"Ninguém liga para PMs mortos", diz americana que luta por justiça para noivo executado no Rio
Cassia Roth e Clayton Fagner Alves Dias eram um casal improvável. Ela, uma historiadora americana em vias de obter o título de doutorado pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA); ele, um policial militar do Rio de Janeiro, lotado na Unidade de Polícia Pacificadora da favela de Manguinhos e prestes a interromper a breve carreira de PM para se mudar para os Estados Unidos, se casar com a noiva e iniciar uma nova vida.
Faltava pouco mais de um mês para a viagem planejada quando Clayton foi perseguido por traficantes da comunidade da zona norte do Rio ao deixar o serviço. De moto a caminho de casa, o PM de 30 anos foi atingido por quase 20 tiros pelas costas na Estrada do Galeão, na Ilha do Governador, por volta das 19h. Chegou a sobreviver a uma cirurgia, mas morreu horas depois do ataque. Era a madrugada de 29 de abril de 2015.
Quase três anos se passaram e o caso de Clayton permanece sem resolução, como mais de 90% dos homicídios que ocorrem no Brasil, e em meio à estatística alarmante de assassinatos de PMs no Rio.
Em meio à grave crise fiscal do Estado, aos cortes de recursos para a segurança pública e à escalada de violência no Rio, 134 PMs foram mortos em 2017 e outros 146 no ano anterior. Em 2015, Clayton foi um dos 91 PMs assassinados no Estado.
Cassia deixou o Brasil após a morte de Clayton, mas vem lutando como pode para que o assassinato seja elucidado. Quatro traficantes foram identificados e há suspeita de que uma banda podre da polícia tenha tido envolvimento.
No processo, a americana diz que vem tendo de lidar com grandes diferenças estruturais e culturais entre os Estados Unidos e o Brasil - tanto no sistema criminal e nas taxas de elucidação de homicídio quanto na forma de a sociedade brasileira ver a polícia.
"Já faz quase três anos e ninguém foi a julgamento ainda. Nesse meio tempo, muitos outros policiais foram assassinados, e o trabalho dos investigadores vai se acumulando. Faltam recursos para investigar, mas também falta ênfase por parte do governo", lamenta ela.
"Parece que ninguém liga", desabafa. "Acho que isso reflete a maneira como as pessoas veem a Polícia Militar. Elas já supõem que policiais sejam violentos e sejam corruptos. Não ligam (quando morrem)", diz Cassia, agora fazendo um pós-doutorado em Edimburgo, na Escócia.
Sem recursos, sem punição
Nos Brasil, a taxa geral de elucidação de homicídios é estimada em cerca de 8%, com variações de um Estado para o outro. Mas não há números confiáveis para acompanhar a situação nacional.
Estudo recente do Instituto Sou da Paz, intitulado "Onde mora a Impunidade?" concluiu que apenas seis Estados brasileiros tinham estatísticas consistentes que permitissem estimar uma taxa de esclarecimento.
Um deles é o Rio, onde 11,8% dos homicídios cometidos em 2015 geraram denúncias criminais para que fossem levados a julgamento, segundo o levantamento.
A taxa está muito abaixo da média dos Estados Unidos, por exemplo, que esclarece em torno de 65% dos assassinatos.
Diante do aumento do número de mortes de policiais militares no Rio, a Secretaria de Segurança Pública criou, em 2016, uma divisão especial dentro da Delegacia de Homicídios para investigar as mortes de agentes de segurança de uma forma geral - como policiais militares, civis, federais, bombeiros e agentes penitenciários.
De acordo com o delegado responsável pelo núcleo, Brenno Carnevale, o núcleo conseguiu elucidar 47% dos casos ocorridos na capital entre sua criação, em agosto de 2016, e o fim do ano passado.
O número é bem superior, praticamente o dobro, ao da taxa de elucidação que o Estado tem registrado nos últimos anos, que, segundo a Secretaria de Segurança Pública, chega "a até 27%".
O número não pode ser comparado à taxa de 11,8% citada no estudo do Sou da Paz, pois não se refere aos casos em que uma denúncia criminal foi oferecida, mas sim, segundo Carnevale, aos inquéritos em que se concluiu o que aconteceu e quem foi o autor, o que nem sempre gera provas suficiente para produzir uma denúncia.
