'Avenida São João, sem número': os moradores que construíram casas inteiras nas ruas de São Paulo
Quando Wladimir del Vecchio acordou, na manhã do primeiro sábado de abril, observou a janela aberta para um lago, refletindo o céu claro sobre um jardim de flores rosas, arbustos verde-pântano e montanhas num horizonte distante. Era o terceiro dia sem acender nenhum cachimbo de crack.
A imagem da casa no bosque, preservada em uma tela encontrada no lixo dias antes, conseguiu lhe distanciar da realidade apenas por alguns minutos. "O barulho impossibilita qualquer distração", comenta. À esquerda e à direita, ouve-se o barulho de ônibus, carros e motos, a movimentação de pessoas pela calçada e os latidos de um cão aparentemente abandonado.
Ainda deitado em um colchão de casal, são seus móveis improvisados que lhe dão alguma privacidade. Quem passa pela avenida São João, no centro de São Paulo, não consegue enxergar o que há dentro da "sala" em que ele vive desde o início do ano. Pedestres rumo ao metrô e motoristas passam ali, porém, curiosos com as dimensões do local.
Wladimir, de 33 anos, mora há três meses no espaço central da avenida, entre duas colunas do elevado João Goulart - conhecido como Minhocão -, em frente à estação Marechal Deodoro do metrô paulistano.
Desde então, passou a coletar objetos na rua para construir o espaço: são aproximadamente sete metros quadrados cuidadosamente distribuídos e delimitados pelo sofá ainda novo, um armário com prateleiras, outro fechado para guardar roupas, uma pequena escrivaninha para computador e, colado a ela, uma mesa de cozinha com cadeiras, armário e um dispositivo para armazenar água.
A organização dos enfeites, utensílios e objetos chama a atenção. Há estrelas de isopor e duas pinturas a óleo penduradas no pilar do viaduto, imagens religiosas, uma garrafa cheia de uísque e xícaras de café limpas nas prateleiras, além de livros, preservativos, toalhas e roupas na escrivaninha.
"A 'sala' deu mais trabalho, porque trouxe tudo nas costas mesmo. O sofá durou um dia inteiro de caminhada, mas, como estava 'louco de pedra', nem me importei", conta.
"Moro na rua há quatro anos e nunca tinha visto nada igual", comenta Antônio, "vizinho" de Wladimir sob o viaduto, e que possui apenas um colchão e um caixote de feira para seus pertences. "Já estou vendo o dia que a Prefeitura vai chegar aí e levar tudo."
Comerciantes da região fazem a mesma previsão. "Eles sempre começam a montar aos poucos, mas, de uma hora pra outra, amanhece sem ninguém aí", conta Ricardo Alfeno, gerente de um restaurante ao lado do metrô.
"A presença deles é 'sazonal' aqui no Minhocão. Parece que vão migrando. Tem época que não tem ninguém morando e tem outras que lota. Mesmo assim, nunca tinha visto erguerem um 'puxadinho' desses", concorda Afonso Oliveira, cujo restaurante do outro lado da rua leva seu sobrenome.
Pai de dois filhos (Victor Henrique, de 16 anos, e Gabriel, de 8anos), frutos de relacionamentos diferentes, Wladimir agora está solteiro. "Minha companhia tem sido os livros", comenta orgulhoso.
No começo de abril, ele estava lendo uma coletânea de poemas de Fernando Pessoa e um livro com mensagens cristãs diárias. Não gosta de comentar sobre o passado, mas repete que, há alguns anos atrás, ainda "abria garrafas na balada" e andava de "carro novo".
Projeção
Para o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo da Rua, há uma mensagem clara na construção de espaços semelhantes às casas comuns: o desejo. "Eles projetam aquilo que internalizaram no período da socialização e que hoje não possuem, que é uma casa. A casa na rua é a reprodução da moradia que queriam ter", afirma.
Lancelotti também vê essas instalações improvisadas como possível reação à chegada do inverno. No ano passado, segundo a Arquidiocese de São Paulo, cinco moradores de rua morreram de frio. A média registrada na capital paulista durante o período é de 12°C, temperatura que cai ainda mais na madrugada.
Cacá Ferreira, presidente da ONG Anjos da Noite, uma das pioneiras no trabalho de entrega de alimentos às pessoas em situação de rua em São Paulo, avalia o fenômeno como recente. "A gente começou a perceber essas instalações mais complexas há cerca de seis meses. As pessoas levam móveis, constroem verdadeiras casas na rua. É surpreendente", diz.
Casa na praça
Se o "bosque" de Wladimir é apenas um retrato na parede do Minhocão, para Luciano Muniz, de 41 anos, a visão é mais palpável. Desde abril de 2004, ele vive quase isolado em um casebre de madeira erguido na arborizada praça Humberto de Campos, a cerca de 500 metros do início da avenida Paulista. "É uma solidão boa."
Aparentemente pequena para um homem de porte médio, a "casa" de Luciano possui organização e capricho nos detalhes: tábuas coletadas e cortadas para levantar as minúsculas paredes foram lixadas e envernizadas. No interior, há luz elétrica por meio de uma instalação da rua, uma TV pequena, um aparelho de rádio e prateleiras, além de um contrapiso de concreto.
