Topo

Por que os policiais se matam: pesquisa traz números e relatos de suicídios de PMs

Márcio Alves/Agência O Globo
Imagem: Márcio Alves/Agência O Globo

Fernanda da Escóssia

Do Rio de Janeiro

26/03/2016 16h36

Policial militar no Rio de Janeiro, Miguel era agressivo em casa e brincava de roleta-russa diante da mulher e dos filhos. Com colegas de trabalho, comentava que tinha vontade de dar um tiro na cabeça. Um dia deu: matou-se no banheiro de casa, com a própria arma.

João, policial do Batalhão de Choque, suicidou-se dentro da unidade, aos 32 anos. Descrito pelos amigos como extrovertido, comentou com eles, certo dia, que tinha problemas e estava separado da mulher. Matou-se no mesmo dia e deixou duas cartas, uma para ela e uma para o pai.

Regina, de 27 anos, tinha o sonho de entrar para a polícia. Era solteira, não tinha filhos e morava sozinha. Matou-se com um tiro na cabeça, dentro de casa.

Os nomes citados acima são fictícios, mas as histórias são reais. Estão contadas em “Por que os policiais se matam”, o mais completo diagnóstico sobre o problema do suicídio na Polícia Militar do Rio de Janeiro, resultado de uma pesquisa conduzida pelo GEPeSP (Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção), da Uerj, sob a coordenação da cientista política Dayse Miranda, em parceria com a PM fluminense.

O estudo, com coautoria de cinco psicólogos da Polícia Militar e de pesquisadores da Uerj de diferentes áreas, investiga fatores que levam ao suicídio de policiais e inova ao propor um plano de prevenção do comportamento suicida – com ações que incluem desde palestras até um treinamento para os profissionais de saúde da PM fluminense. O livro será lançado no dia 30 de março no Rio, no seminário “Prevenção do comportamento suicida entre policiais militares”.

Alguns resultados da pesquisa do GEPeSP foram revelados pela BBC Brasil em agosto de 2015: de 224 policiais militares entrevistados, 10% disseram ter tentado suicídio e 22% afirmaram ter pensado em suicídio em algum momento. Em contrapartida, 68% disseram nunca ter tentado nem pensado em se matar.

Agora, a íntegra da pesquisa traz números e relatos dramáticos do suicídio de policiais, investigando seus possíveis fatores – diretamente associados a problemas como falta de reconhecimento profissional, maus-tratos e quadros depressivos. Outra queixa frequente é a transferência, para a família, de relações violentas comuns no quartel.

Risco de suicídio é 4 vezes maior

De acordo com dados citados na pesquisa, cuja fonte é a própria Polícia Militar, de 1995 a 2009 foram notificados 58 casos de suicídio de policiais militares no Rio, mais 36 tentativas de suicídio. Dos 58 óbitos por suicídio de PMs da ativa, três aconteceram em serviço e 55 nos dias de folga. Foram em média três suicídios a cada ano. O número de mortes por suicídio na folga foi 18 vezes maior do que em serviço.

A pesquisa alerta, porém, para a subnotificação do problema: “As entrevistas com profissionais de saúde da PMERJ sugerem que muitos dos casos de suicídios consumados e tentativas de suicídio não são informados ao setor responsável por inúmeras razões. Entre elas, estão as questões socioculturais – o tabu em torno do fenômeno; a proteção ao familiar da vítima (a preservação do direito ao seguro de vida) e a existência de preconceito ao policial militar diagnosticado com problemas emocionais e psiquiátricos”, afirma o livro.

Com base nos dados, os pesquisadores estimaram o risco relativo das mortes por suicídio de PMs (homens e mulheres) em comparação ao da população geral do Estado entre 2000 e 2005. Concluíram que o risco relativo de morte de PMs por suicídio foi quase 4 vezes superior ao da população geral.

Enterro PM - Guilherme Pinto/Extra/Ag. O Globo - Guilherme Pinto/Extra/Ag. O Globo
Oficiais prestam homenagem durante enterro de PM no Rio de Janeiro
Imagem: Guilherme Pinto/Extra/Ag. O Globo

Algozes e vítimas

A Polícia Militar fluminense tem histórico de ações violentas, com envolvimento de policiais militares com casos emblemáticos como a tortura e morte do pedreiro Amarildo de Souza, em 2013. Pesquisas realizadas ao longo dos últimos anos mostram que PMs do Rio matam muito.

Segundo estudo do sociólogo Ignacio Cano apresentado no ano passado no 9º Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Rio de Janeiro era, em 2014, o Estado com maior taxa de letalidade na ação policial, ou seja, tinha o maior número de pessoas mortas pela polícia para cada 100 mil habitantes.

A novidade do trabalho do GEPeSP é justamente mostrar o policial não só como algoz, mas também como alguém em sofrimento psíquico.

