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O surpreendente lado positivo - e até social - da selfie

Devon Van Houten Maldonado - BBC Culture

28/02/2018 13h22

A palavra 'selfie' pode trazer à mente uma menina adolescente fazendo caretas para um iPhone e aparentando estar alheia ao seu entorno, ou alguém ousado se fotografando na beira de um arranha-céu momentos antes de morrer - sintomas de uma cultura obcecada por si mesma e, dizem alguns, do declínio da sociedade.

Mas as selfies têm implicações culturais muito mais profundas, que complicam esse estereótipos. Em seu novo livro, A Geração da Selfie, a escritora Alicia Eler rompe com clichês para imaginar a selfie como uma faca de dois gumes, um fenômeno empoderador e vulnerável, característico da era digital.

Em oposição à premissa de que são objetificadoras ou narcisistas, as selfies têm sido chave para o empoderamento de grupos marginalizados como mulheres, pessoas de cor, a comunidade LGBT, imigrantes e refugiados. Ter a mídia na palma da mão permitiu o acesso para todos os tipos de grupos, com uma nova geração de pessoas que não têm medo de ser diferentes ou únicas, criando por fim um espelho, diz Eler.

"Houve alguma época em que adolescentes não eram obcecados com a sua própria imagem?", pergunta ela.

Jovem ou velho, você não pode culpar as pessoas por querer aceitação, e agora isso está a um toque de distância.

Espelho

Em 2013, Eler escreveu um artigo para o site Hyperallergic com o título "As Políticas Feministas das #Selfies", focando em mulheres de cor e selfies, em resposta a um artigo postado no blog feminino Jezebel que sugeria que as selfies eram um grito desesperado de ajuda.

"Será que podemos falar sobre o que as #selfies significam para pessoas que nunca tiveram uma chance de se enxergar na grande mídia?", escreveu a escritora feminista de livros em quadrinho Mikki Kendall em seu Twitter em novembro daquele mesmo ano.

Por mais que postar selfies publicamente sempre acabe expondo as pessoas a discurso de ódio e assédio, isso também as conecta a uma rede global de apoio em potencial. Com a popularização da selfie, imagens de pessoas marginalizadas que antigamente ficavam de fora dos principais canais de comunicação se tornaram icônicas.

Desde 2013, quando 'selfie' foi nomeada a palavra do ano pelo Dicionário de Oxford, esses autorretratos contemporâneos se tornaram onipresentes em uma época em que visibilidade às vezes é considerada um sinônimo de poder político.

Movimentos de resistência e protestos tomaram novas formas desde então. Eles são menos sobre marchar com placas ou organização de comunidades e mais sobre fluidez descentralizada ou ser visto em várias plataformas online.

"Seu objetivo é ganhar visibilidade em uma lógica diferente - usando imagens comuns, táticas, hashtags, políticas de identidade e eventos icônicos", escreveu a acadêmica Irmgard Emmelhainz em uma publicação chamada e-flux.

O outro lado

É claro que há um problema que se tornou muito evidente nos últimos anos: vigilância.

Apesar de revelações de espionagem pela Agência Nacional de Segurança (NSA na sigla em inglês) em americanos comuns, ou o fato de que nossas informações pessoais são coletadas e vendidas por grandes corporações de rede sociais, isso não parece nos impedir de postar nossos momentos mais pessoais para todos verem.

Nós amamos tirar selfies, mesmo que nossas imagens sejam monetizadas para o lucro dos outros, toda atividade online seja monitorada e todos nossos movimentos verificados pelas mesmas ferramentas que nos conectam.

"A ameaça não é tão digital quanto é pessoal", escreve Eler. Há uma atitude generalizada de "eu não tenho nada a esconder", mas essa realidade é diferente para os mesmos ativistas e artistas que podem ser empoderados pela visibilidade que as selfies oferecem.

Trabalhar sob as limitações impostas pela vigilância em um momento em que visibilidade é vista como poder político força movimentos dissidentes a ser mais fluidos em sua estratégia porque suas impressões digitais podem ser usadas contra eles, mesmo que a tecnologia de hoje seja agora uma de suas ferramentas mais importantes.

Nós vemos isso no movimento de jornalismo cidadão, seja com um vídeo de smartphone ou um policial branco atirando e matando um homem negro ou vídeos com as últimas palavras de cidadãos na guerra da Síria - essa nova "vigilância da selfie" resultou em algumas das mais comoventes documentações de momentos políticos da história.

