A cidade conservadora do Peru que cogitou mudar sua bandeira por semelhança com símbolo LGBT
As bandeiras do arco-íris espalhadas por diversas partes da cidade de Cusco, no Peru, costumam atrair a atenção dos turistas que visitam a antiga capital do Império Inca. Para muitos, elas passam a imagem de uma região liberal, pois remetem ao movimento gay. No entanto, o símbolo nada tem a ver com um possível apoio à comunidade LGBT.
A história da bandeira de Cusco teve início na década de 1940, relata o historiador peruano Luis Lumbreras. Na época, Hugo Flores, responsável por organizar diversos eventos tradicionais na cidade, apresentou o símbolo com sete faixas, cada uma representando uma cor do arco-íris. "Ele afirmou que existia uma bandeira do mesmo jeito durante o período Tahuantinsuyo [modo como era denominado o império Inca]", diz à BBC News Brasil.
Conforme estudos arqueológicos e históricos, o arco-íris era considerado uma das principais divindades dos Incas, civilização andina que tinha Cusco como sua capital e teve seu império extinto em 1532.
Segundo conta Lumbreras, Flores argumentou que utilizar as cores do arco-íris seria uma forma de homenagear os Incas, que teriam uma bandeira semelhante. Porém, nunca foi comprovado que a civilização andina realmente utilizava o estandarte. "O senhor Hugo Flores morreu e nunca houve nenhuma prova sobre isso. Ele, tampouco, se preocupou em fazer tal comprovação", comenta Lumbreras.
Pelo fato de Flores ser considerado uma figura relevante para Cusco, a bandeira apresentada por ele passou a ser utilizada por moradores da cidade em comemorações e outros eventos da região. Mesmo depois que ele morreu, o símbolo foi mantido.
A bandeira possui as mesmas sete cores do arco-íris: vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta. Em 1978, o governo de Cusco adotou oficialmente o símbolo.
Desde a sua oficialização, a bandeira tornou-se alvo de polêmicas na cidade. Pouco depois, muitos moradores passaram a defender uma mudança, em razão das constantes comparações com a comunidade LGBT. Há também aqueles que criticam o fato de que nunca foi comprovado que o estandarte era utilizado pelos Incas.
Comparação com bandeira gay
No mesmo ano em que o arco-íris foi oficializado na bandeira de Cusco, ele também se tornou símbolo do movimento LGBT. Os historiadores da região ressaltam que o fato é apenas uma coincidência. "Não existe nenhuma relação entre essas bandeiras, até porque a de Cusco era utilizada muito antes", afirma Lumbreras.
O responsável por idealizar o estandarte gay foi o artista norte-americano Gilbert Baker, que morreu no ano passado. Ele criou a bandeira para o Dia de Liberdade Gay de San Francisco, na Califórnia. Baker costumava explicar que utilizou o arco-íris pois acreditava que o símbolo transmite a ideia de diversidade e inclusão.
"Ela (a bandeira) é uma forma de mostrar, por meio das diversas cores, que podemos ser diferentes e conviver no mesmo espaço", diz o presidente da Aliança Nacional LGBTI, Toni Reis. Segundo Reis, a bandeira do arco-íris é hoje o maior símbolo do movimento. "Ela dá visibilidade para a nossa comunidade, porque é utilizada em todo o mundo", diz.
Apesar de ter o arco-íris como base, a bandeira LGBT foi criada com oito cores, cada uma delas com um significado diferente: rosa (sexualidade), vermelho (vida), laranja (cura), amarelo (luz do sol), verde (natureza), turquesa (mágica e arte), anil (harmonia e serenidade) e violeta (espírito humano).
Anos depois da criação, a bandeira LGBT foi reduzida a seis cores, desta vez sem o rosa e o anil. Posteriormente, o azul também foi retirado e substituído pelo turquesa. "Essa mudança foi uma forma de otimização para a confecção das bandeiras, porque na época era mais fácil encontrar tecidos nas seis cores atuais", afirma Reis.
Confusão entre turistas
A diferença na quantidade de cores das bandeiras - sete na bandeira de Cusco e seis na LGBT - pouco adianta para evitar comparações. O venezuelano Víctor Alfonso Hernández, que trabalha há sete meses como guia turístico em Cusco, relata que é comum haver perguntas sobre o símbolo da cidade. "Os turistas dizem que a bandeira é muito bonita e perguntam se tem alguma relação com o movimento LGBT. Quando eu digo que não tem nada a ver, eles acham engraçado, porque é muito semelhante", relata.
O próprio guia conta que também pensou tratar-se da bandeira LGBT quando chegou à cidade peruana. "No meu primeiro dia em Cusco, fui à praça da cidade para ver o desfile das Forças Armadas, que acontece todos os domingos. Quando vi os militares com uma bandeira gigante de Cusco, pensei: eles são muito liberais por aqui. Mas depois entendi que se tratava do símbolo da região."
Em recente visita a Cusco, a cineasta Chia Beloto também se confundiu ao ver o símbolo da cidade. "Logo que cheguei, reparei a bandeira, porque ela estava em todos os lados. Eu pensei: 'esta cidade é muito gay friendly (amistosa com o público gay)'. Um dia, sentei no terraço, vi a bandeira em cima de uma igreja e concluí que realmente não poderia ser algo relacionado ao movimento LGBT. Pesquisei no Google e descobri que não tem nada a ver", conta.
A designer Ellen Eres relata que sabia que não se tratava de uma bandeira LGBT, porém chegou a comentar com um guarda da cidade sobre a semelhança entre os símbolos. "Ele enfatizou que não tinha nenhuma relação entre as bandeiras e disse que achava feio relacionarem a simbologia Inca ao movimento LGBT, porque considera a homossexualidade como algo errado", diz.
Mudança de bandeira
As comparações com a bandeira LGBT fizeram com que o governo de Cusco cogitasse mudar o símbolo do arco-íris, após constantes reclamações de moradores da cidade. "Existe uma forte tradição indígena em Cusco, em razão dos Incas, por isso a região é muito conservadora. Eles tentam preservar a cultura dos antepassados", justifica Lumbreras.
Uma consulta foi realizada pelo governo de Cusco, por meio da internet, há 10 anos. Os representantes da região perguntaram aos moradores se eles queriam que a bandeira do local fosse alterada. Caso a maioria fosse favorável, seria realizado um concurso para definir o novo símbolo.
Lumbreras conta que a maioria dos moradores, no entanto, optou por manter o símbolo. "Essa ideia de mudança não prosperou."
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