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O que Che Guevara diria sobre a reaproximação entre EUA e Cuba?

Lucia Alvarez de Toledo, biógrafa de Che - BBC
Lucia Alvarez de Toledo, biógrafa de Che Imagem: BBC

09/04/2015 06h55

Às vésperas do que promete ser o encontro histórico entre os presidentes cubano, Raúl Castro, e norte-americano, Barack Obama, na Cúpula das Américas, no Panamá, alguns críticos questionam se uma aproximação entre Havana e Washington não seria uma traição ao passado revolucionário da ilha.

Há mais de 50 anos, uma revolução liderada por Fidel Castro, irmão de Raúl, derrubou um governo apoiado pelos Estados Unidos e colocou em prática seus ideais comunistas.

Uma figura importante nessa transição em Cuba foi Che Guevara, que se tornou referência mundial como símbolo de revolução socialista.

Agora, o mundo observa o líder cubano fazendo um acordo com os Estados Unidos, abrindo as portas para uma nova relação entre os dois países e o eventual fim do embargo econômico à ilha.

Mas o que Che Guevara, um dos principais ideólogos da implantação do comunismo em Cuba, que ele via como um ponto de partida para uma revolução contra o capitalismo em todo o continente latino-americano, pensaria dessa nova realidade?

Para responder a essa pergunta, a BBC ouviu quatro especialistas em Cuba:

'Che detestava os Estados Unidos'

Lucia Alvarez de Toledo, biógrafa de Che Guevara

Che é a alma de Cuba. Ele é o espírito da nação, é inacreditável, ele está em todo lugar.

Ele articulou o que eu pensava. Eu estava cercada por aqueles horríveis norte-americanos, e nós éramos como uma colônia, pelo amor de Deus.

Nós produzimos este homem que falava, pensava e era como nós, claro que amávamos ele.

Ele detestava [os Estados Unidos] porque via pobreza extrema em um continente que não precisava ser pobre.

Quando a revolução triunfou, qualquer um que estivesse envolvido com os norte-americanos foi expulso.

[Hoje] Che diria que a revolução cubana está tão firmemente entrincheirada que ninguém pode tirá-la [dos cubanos], ninguém pode tirar seu serviço de saúde pública, ninguém pode tirar sua educação. Eu me sinto bem com isso porque a revolução é sólida.

Ele diria: eles acordaram, perceberam seus erros. Porque são os norte-americanos que perceberam que seu comportamento não os beneficiou, e eles agora vão mudar.

EUA querem que o povo cubano seja agente da mudança

Louis Perez é diretor de Estudos da América Latina na universidade da Carolina do Norte

Há esta crença histórica e cultural nos Estados Unidos de que o destino de Cuba pertence a eles. Basicamente, Cuba foi uma ilha tropical que existia para servir ao prazer norte-americano.

O clamor da revolução por legitimidade moral e poder político foi sua capacidade de reivindicar soberania nacional e autodeterminação.

Em um período de 24 meses, a nova liderança de Cuba mudou o propósito do governo cubano para servir a interesses cubanos: Cuba para os cubanos.

A derrubada do governo cubano era o objetivo primordial da política norte-americana entre 1960 e dezembro de 2014. Para isso, produziram dificuldades econômicas para tornar a vida o mais difícil possível para o povo cubano. Na esperança de que eles entrariam em desespero, derrubar o governo e assim produzir o resultado esperado pelos Estados Unidos.

A nova abordagem procura dar poder ao povo de Cuba para fazê-los largar da dependência do governo cubano e assim servir como agentes internos para a mudança política.

Cuba poderia ser inundada com capital, turistas e produtos norte-americanos. Agora resta ver como será a relação entre os cubanos e esse novo ambiente social e econômico.

Para se ter uma noção da resposta de Che, veja a carta que Fidel Castro escreveu (ela foi publicada no jornal estatal de Cuba em janeiro), na qual apoia a transição com má vontade. Ele reconhece a necessidade inevitável de reconciliação com os Estados Unidos, mas continua a ser muito, muito, cauteloso.

Che Guevara um mito do passado

Carmelo Mesa-Lago, professor de economia na Universidade de Pittsburgh

Quando a União Soviética se desintegrou em 1990, Cuba entrou em uma grave crise econômica, a pior desde a Grande Depressão. Fidel não teve outra alternativa além de fazer reformas: ele legalizou a circulação do dólar e investiu no setor de turismo para receber estrangeiros.

Empregos privados e um mercado agrícola foram permitidos. Isso gerou efeitos positivos na economia.

Fidel nunca gostou dessas reformas orientadas pelo mercado, ele simplesmente nunca teve outra alternativa.

Cuba está se privatizando. Eles anunciaram em 2010 que teriam que demitir 1,8 milhão de trabalhadores no setor estatal. Isso representa 36% da força de trabalho.

Agora é possível comprar e vender casas, os cubanos podem ter uma segunda casa no campo ou na praia. O Estado mantém a posse da terra, mas dá contratos de dez anos para fazendeiros para que eles possam investir na terra. Che se oporia a isso.

Raúl percebeu há um tempo atrás que o sistema não poderia continuar, mas Fidel estava no comando, e ele não poderia ir contra Fidel. Quando ele assumiu, gradualmente começou a implementar as reformas.

Che Guevara era um idealista e poderia dizer que Raúl está traindo a revolução.

[Mas] ninguém em Cuba está pensando no que Che Guevara pensaria. As pessoas não querem sonhos. Elas apoiaram esse sistema por 54 anos. E agora querem comprar coisas, viajar, comprar suas casas.

Você encontra retratos de Che Guevara em qualquer lugar na América Latina. E claro que há um grande retrato de Che Guevara na Plaza de La Revolucion, que Fidel usava para falar com a nação. Mas é como uma brincadeira. É simplesmente um mito do passado.

Reformas no 'espírito do Che'

Rafael Hernandez é o editor-chefe da revista estatal cubana 'Temas'

As visões de Che Guevara são mal entendidas. Nós não queríamos impor o modelo socialista soviético, mas criar um tipo diferente de sistema socialista, e nesse sistema socialista havia uma presença legítima do setor privado.

Apenas em 1968 a Revolução Cubana nacionalizou os últimos pequenos negócios em Cuba. Em outras palavras, a Revolução Cubana conviveu com o setor privado por nove anos.

A Revolução Cubana em 1968 teve uma virada em direção a um movimento ideológico mais radical. Naqueles anos, a questão de se aproximar de uma sociedade comunista se tornou parte da agenda cubana em termos de: 'nós temos que construir o socialismo e o comunismo ao mesmo tempo'. Aquela ideia se tornou predominante e fez Cuba eliminar os 60 mil negócios privados que haviam sobrado.

Raúl Castro está promovendo um sistema mais descentralizado, e eu penso que esse é o sistema que Che Guevara queria: ter um setor público que pudesse ser mais eficiente.

[Em um encontro com os Estados Unidos em 1961,] Che Guevara estava dizendo que não faria nenhuma mudança em nosso sistema, mas estamos prontos para discutir qualquer outra coisa. Na metade da Guerra Fria, a mensagem que Che Guevara estava enviando ao governo Kennedy era 'nós queremos paz, nós queremos dialogar e nós queremos negociar'.

Se o socialismo só consegue sobreviver em uma 'urna de vidro' [em um país isolado], é impossível ele se sustentar.

Nesta manhã, eu estava em uma palestra com uma multidão de jovens, e muitos citavam Che Guevara ao falar de nossos problemas atuais. Isso significa que seu pensamento está vivo.