Eler cita os protestos de Standing Rock - quando a companhia americana Energy Transfer pretendia construir uma oleoduto gigante, mas encontrou resistência da comunidade indígena americana.

A poeta Lakota Oglala e o ativista Mark Tilsen passaram meses em Standing Rock, e ele falou a Eler sobre a constante vigilância que havia lá nas mãos da empresa 'contraterrorismo' Tigerswan, contratada pela Energy Transfer.

Quando eles conseguiam fazer alguma ligação, às vezes dava para ouvir uma respiração profunda ao fundo, diz Tilsen - seus telefones foram grampeados. Quando começaram a circular rumores de que a polícia estava usando check-ins do Facebook para vigiar os que estavam no local de protesto, mais de um milhão de pessoas no mundo inteiro fizeram check-in em Standing Rock em solidariedade aos manifestantes.

O que lembra uma postagem recente no Instragam do artista Glenn Ligon: em uma captura de tela de seu iPhone, vemos a imagem de um menu de rede sem fio e a primeira rede diz "Van de Vigilância do FBI #9013C".

Realmente havia uma van de vigilância do FBI? Não sabemos. Mas esses compartilhamentos e check-ins também podem ser vistos como selfies mais sofisticadas, diz Eler. Sob vigilância e talvez até perigo físico, as selfies são uma maneira de dizer "eu estou aqui, eu estou vivo e não tenho medo".

Como selfies e ativismo online podem fazer a diferença? Em uma entrevista em dezembro de 2017 ao príncipe Harry para um programa da BBC Radio 4, o ex-presidente americano Barack Obama disse que, para que os movimentos digitais realmente terem um impacto no "mundo real", as comunidades precisam "ir para o offline".

É fácil ser um troll cheio de ódio ou um ativista de oposição protegido pelo anonimato da internet, disse Obama ao príncipe, mas quando você senta com alguém, as complexidades do seu ser se tornam mais aparentes, e você pode ser capaz de se conectar com alguém inesperado.

Se não, nossas ideias são apenas reforçadas pelo loop das respostas nas redes sociais.

Selfie-retrato

Alguns artistas rapidamente viram na selfie um rico material de trabalho.

Em 2003, Ryan McGinley ficou famoso com seu primeiro show solo, The Kids Are Alright ("As Crianças Estão Bem", em português), no Museu Whitney de Arte Americana, em Nova York, e foi um dos artistas mais jovens a se apresentar nessa instituição de prestígio.

Muitos desaprovaram a controversa matéria orgânica do trabalho, mas muitos outros adoraram sua crueza, que trazia um retrato de uma certa cultura jovem distópica de Nova York e dos EUA. Entre seus trabalhos, McGinley também virou a câmera para si e tirou autorretratos no estilo do que mais tarde ficou conhecido como selfie.

Apesar desse registro em 2003, apenas em 2006 a socialite Paris Hilton inventou a selfie com Britney Spears - segundo ela mesmo diz - e registrou o jornal The New York Times.

Mais recentemente, houve uma polêmica envolvendo o artista Richard Prince e suas apropriações de selfies do Instagram, que foram impressas e vendidas por centenas de milhares de dólares, com preços parecidos com os da arte contemporânea da Galeria Gagosian, até que ele foi processado por infringir direitos de autoria de imagem pelo fotógrafo Donald Graham.

O caso ainda está sendo julgado. Porém, certamente ambos se beneficiaram com caso, que vai à raiz da antiga questão do que pode ser considerado arte.

Para além das polêmicas, artistas mais jovens estão tomando iniciativas mais brandas em relação à selfie.

Em seu livro, Eler se refere a uma geração de artistas como Peregrine Honig, que criou uma exibição de pinturas especialmente com o objetivo de tirar selfies, e Brannon Rockwell-Charland, que usa selfies para criar sua persona online.

"Selfies me dão uma sensação de controle diante da sempre iminente fetichização do corpo da mulher negra", diz Rockwell-Charland.

Para seu projeto 400 Nudes, a artista Jillian Mayer buscou selfies de pessoas nuas na internet e colocou seu próprio rosto sobre elas.

A selfie serve como uma metáfora para um momento único quando, como disse Francisco de Goya em sua série Os Desastres da Guerra (1814), "a verdade morreu". As selfies e a cultura da internet questionam a premissa básica de autenticidade, como se reflete nas artes e na política hoje.

A "pós-verdade" e as "fake news" não são conceitos novos, e ferramentas como as selfies, as redes sociais ou big data não podem ser culpados pela nossa estranha realidade. Mas talvez elas possam nos ajudar a entendê-la.