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'O luto não acaba, não nos deixam esquecer', diz filha de Marielle, quatro meses após assassinato da mãe

Luyara Santos fez uma tatuagem com o rosto de Marielle Franco; a adolescente conta que tem problemas para dormir e que toma antidepressivos para superar a morte da mãe  - Julia Dias Carneiro / BBC Brasil
Luyara Santos fez uma tatuagem com o rosto de Marielle Franco; a adolescente conta que tem problemas para dormir e que toma antidepressivos para superar a morte da mãe Imagem: Julia Dias Carneiro / BBC Brasil

Júlia Dias Carneiro - Da BBC News Brasil no Rio de Janeiro

19/07/2018 09h18

As quartas-feiras têm sido as piores noites para Luyara Santos. Apesar dos remédios que tem tomado, a filha única da vereadora Marielle Franco custa a dormir no dia da semana da morte da mãe, a vereadora Marielle Franco, em 14 de março deste ano.

Luyara relembra os telefonemas, a manchete na televisão, e seu próprio colapso no chão do apartamento dos avós, quando seu corpo começou a se debater contra a notícia impensável sobre a mãe. "Essa é a pior cena na minha cabeça", relembra.

Aos 19 anos, nascida quando Marielle tinha a mesma idade, Luyara começou as aulas de Educação Física na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) um mês após a morte da mãe. Nos últimos meses de sua breve vida estudantil, todos os dias começaram passando por baixo da faixa negra pendurada ao longo na fachada da instituição proclamando: "Marielle Presente."

"É um lugar que ninguém consegue ocupar de novo. O cuidado, a sua presença, ninguém consegue suprir. Ficou esse vazio por dentro", diz, em conversa com a BBC News Brasil na casa de seus avós, em Bonsucesso, para onde se mudou após a morte de Marielle.

Quatro meses depois, é a primeira vez que Luyara concorda em se abrir sobre os acontecimentos daquele dia, o impacto que tiveram em sua vida e a falta que sente da mãe, que chamava de "Mamis" e cujo rosto tatuou no antebraço em cores vibrantes. "Minha mãe era luz demais, viva demais para fazer uma tatuagem apagada", justifica.

Quinta vereadora mais votada no Rio em 2016, com 46.502 votos em sua primeira candidatura, Marielle foi assassinada a tiros a caminho de casa, dentro do carro conduzido pelo motorista Anderson Gomes, que também morreu. Até hoje a polícia não encontrou o responsável pelos assassinatos.

Ela era a única mulher negra a ocupar um dos 51 assentos da Câmara dos Vereadores, nascida e criado no Complexo da Maré, na zona norte do Rio.

Marielle teve Luyara quando ainda era uma jovem catequista na Maré. Quando morreu, vivia com a companheira, Monica Benicio, e a filha, e costumava postar fotos das três afirmando #nossasfamiliasexistem.

Nesta semana, o governador Luiz Fernando Pezão sancionou lei que lembra 14 de março como o "Dia Marielle Franco - Dia de Luta contra o Genocídio da Mulher Negra".

Marielle completaria 39 anos no próximo dia 27. Luyara e Anielle Silva, irmã de Marielle, planejam uma homenagem em um evento no Centro do Teatro do Oprimido, na Lapa, com convidados ligados à história da ex-vereadora.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - Como tem sido para seguir com a vida?

Luyara Santos - O impacto foi muito forte. Estou tomando remédio para dormir, antidepressivo. O vazio vai além da falta da presença física. É um vazio muito mais interno, emocional, de perder totalmente o chão. Eu voltei a morar com meus avós, com quem eu tinha morado até os 10 anos. A minha avó é uma segunda mãe para mim. A gente tem sido a nossa própria fortaleza, eles a minha e eu a deles. Tem dias que eu não estou bem e corro para eles, e vice-versa. A família tem que ficar junto. Somos nós por nós. Mas é um lugar que ninguém consegue ocupar de novo. O cuidado, a sua presença, ninguém consegue suprir. Ficou esse vazio por dentro.

BBC News Brasil - No debate que a Marielle mediou na Casa das Pretas, antes de ser morta, ela falou que tinha uma filha, falou de você. Disse que você não pôde estar no evento porque estava com conjuntivite. Era para você ter estado com ela naquela noite?