"Temos tido um percentual de descoberta relevante", diz o secretário de Segurança Pública, Roberto Sá, enumerando outras medidas que foram tomadas, "apesar de toda a escassez de recursos da Polícia Militar", para coibir a morte de policiais, como o projeto Percurso Seguro - que aumentar a segurança para agentes em seus deslocamentos - e a disponibilização de coletes a prova de balas para todos eles trabalharem.
"É uma preocupação muito grande, o número (de mortes) é elevado. O número acabou não sendo maior que o de 2016, mas isso não nos tira a dor e a comoção", disse Sá, em um encontro com jornalistas no fim do ano passado, em que falou das dificuldades apresentadas pelos cortes no orçamento e dos esforços que vinham sendo feitos para contornar a falta de recursos.
Cada pasta, um morto
Há cerca de 100 pastas gordas empilhadas com inquéritos sobre as mesas de Carnevale, situadas em uma sala de luz branca, paredes nuas e mobiliário econômico na Delegacia de Homicídios da Capital, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio.
Cada uma traz um inquérito. "Cada pasta dessas é pelo menos um morto. Alguns processos acumulam mais de um", explica o delegado.
O inquérito sobre a morte de Clayton não está entre as pastas, porque foi anterior à criação do núcleo coordenado por Carnevale. Mas a escassez de recursos de infraestrutura e de pessoal que atravanca o trabalho do delegado é o mesmo que contribui para que ninguém tenha sido acusado pela morte dele, quase três anos após sua execução.
O núcleo de Carnevale tem dez policiais e acumula não só os assassinatos de agentes de segurança, mas também os homicídios decorrentes da oposição a intervenção policial, antes conhecidos como autos de resistência.
Desde agosto de 2016, o delegado recebeu cerca de 500 desses casos, contra cerca de cem homicídios de policiais. Para os autos de resistência, ele não arrisca estimar uma taxa de elucidação - a maioria dos casos está ainda aguardando laudos cadavéricos, depoimentos de policiais e outras pendências.
"Aí a gente entra nessa discussão de recursos, de estrutura, essa coisa toda", resume.
A falta de recursos significa falta de papel para impressoras, falta de viaturas para a equipe (o que significa depender da boa vontade de testemunhas quando convocadas a prestar depoimento), falta de motivação para policiais, que receberam apenas em dezembro o décimo-terceiro de 2016, e quatro ou cinco computadores para serem usados pelos cerca de 50 agentes que atuam na Delegacia de Homicídios da Capital.
"Os delegados todos têm computador, mas os policiais não. Quando não preciso do meu, coloco um policial para trabalhar nele. Estou otimizando recursos", diz Carnevale.
O delegado não se prolonga em queixas e ressalta o esforço que sua equipe tem feito para trabalhar. É só que trabalhar está mais difícil. "Não estou nem falando de conseguir a cereja do bolo, não. É para fazer o básico, o feijão com arroz."
Ele afirma que apurar as mortes de policiais não pode ser mais importante que investigar homicídios de cidadãos comuns, mas ressalta a importância de se punir quem atenta contra agentes de segurança do Estado.
"A reposta a essas mortes é uma maneira de impor limites à atividade de criminosos que acham que podem medir forças ou mesmo se sobrepor à força de um policial. Se ele faz isso, aí mesmo que não tem mais limites", considera.
Denúncia de banda podre
Quatro suspeitos foram identificados pela morte de Clayton. Um deles, Luan Lopes da Silva, o Luanzinho, foi encontrado morto em dezembro de 2015. Havia uma recompensa de R$ 20 mil estipulada para sua prisão.
Luanzinho se intitulava "matador de policiais", e logo antes de morrer liderou um ataque à UPP do Jacarezinho que matou outros dois agentes.
Além dos traficantes, o promotor de Justiça Sauvei Lai diz que denúncias anônimas apontaram para o envolvimento de PMs no assassinato de Clayton. A Corregedoria da Polícia Militar foi acionada, mas a denúncia não foi comprovada.
O promotor diz que faltam provas contundentes para embasar uma denúncia contra os suspeitos da execução.
"Os traficantes foram identificados e conseguimos comprovar que haveria interesse na morte do Clayton", diz Lai, titular da 30ª Promotoria de Investigação Penal da 1ª Central de Inquéritos e responsável pelo caso do PM. "Mas polícia não conseguiu produzir com êxito uma comprovação contundente da participação desses indiciados", acrescenta.
De acordo com o promotor, de nada adianta o Ministério Público oferecer uma denúncia "de forma açodada" se as provas forem frágeis, já que os réus acabarão sendo inocentados por júri popular, que costuma ter uma alta taxa de absolvição.