Ao longo do trabalho, os pesquisadores da Uerj e os psicólogos da PM entrevistaram 224 policiais voluntários e investigaram mais 26 casos de suicídio de PMs de 2005 a 2009, conseguindo assim traçar um perfil dos suicidas. Concluíram que o praça (sargento, cabo ou soldado) do sexo masculino, de 31 a 40 anos, é a principal vítima de suicídio.

Segundo o Grupo de Atendimento aos Familiares de Policiais Militares Falecidos, desses 26 policiais que se mataram, só dois eram mulheres; 55% tinham de 31 a 40 anos. Quatorze eram casados ou viviam em união consensual; 14 tinham pelo menos um filho; nove foram definidos pelos parentes como brancos e 17 pardos.

Dos 26, dez eram evangélicos; 23 eram praças (sargentos, cabos e soldados); dois coronéis e um subtenente. Em relação à situação funcional, 19 eram da ativa e sete eram inativos. Dos 26, 13 trabalhavam em unidades operacionais e três em unidades administrativas.

Com base nas entrevistas dos 224 policiais e nos diagnósticos com as famílias de 26 policiais suicidas, os pesquisadores elencaram possíveis fatores para o sofrimento psíquico, culminando com as tentativas de suicídio e o suicídio em si.

Esses fatores incluem: rotina de agressões verbais e físicas (perseguições/amedrontamento, abuso de autoridade, xingamentos, insultos, humilhações); insatisfação com a PM, no que concerne a escala de trabalho, infraestrutura, treinamento, falta de reconhecimento profissional, falta de oportunidades de ascensão na carreira e desvalorização pela sociedade; indicadores de depressão variados e problemas de saúde física.

Vemos uma interface de tensão entre o mundo do trabalho, com o policial está sujeito a relações abusivas, e o mundo fora do trabalho, quando o policial doente reproduz relações violentas. Tudo isso num contexto em que o policial tem acesso a uma arma, o que facilita qualquer ato violento. Outros profissionais também têm problemas no trabalho. Mas não têm uma arma na cintura”

Dayse Miranda, coordenadora da pesquisa e organizadora do livro

Plano de ação

“Por que os policiais se matam?” propõe dois tipos de intervenção para redução do risco de suicídio entre policiais. Uma de cunho geral, com palestras, gestão de pessoal (revisão das escalas de trabalho), gestão de logística (melhores locais para refeições e alojamento), formação e treinamento; e outra mais específica, voltada para o atendimento do policial em situação de risco.

Entre as estratégias específicas está a criação de um protocolo sobre como lidar com um potencial suicida, considerando os níveis de risco. Outro ponto importante é o alerta sobre o uso de arma de fogo. Em casos extremos, em que o policial for considerado de alto risco de cometer suicídio, pode-se providenciar para que sua arma seja recolhida.

“Retirar a arma de um policial não é simples, principalmente no caso de um policial doente. Outra dificuldade é que não há uma regra que defina em que circunstâncias de se acautelar a arma de fogo”, afirma Dayse Miranda.

“Sofrimento psíquico constitui preocupação”, diz o comando da PM.

Procurado pela BBC Brasil para comentar o livro, o comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro, coronel Edison Duarte dos Santos Junior, afirmou, em entrevista por e-mail, que a corporação tem ciência dos problemas de saúde física e mental enfrentados pelos policiais, sobretudo no que diz respeito aos afastamentos por problemas psiquiátricos.

“O sofrimento psíquico constitui preocupação por parte do comando da PMERJ, que tem dedicado esforços para o oferecimento de suporte psicológico para seus integrantes de forma ampliada, descentralizada e voluntária. Embora seja necessário aprimorar mais ainda a prestação de assistência psicológica, é preciso ressaltar que a PMERJ é a única Corporação no país que dispõe de quadro com 95 oficiais psicólogos, distribuídos em unidades de saúde (hospitais e policlínicas), operacionais (batalhões), unidades de ensino e formação, de seleção de pessoal, e unidades administrativas, tanto da Capital, quanto do interior do Estado”, afirmou o comandante.

Segundo o coronel Duarte, o principal programa de prevenção em saúde biopsicológica na PMERJ é o Serviço de Atenção à Saúde do Policial Militar (SASP), citado na pesquisa da Uerj, com equipes multidisciplinares que realizam avaliações gerais de saúde obrigatórias uma vez por ano para todos os PMs da ativa. Policiais que apresentam sofrimento psíquico são encaminhados para tratamento psicológico.

Ainda sobre a pesquisa da Uerj, o coronel Duarte afirmou ter interesse em realizar ciclos de palestras para os comandantes, diretores, coordenadores e chefes de todas as unidades, operacionais ou administrativas, para que eles possam efetivamente conhecer dos resultados e os fatores de risco de suicídio, além de aprender a lidar com o problema.

“Este é mais um desafio a ser enfrentado por todos na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. O comando da PM terá sempre o cuidado de dar atenção total à saúde física e mental e ao bem-estar do policial militar”, afirmou Duarte.