Luyara Santos- Acho que as coisas acontecem com um propósito. Na verdade estou tentando acreditar que tudo que aconteceu trará algo importante mais à frente. Já estamos vendo a importância que o caso ganhou. Acredito que se eu tivesse ido aquilo talvez pudesse não ter acontecido. Ou poderia ter sido pior, ter ido eu e ela. Na segunda, quando a vi pela última vez (dois dias antes de ela morrer), eu fui dar um abraço nela e ela não deixou: "Não posso pegar conjuntivite!". Esses dias eu estava pensando. Por que ela não me deu um abraço? Era para ela pegar conjuntivite e passar a semana toda em casa.

BBC News Brasil - Como ficou sabendo do que tinha acontecido com a sua mãe?

Luyara Santos- Eu estava na casa dos meus avós vendo televisão e três amigas me ligaram, uma depois da outra, perguntando se estava tudo bem. Eu achei muito estranho, mas elas não falaram nada. Aí um ex-namorado ligou e falou que alguma coisa tinha acontecido com a minha mãe. Eu insisti para saber o quê. "Vimos uma notícia falando que mataram a sua mãe." Corri para a televisão e pedi para o meu avô colocar na GloboNews, enquanto buscava desesperada alguma informação na internet. Tocou o telefone e era um padre muito próximo da minha avó. E aí vimos a primeira manchete na TV. Pronto. É verdade. Fui para a área do lado da cozinha, deitei no chão, comecei a me debater e espernear. A minha avó ficou desesperada. Essa é a pior cena na minha cabeça. As quartas-feiras continuam sendo as piores noites para mim. Não consigo dormir. Meus padrinhos, nossos amigos, primos, as pessoas começaram a chegar em casa e passaram a noite aqui. Passamos a noite praticamente em claro. No dia seguinte já teve o velório.

BBC News Brasil - Como foi para você viver essa dor particular tão forte, mas por uma morte que se tornou tão pública, envolvendo tanto a cidade?

Luyara Santos - Eu não estava conseguindo entender o que tinha acontecido, muito menos a proporção que tomou. Aconteceu na quarta. No domingo eu estava conhecendo a Katy Perry, no dia seguinte o Lula ligou, na outra semana encontrei com a Dilma. E aí me perguntei, cara, o que está acontecendo? Foi caindo a ficha da força que ela tinha e que ela deixou como legado; mas tipo, o que virou a minha vida?

Estou fazendo fisioterapia porque quebrei um dedo da mão há dois meses. Nesta semana pela primeira vez a fisioterapeuta reparou na minha tatuagem (Luyara tatuou o desenho do rosto de Marielle no antebraço). Falei que era o rosto da minha mãe, e ela, "ah, achei que parecia a Marielle". E eu, sim, é a minha mãe. Aí pronto. "Você é a filha da Marielle?" Outras fisioterapeutas vieram falar comigo também, me abraçar, uma delas chorou um pouco. Minha sorte foi que nem deu tempo de ficar tão comovida porque estava acabando a sessão. O luto não acaba, porque não conseguimos esquecer. E as pessoas também não nos deixam esquecer.

BBC News Brasil - Como você escolheu o desenho da tatuagem?

Luyara Santos- Tínhamos combinado de fazer a primeira tatuagem juntas, e queríamos escolher um desenho que se completasse. Já que a ideia era para completar... O que me completa é ela, né? Muita gente pergunta por que eu fiz colorido. Imagina se eu ia fazer uma tatuagem apagada da minha mãe?! Minha mãe era luz demais, viva demais para fazer uma tatuagem apagada. Eu fiz uma semana depois (da morte), mas ainda quero terminar. Hoje vou fazer umas flores subindo pelo braço (Luyara tatuou as flores na tarde após a entrevista). E depois ainda quero acrescentar duas frases. Acho que vão ser: "Serei resistência porque você foi luta"; e "Eu vi Deus, e ele era uma mulher preta".

BBC News Brasil - Nos últimos meses você participou de alguns eventos, subiu em palcos, carros de som. Qual é o papel que você tem assumido?

Luyara Santos - Eu sempre fui do backstage, nunca do holofote. Isso era com ela. A minha luta continua sendo o que eu fazia antes, uma coisa de base. De ver o amiguinho fazendo uma coisa machista e falar que não pode, que está errado. Eu não fiquei nem quero ficar muito na mídia. Acredito que a minha luta é não deixar apagar o que aconteceu. Até a gente ter uma resposta. E continuar com esse trabalho de base, que ela passou para mim, e ir passando para os outros. Antes eu ia a eventos e debates por causa dela. Hoje, ir sem ela não é a melhor das sensações. Ver uma mesa em que ela poderia estar e imaginar o que ela acrescentaria àquela fala. Eu tenho ido a alguns eventos e lançamentos de pré-candidaturas do PSOL, deixando a minha presença, o meu apoio, me colocando à disposição se precisar. Desce na garganta, mas ainda fica entalado. Quando eu chego em casa, eu desabo.

