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Para diplomatas, estrutura do Itamaraty abre caminho para arbitrariedade e perseguição política

Discussão sobre "perseguição política" no Itamaraty ganhou fôlego após remoção de diplomata de posto - Getty Images
Discussão sobre 'perseguição política' no Itamaraty ganhou fôlego após remoção de diplomata de posto Imagem: Getty Images

Mariana Schreiber - @marischreiber

Da BBC Brasil em Brasília

17/10/2017 13h17

"Diplomacia do cagaço" - assim um diplomata definiu à BBC Brasil o funcionamento interno do Ministério das Relações Exteriores. A expressão serve, segundo ele, para resumir o medo que os diplomatas têm de contrariar superiores ou fazer críticas à política externa brasileira, seja internamente ou publicamente, em um sistema que vem se repetindo em diversos governos nas últimas décadas.

A BBC Brasil conversou nos últimos dias com quatorze diplomatas, de diferentes posições políticas e tempo de carreira, para apurar se existem casos de perseguição política no Itamaraty. A discussão ganhou fôlego após o ministério remover bruscamente Julio de Oliveira Silva do posto de vice-cônsul em Nova York por causa de um artigo crítico à política externa do governo Michel Temer.

A reportagem levantou casos pontuais vistos por alguns como de retaliação política a diplomatas pela atual administração. No entanto, diversas fontes apontam um problema mais estrutural, centrado na falta de transparência e clareza nas promoções (subir de cargo) e remoções (transferências para servir no exterior) que já existiria há muitos anos no órgão.

A maioria das entrevistas indicou que a progressão na carreira e a distribuição dos postos é definida com boa dose de subjetividade, o que abre espaço para decisões arbitrárias e clientelistas, independente de qual seja o governo. Como não há critérios claros, dizem eles, as escolhas acabam sendo influenciadas por relações pessoais ou mesmo afinidade política, o que exige uma constante diplomacia pessoal.

"É uma estrutura danosa. No fundo está todo mundo preocupado com a sua remoção ou promoção. E daí você entra nesse ciclo vicioso de baixar a cabeça e acaba se restringindo ao manifestar suas ideias", afirma outro diplomata.

A BBC Brasil apurou que, no último plano de promoções, um conselheiro foi "pulado", ou seja, pessoas mais novas na carreira foram promovidas e ele não, o que no jargão do Itamaraty é chamado de "levar carona". Diplomatas entrevistados acreditam que isso ocorreu por causa de um artigo em um livro crítico à política externa - procurado, o autor não quis falar por temer represálias.

"A falta de transparência nos critérios internos, na própria estrutura do Itamaraty, vem de longe. Não é desse governo. Na época do Celso Amorim (chanceler do presidente Lula) era a mesma coisa. Você era promovido, ninguém sabia por que, não era promovido, ninguém sabia por que também", ressaltou um dos entrevistados.

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O diplomata Julio de Oliveira foi removido de posto após publicar artigo crítico ao governo
Imagem: Arquivo pessoal

Remoção após críticas

No caso de Silva, ele foi convocado de volta à Brasília pelo ministro Aloysio Nunes depois de publicar um artigo no site da revista Carta Capital dizendo que a recente visita de Temer à China, focada em atrair investimentos para projetos de privatização, colocou o Brasil no papel de "colônia em potencial".

Sua remoção foge do padrão do Itamaraty - as mudanças de posto costumam ocorrer coletivamente, a cada seis meses, e os diplomatas são consultados previamente sobre suas preferências. "Eu nem fui comunicado. Soube por amigos que viram a decisão no Diário Oficial", contou Silva.

A Lei do Serviço Exterior prevê que os diplomatas devem pedir autorização prévia para se manifestar publicamente sobre política externa. Em sua defesa, Silva diz que consultou a assessoria de imprensa do Itamaraty e foi orientado apenas a incluir um alerta de que as opiniões expressas no artigo eram sua manifestação pessoal, o que ele fez.

Quase todos os diplomatas ouvidos pela BBC Brasil criticaram a decisão do Itamaraty, ato que alguns chamaram de "violência" e "autoritarismo". Parte, no entanto, disse que diplomatas não devem fazer críticas públicas ao órgão ao qual estão servindo e defenderam a abertura de um processo administrativo.

Defensores de Silva argumentam que, no governo de Dilma Rousseff, diplomatas que criticaram abertamente a presidente em artigos ou nas redes sociais não receberam punição semelhante.

A BBC Brasil procurou algum desses diplomatas e eles sustentaram que esse caso seria diferente por que ele fez uma crítica direta não ao presidente ou sua política doméstica, mas a sua política externa, sem estar licenciado do Itamaraty.

O embaixador aposentado Rubens Ricupero é um dos que achou a reação de agora exagerada.

