicialmente.

Os dois sócios da boate (Elissondro Spohr, o Kiko, e Mauro Hoffmann), e dois integrantes da banda estão sendo julgados por homicídio doloso, enquanto outros quatro réus - como o major Gerson da Rosa Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros, estão sendo julgados por fraude e falso testemunho por terem atestado que a Kiss preenchia os requisitos da lei de incêndio.

Conheça os responsáveis segundo a polícia

NOMEQUEM ÉACUSAÇÃO
Elissandro Spohr, o KikoSócio da boate KissHomicídio com dolo eventual
Mauro HoffmanSócio da boate KissHomicídio com dolo eventual
Luciano Augusto Bonilha LeãoProdutor da banda Gurizada FandangueiraHomicídio com dolo eventual
Marcelo de Jesus dos SantosVocalista da banda Gurizada FandangueiraHomicídio com dolo eventual
Angela Aurelia CallegaroSócia da Kiss e irmã de KikoHomicídio com dolo eventual
Marlene CallegaroSócia da Kiss e mãe de KikoHomicídio com dolo eventual
Ricardo de Castro PascheGerente da KissHomicídio com dolo eventual
Gilson Martins DiasBombeiroHomicídio com dolo eventual
Vagner Guimarães CoelhoBombeiroHomicídio com dolo eventual
Miguel Caetano PassiniAtual secretário de Mobilidade UrbanaHomicídio culposo e improbidade administrativa
Luiz Alberto Carvalho JuniorSecretário do Meio AmbienteHomicídio culposo e improbidade administrativa
Beloyannes Orengo de Pietro JúniorChefe da fiscalização da Secretaria de Mobilidade UrbanaHomicídio culposo e improbidade administrativa
Marcus Vinicius BittencourtFuncionário da Secretaria de FinançasHomicídio culposo e improbidade administrativa
Moisés da Silva FuchsComandante regional do Corpo de Bombeiros de Santa MariaHomicídio culposo (Justiça Militar) e improbidade administrativa
Alex da Rocha CamilloBombeiroHomicídio culposo (Justiça Militar) e improbidade administrativa
Robson Viegas MüllerBombeiroHomicídio culposo (Justiça Militar)
Sergio Rogério Chaves GulartBombeiroHomicídio culposo (Justiça Militar)
Dilmar Antônio Pinheiro LopesBombeiroHomicídio culposo (Justiça Militar)
Luciano Vargas PontesBombeiroHomicídio culposo (Justiça Militar)
Eric Samir Mello de SouzaBombeiroHomicídio culposo (Justiça Militar)
Nilton Rafael Rodrigues BauerBombeiroHomicídio culposo (Justiça Militar)
Tiago Godoy de OliveiraBombeiroHomicídio culposo (Justiça Militar)
Gerson da Rosa PereiraMajor do Corpo de BombeirosFraude processual
Renan Severo BerlezeSargento do Corpo de BombeirosFraude processual
Eltron Cristiano UrodaEx-sócio da KissFalso testemunho
Cezar SchirmerPrefeito de Santa MariaHomicídio culposo (Tribunal de Justiça) e improbidade administrativa
Daniel da Silva AdrianoCoronel da reserva dos BombeirosImprobidade administrativa
Marcelo Zappe BisognoEx-secretário de Controle e Mobilidade Urbana e, atualmente, vereadorImprobidade administrativa