"Tinha um porcelanato que tirei esses dias, porque quero trocar", conta. Fora da casa, há um amplo espaço ao ar livre com árvores, grelha para cozinhar e galões de água enfileirados. Tudo protegido por uma "cerca" de barbante.
Natural do Recife (PE), Luciano chegou a São Paulo em setembro de 1995, com um primo. Passou os três primeiros anos vivendo em Mairiporã, na região metropolitana, e depois chegou a viver com esposa numa casa em Perus, no extremo norte da capital paulista, Em 2004, após problemas pessoais, foi viver com um amigo na praça. Com a morte dele, Luciano ficou sozinho no local.
"Essa praça é minha. Ela é conhecida pelos moradores como 'praça do Luciano'. Nada acontece aqui sem a minha 'jurisdição'."
O casebre de madeira é a terceira instalação de Luciano na praça. Quando ele chegou ao local, dormia debaixo de uma lona emprestada pelo amigo. Depois arrumou uma barraca e um guarda-sol, confiscados há dois anos pela prefeitura.
Desde então, passou a investir na construção do pequeno dormitório. "Fui achando concreto nas caçambas, madeira nos lixos, verniz, prego. Fiz tudo sozinho", afirma.
Ação da prefeitura
Em junho de 2016, a imprensa noticiou que agentes da Guarda Civil Metropolitana (GCM) de São Paulo estavam recolhendo colchões, sofás, cobertas, documentos e até roupas íntimas de moradores de rua.
Com a repercussão negativa, o então prefeito Fernando Haddad (PT) e a Defensoria Pública da cidade publicaram um decreto naquele mês estabelecendo que apenas a Zeladoria Urbana (conjunto de equipes das subprefeituras responsáveis pela manutenção de áreas públicas) poderia agir em casos de pessoas em situação de rua. A GCM, pelo decreto, só poderia acompanhar os funcionários.
De acordo com a norma, as equipes deveriam respeitar bens pessoais, instrumentos de trabalho e os chamados "itens de sobrevivência", como agasalhos, camas e cobertores. O decreto previa, contudo, que a zeladoria poderia remover objetos que estivessem atrapalhando a circulação pública.
Apesar da nova regra, ações truculentas envolvendo a GCM continuaram a ser denunciadas na imprensa e por entidades sociais.
"Embaixo do viaduto Guadalajara (centro de São Paulo), por exemplo, os moradores de rua seguiram sofrendo com a chegada dos agentes, mesmo com a repercussão daquela época", diz Lancelotti.
Em janeiro deste ano, a gestão João Dória (PSDB) modificou cinco artigos do decreto de Haddad - entre eles, o que impedia, ao menos em tese, a Guarda Civil de agir efetivamente nos casos envolvendo moradores de rua.
Se antes o texto dizia que cabia à GCM apenas acompanhar equipes da administração municipal, a nova publicação não fazia referência à ação dos guardas.
Dória ainda inseriu na lei um inciso que diz que "bens inservíveis, excessivamente deteriorados ou que não revelem valor econômico ou utilitário poderão ser descartados de imediato". O texto anterior dizia que a "natureza de um bem deverá ser perguntada ao proprietário dele".
Em nota, a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social, responsável por maior parte das ações de zeladoria, negou que faça "desmontagem de barracas ou retirada de qualquer tipo de pertence de moradores em situação de rua".
O subprefeito da Sé, Eduardo Odloak, no entanto, afirmou que há, sim, ações para retirada de pertences dos moradores de rua, e que elas tentam equilibrar "respeito" e "firmeza".
"Uma coisa é tolerar as estruturas que eles dormem: montam às 22h, deitam, e 7h da manhã já vão embora. Mas, se você não incomodar, vai surgindo sofá, geladeira, televisão."
Para o padre Júlio Lancelotti, independentemente do partido, as ações das administrações municipais com pessoas em situação de rua são geralmente truculentas.
"Enviei mensagem ao prefeito questionando a mudança do decreto, e ele me respondeu que ninguém ia importunar os moradores de rua. Não é o que estou vendo. Todos os dias o 'rapa' (Zeladoria Urbana), a GCM e, em algumas regiões, os comerciantes, atacam as pessoas nessa situação", denuncia.
Censo
Em 2015, ano do último censo da administração municipal, São Paulo tinha 15.905 pessoas em situação de rua.
Nos últimos 15 anos, essa população cresceu 82%, um ritmo desproporcional ao da metrópole, que registrou aumento de 15% no número de habitantes no mesmo período (10,4 milhões em 2000 para pouco mais de 12 milhões em 2015).
Ainda segundo o censo, mais da metade (52%) dos moradores de rua vivem na área sob gestão da Subprefeitura da Sé, que compreende os bairros onde estão hoje Wladimir e Luciano.
Apesar do relativo "conforto" em relação a outros moradores de rua, Wladimir e Luciano dizem viver apreensivos com as ações da prefeitura.
"Até agora ninguém veio, mas com esse movimento de gente passando aqui curioso, não vai demorar", afirma Wladimir. O plano dele, caso isso aconteça, é se mudar para a Cracolândia. "Só que se for para lá volto para a droga também", lamenta.
Luciano, porém, é mais incisivo. "Eu construo de novo. Uma ainda melhor."
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