O ex-ministro da Fazenda de Itamar Franco também se sentiu retaliado pelo atual governo após, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, dizer que hoje "ninguém quer sair na foto com o Brasil". Em nota dura, o Palácio do Planalto afirmou que "Ricupero se mostra desantenado, escondendo fatos e propagandeando falsidades para justificar suas afinidades eletivas".

Depois disso, o embaixador desistiu de lançar seu novo livro no Itamaraty, em evento que já estava programado. À BBC Brasil, disse que temia que os diplomatas que comparecessem fossem prejudicados. "O que aconteceu comigo e com esse rapaz mostra a suscetibilidade desse governo, que está muito acuado porque só tem 3% de apoio (segundas pesquisas de opinião)", disse.

Futuro incerto

Procurado pela BBC Brasil, o Itamaraty se recusou a comentar o caso de Silva e informar qual será a nova função do diplomata. Além da remoção, aos 32 anos, o hoje segundo-secretário corre o risco de amargar mais tempo na fila para subir na carreira. "Vão me colocar na geladeira, tenho certeza", afirmou.

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'Vão me colocar na geladeira, tenho certeza', diz Silva
Imagem: Arquivo pessoal

A carreira de diplomata tem seis níveis - todos começam como terceiro-secretário e podem progredir até embaixador. A primeira promoção ocorre automaticamente, por tempo de carreira. Nas seguintes, o sistema é de votação secreta, com diferentes etapas, em que votam os pares do mesmo nível da carreira, os superiores e os que ocupam cargos de chefia.

Segundo uma diplomata, é um "concurso de popularidade". Para o Itamaraty, é um sistema democrático que privilegia a meritocracia.

"É verdade que faltam critérios mais claros, que é importante ter alguém que te proteja e que te promova, mas pessoas capacitadas conseguem subir na carreira, com mais ou menos tempo, mais ou menos sofrimento. O modelo premia a capacidade de articulação política, que é algo importante para a diplomacia", defendeu um dos entrevistados.

Já outro considera que essa necessidade de articulação favorece os aliados de quem estiver no poder.

Sobre a gestão petista, além de afirmarem que a Amorim também favoreceria aliados na hora das promoções, a BBC Brasil ouviu críticas de que o chanceler teria relegado embaixadores "brilhantes" a cargos inferiores por falta de alinhamento político.

Seria o caso do hoje embaixador na China, Marcos Caramuru, que ficou anos à frente da embaixada da Malásia, e também de Gelson Fonseca, que, após atuar como assessor especial da Presidência e embaixador na ONU no governo Fernando Henrique Cardoso, ocupou cargos menores no de Lula, como cônsul-geral em Madri.

À BBC Brasil, Celso Amorim respondeu: "Posso garantir que nunca pratiquei discriminação por motivos ideológicos. É natural, também, que, sem cometer arbitrariedades ou produzir truculência, os ministros procurem ter em lugares (postos) mais sensíveis pessoas de sua confiança".

Punição que pode levar à demissão

No atual governo, outro caso controverso é o do Milton Rondó, que foi exonerado da chefia da área de combate à fome em junho de 2016, cerca de um mês após o afastamento de Dilma. Pouco antes disso, em março, ele havia disparado três telegramas para os postos do Itamaraty no exterior em que reproduzia notas de movimentos sociais e ONGs do país chamando o impeachment de "golpe".

O caso gerou um processo administrativo, aberto ainda no governo Dilma e concluído no governo Temer, que determinou pena de "advertência" contra Rondó por ter enviado esses telegramas em desacordo com suas funções.

Para além dessa punição, no entanto, o diplomata continua sofrendo consequências. A BBC Brasil apurou que até hoje Rondó não foi designado para outra função no Itamaraty. Diante disso, o diplomata optou por tirar férias e licença-prêmio, ficando oito meses afastado do ministério. Ele retornou há mais de um mês e segue aguardando lotação.

Diplomatas ouvidos pela BBC Brasil ponderaram que o processo de realocá-lo é lento porque há poucos cargos para diplomatas que já estão em níveis mais altos na carreira, caso de Rondó, atualmente ministro de segunda classe, o último antes de embaixador.

A maior ameaça que paira sobre o diplomata agora, no entanto, vem de fora do Itamaraty. O Ministério Público Federal abriu uma investigação contra Rondó por improbidade administrativa, atendendo pedido realizado em março de 2016 pelo então deputado Raul Jungmann (PPS-PE), hoje ministro da Defesa, que acusou o diplomata de usar seu cargo, sem autorização da chefia, para expressar opiniões pessoais.

Após a conclusão do inquérito, os procuradores agora pedem a demissão de Rondó e que ele pague multa equivalente a 12 meses de salário. Diplomatas ouvidos pela BBC Brasil consideraram o pedido exagerado. Tanto Jungmann como o Itamaraty não quiseram comentar.