O promotor se reuniu com Cassia Roth e sua advogada para conversar sobre o processo de Clayton e formas de buscar provas mais robustas. Um dos caminhos foi solicitar uma perícia de imagens filmadas em uma câmera que o PM levava durante as operações, para que pudessem ser usadas nas investigações.
As imagens não trouxeram revelações sobre o momento do crime - mas corroboraram a idoneidade do policial em sua atuação na UPP de Manguinhos.
"Mostram que ele era um PM atuante. Que, quando prendia, havia proposta de suborno, e ele recusava. Que estava realmente desagradando o tráfico local, que portanto teria interesse em matá-lo."
Ainda assim, diz o promotor, falta uma "bala de prata" para embasar a denúncia, e o caso voltou à Polícia Civil com pedidos para aprofundar as investigações.
Lai estima que, para cada dez assassinatos no Rio, apenas dois casos resultem em denúncias - e apenas um acabe produzindo de fato uma condenação. Ele diz que faltam recursos de todos os lados.
"Nós temos uma precariedade física, pessoal e estrutural. É como em hospital público. O médico no hospital público não faz uma escolha? Ele vai atender o paciente que tem mais chance de sobrevivência. Os policiais nas delegacias estão fazendo a mesma coisa. Cada policial recebe entre 700 e mil inquéritos para cuidar, ou até mais. É muito crime para pouco policial, temos um deficit enorme. Investigação no Brasil não é eficaz, e a razão é a deficiência pessoal e material."
Pressão familiar conta
Nesse universo de servidores sobrecarregados, o promotor afirma que costuma haver um "esforço maior" em casos de policiais assassinados porque os familiares colaboram, cobram e marcam presença.
"A grande maioria dos inquéritos arquivados é por falta de interesse dos familiares da vítima. Se uma vítima assassinada é traficante, então a família nem se digna a ir para a delegacia para esclarecer. E o Estado não vai correr atrás quando nem a família está correndo atrás", diz Sauvei Lai.
A americana Cassia Roth conhece bem as dinâmicas brasileiras. É pesquisadora de história latino-americana e morou no Rio por mais de três anos.
Ciente de que monitorar o andamento das investigações seria importante para que elas fossem adiante, contratou uma advogada para acompanhar o processo de Clayton. Desde a morte do parceiro, vem se engajando como pode para que o caso avance.
"É muito triste saber que ter recursos e educação fazem diferença para que as coisas funcionem no Brasil. Eu era uma estudante de doutorado e tive acesso a coisas que outros brasileiros mais pobres não têm, só porque tenho mais recursos. É desanimador ver que as pessoas precisam lutar tanto para conseguir seus direitos. É angustiante conviver com esse tipo de burocracia todos os dias."
Cassia teve contato com investigadores e com o promotor responsável pelo processo, buscou integrantes da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), abriu uma página em um site de financiamento coletivo para reunir recursos para ajudar a família de Clayton e escreveu um artigo relacionando o caso à situação de segurança pública do Rio para o blog acadêmico Nursing Clio, do qual é colaboradora.
No texto, contextualiza a morte dele com o histórico de violência nas favelas do Rio, a criação das Unidades de Polícia Pacificadora e a reputação da polícia fluminense de agir de forma violenta e corrupta, e diz que Clayton foi alvejado e executado por ser reconhecido em sua unidade - e pelos traficantes de Manguinhos - como um policial honesto e trabalhador.
Também fala sobre como se sentiu quando uma operação policial para prender os suspeitos da morte do noivo resultou de forma desastrosa, atingindo e matando com uma bala perdida o menino Cristian Soares Andrade, de 13 anos, na favela de Manguinhos.
A morte gerou comoção na comunidade e foi condenada por organizações defensoras de direitos humanos, como a Anistia Internacional.
Em seu artigo, Cassia considerou que as mortes de Clayton e de Cristian eram parte do mesmo espectro, e questionou por que as organizações que tinham saído em defesa do rapaz não tinham se manifestado quando seu parceiro policial foi assassinado.
"Dói quando a Justiça que (os policiais) estavam tentando fazer é para o seu ente querido, e aqueles que parecem defender os direitos humanos apagam a possibilidade de que Clayton também tivesse esses direitos", comentou no artigo.
Desde a morte do parceiro, a historiadora vê se exacerbar a desconfiança com a atividade policial, o que já sentia durante o namoro de três anos.