BBC News Brasil - Como você descreve sua mãe? Como era a Marielle mãe de Luyara?

Luyara Santos - Ela era o nosso pilar. A fortaleza de todo mundo aqui. A filha mais velha. Era muito cuidadosa, muito preocupada com as coisas. Nos últimos tempos, estava sempre com a agenda cheia e nos falávamos direto pelo WhatsApp.

As mensagens dela eram assim: "Luyara, já comeu? Já tomou café? Você está onde? Está com quem? Volta que horas? Está com dinheiro? Quer que chame um Uber? " E eu: "Mãe, relaxa, tô de boa, tô no ônibus, indo para casa..." (risos) Mas ela era muito carinhosa. O tempo que tínhamos juntas ela tentava fazer ser o melhor momento do dia.

BBC News Brasil - Como foi quando ela foi eleita?

Luyara Santos - 2016 foi um ano conturbado. Eu estava acabando a escola, prestes a prestar vestibular, com todas as crises de uma adolescente tomando decisões para a fase adulta. Aí a sua mãe se candidata a vereadora. Eu pensava: "Caraca! O que vai acontecer, Senhor?" Eu achei que ela ia entrar, mas não com o número de votos que ela teve (46.502). Nossas melhores hipóteses eram 10 mil, 15 mil estourando. Foi uma época de eu entender a importância de ela tomar aquele lugar. Que aquele era o lugar dela, o lugar de fala, ali na frente. Minha mãe vai ser uma inspiração para mim sempre. Foram altas emoções quando ela se candidatou.

BBC News Brasil - E o relacionamento da Marielle com a Monica Benício? A família custou a aceitar a relação. Como foi para você quando elas voltaram e resolveram morar juntas, e assumir o casamento?

Luyara Santos - Eu demorei um pouco para entender. Mais por preocupação. A gente sabe a onda de conservadorismo que ronda o nosso país. Tinha medo de sairmos na rua e acontecer alguma coisa com nós três. Então quando a minha mãe assumiu mesmo e falou que ia morar com a Monica, minha primeira reação foi pensar: "Deu ruim." Eu tinha muito medo de preconceito, de sair na rua e as pessoas ficarem olhando torto, de alguém fazer algo com a gente. Mas assumir esse lugar acrescentou muito para ela. Ela evoluiu. Ficou muito mais leve. Sabe quando a pessoa tira um peso nas costas? Por mais que tivesse que enfrentar problemas grandes, parecia que já não se deixava afetar tanto. Levava com mais leveza por ter a Monica perto. Estava mais tranquila.

BBC News Brasil - Você sentiu medo de represálias pela escolha sexual dela, mas não pela atuação como vereadora?

Luyara Santos - Não, porque eu não lembrava de casos assim acontecerem. E por mais que ela tivesse pautas duras e chutasse o pau da barraca, ela não estava recebendo nenhuma ameaça. Eu tinha mais medo na época que ela estava com o Marcelo (Freixo), que andava sempre com três seguranças e era super visado. A minha mãe era o braço esquerdo e direito dele. Eu tinha muito mais medo naquela época.

BBC News Brasil - O que você espera que possa se manter vivo, ou que a memória dela gere de efeito positivo?

Luyara Santos - O exemplo que a história dela estabeleceu. Hoje tem mais gente querendo se engajar na política, mais gente não aceitando baixar a cabeça. Nesse sentido acho que vamos conseguir transformar a vida de muita gente.

BBC News Brasil -Estamos entrando em um novo ciclo campanha eleitoral. Você acha que a morte da sua mãe possa ter algum tipo de influência nas eleições?

Luyara Santos - Acho que já está tendo, pela quantidade de mulheres pretas e guerreiras que estamos vendo nas pré-candidaturas. Só espero que possamos eleger ao menos uma. Antes da minha mãe (ser eleita vereadora no Rio) tinha sido a Jurema Batista, 10 anos antes. Antes dela, a Benedita da Silva, mais dez anos antes. Tivemos sempre que esperar períodos longos para ter uma mulher preta, favelada, dentro daquele lugar que é heteronormativo, patriarcal, com aqueles caras de terno parados no tempo. Acredito que um dos legados deve ser esse - que a gente não tenha que esperar tanto tempo para ter mais mulheres como ela na política.