Era comum ouvir manifestações de surpresa por estar com um policial militar. "As pessoas me questionavam, como se não conseguissem imaginar que uma doutoranda pudesse se apaixonar por um PM", diz ela.
"Depois que ele morreu, uma acadêmica brasileira me falou: 'vamos te arranjar um outro brasileiro que não seja um policial militar'", lembra Cassia, que até hoje se enfurece ao lembrar do episódio.
Ela evita comparações com os Estados Unidos, e lembra que lá há muitas questões problemáticas na polícia, casos que explicitam um racismo estrutural. "Mas, generalizando muito, acho que há mais respeito por policiais."
Trajetória interrompida
Cassia chegou ao Brasil em 2011 para fazer a pesquisa para seu doutorado, sobre saúde reprodutiva e direitos de mulheres brasileiras entre 1890 e 1940, após a abolição da escravatura.
Foi apresentada a Clayton por um amigo em comum, em 2012, fazendo a longa trilha que sobe do Parque Lage, no Jardim Botânico, até o Cristo Redentor. Lembra que estava com duas amigas brasileiras, e que ele levou suas mochilas para aliviá-las do peso. A oferta mexeu com seus brios feministas.
"Eu achei aquilo ridículo, mas ele perguntou se eu queria que carregasse a minha também. Falei que não precisava de um homem, que podia carregar a minha própria mochila", ri. "Na semana seguinte, marcamos de sair, e alguma coisa clicou", lembra.
"O Clayton era um ser humano extraordinário. Cresceu em condições muito adversas e sempre lutou para ser uma pessoa melhor. Fico muito triste que ele não pôde ter a vida que ele merecia", diz a historiadora, que levou para a Escócia o vira-lata Fox, que o noivo encontrou em Bonsucesso e o casal adotou. "Ele agora é o rei de Edimburgo."
Clayton tinha ensino médio completo e origens "muito humildes", filho de mãe nordestina que veio para o Rio atrás de emprego. Ainda estava na Escola da Formação de Praças da PMERJ (Cefap) quando se conheceram.
"Ele era muito idealista. Acreditava no projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Mas foi se desencorajando com o que viu. Ele não era corrupto, isso as investigações confirmam com muita clareza. Mas outros a seu redor eram", diz Cassia.
Notícia pelo Google
A americana estava em Los Angeles e tinha acabado de embarcar em um avião para ir ver os avós quando soube do assassinato. Estava inquieta com a falta de notícias do parceiro, que não respondera suas últimas mensagens de texto.
Antes da decolagem, por um impulso jogou as palavras no Google: "Policial militar, UPP Manguinhos". E viu a notícia de que um policial lotado naquela unidade havia sido baleado a caminho de casa na Ilha do Governador, onde ela morava com o noivo.
"Liguei para seu irmão, e o Clayton tinha acabado de morrer. Saí do avião e peguei o próximo voo de volta para o Rio."
Ao chegar, Cassia foi do aeroporto direto para o enterro de Clayton. No caminho, passou necessariamente pela Estrada do Galeão, onde ele fora baleado. Hoje, ela continua voltando ao Brasil periodicamente para cuidar de burocracias relacionadas ao caso, que incluem um pedido póstumo de reconhecimento de união civil, no qual deu entrada para tentar ajudar a família de Clayton financeiramente.
Depois da grande história de amor que viveu, ela pena toda vez que tem que voltar ao Brasil. "Vamos dizer que já não tenho mais um bom relacionamento com o Rio. É muito difícil para mim estar na cidade."
Cassia não acredita que Justiça possa ser feita no caso de Clayton. "Justiça seria ele ter a vida que merecia, e isso nunca vai acontecer." Mas considera que prender e responsabilizar as pessoas que o mataram é o mínimo que o Estado deveria fazer.
"A frase 'fazer o quê?' jamais deveria ser usada para falar da morte do seu parceiro, e no entanto eu ouvi isso muitas vezes de pessoas no Rio. Os assassinos do Clayton ainda estão foragidos. 'Fazer o quê, é o Brasil.' Ele foi preso por fazer seu trabalho. 'Fazer o quê, é a Polícia Militar'. O fato de brasileiros estarem resignados a não haver uma responsabilização é trágico", lamenta.
Ela ressalta que não quer fazer qualquer julgamento sobre os brasileiros. "Minha crítica é a um governo e um sistema judicial que forçam as pessoas a não esperarem qualquer resolução", diz.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.