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'Nos faziam comer vômito': as denúncias de abusos cometidos em orfanato por freiras na Escócia

Smyllum Park funcionou entre 1864 e 1981 como um orfanato controlado pela orden das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo - BBC
Smyllum Park funcionou entre 1864 e 1981 como um orfanato controlado pela orden das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo Imagem: BBC

25/08/2018 21h14

O orfanato católico Smyllum Park, na Escócia, fechou em 1981, mas o que se passou ali continua a chocar quase 40 anos depois.

A polícia anunciou na última quinta-feira (23) a prisão de 12 pessoas, entre elas 11 mulheres, algumas delas freiras, e 1 homem com idades entre 62 e 85 anos, como parte de uma investigação sobre "abusos físicos e sexuais sistemáticos" de crianças que teriam sido cometidos na instituição. Outras quatro pessoas ainda devem ser denunciadas.

Localizado em Lanark, uma pequena cidade da região central do país, Smyllum Park ficou conhecido como o "orfanato fantasma" após fechar as portas, depois de mais de um século comandado pela ordem das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo.

A polícia disse que não divulgará mais detalhes sobre as identidades dos acusados e os crimes enquanto não houver uma decisão final dos promotores à frente do caso.

"As investigações continuam, seria inapropriado fazer mais comentários", diz um comunicado.

'Tenho 50 anos e ainda sinto medo', diz ex-moradora do orfanato

Marie Peachey diz que nunca se esquecerá do que viveu no orfanato com seus irmãos - BBC - BBC
Marie Peachey diz que nunca se esquecerá do que viveu no orfanato com seus irmãos
Imagem: BBC
A britânica Marie Peachey viveu junto com seu irmão mais velho, Samuel, e a irmã mais nova, Brenda, no Smyllum quando era criança. Ela contou à BBC ter ficado "chocada, assustada, enjoada... e feliz" ao saber das prisões.

"São todas as emoções numa só", afirmou ela, que diz que nunca se esquecerá do que viveu no orfanato.

"Algo bobo pode ser o gatilho que me faz voltar para o Smyllum, a ser uma menininha assustada. Tenho 50 anos hoje, e ainda sinto medo."

Os testemunhos prestados no ano passado como parte das investigações fizeram com que a irmã Ellen Flynn, que está atualmente à frente da ordem no Reino Unido, pedisse desculpas publicamente.

A religiosa classificou como "horripilantes" os relatos e declarou que os fatos vão "totalmente contra" ao que a ordem representa.

Mais de 11,6 mil crianças passaram pelo Smyllum Park ao longo de 117 anos - BBC - BBC
Mais de 11,6 mil crianças passaram pelo Smyllum Park ao longo de 117 anos
Imagem: BBC
Segundo o jornal britânico The Scottish Daily Mail, a polícia começou a investigar também as Irmãs de Nazaré, outra ordem católica que administrava lares para crianças.

Os processos ocorrem em meio à visita do papa Francisco neste fim de semana à Irlanda, onde ele se encontrou com vítimas de abusos cometidos por padres quando eram crianças.

Em sua primeira passagem pelo país em 39 anos, Francisco disse ter ficado envergonhado pelo fracasso da Igreja em lidar adequadamente com "crimes repugnantes".

Uma investigação no Estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos, revelou que mais de 1 mil menores foram abusados por 300 padres e que os casos foram ocultados pela Igreja.

Ao menos 400 crianças foram enterradas em cova clandestina

Mais de 11,6 mil crianças passaram pelo Smyllum Park desde sua abertura em 1864 até ele ser fechado 117 anos depois. Algumas eram órfãs, enquanto outras vinham de famílias que não tinham condições de sustentá-los.

Há anos, a Comissão de Investigação de Abuso Infantil (Scai, na sigla em inglês) da Escócia analisa denúncias sobre os abusos que teriam sido cometidos neste local.

O órgão diz que a maioria das pessoas que testemunharam garante que, enquanto viveram ali, foram agredidas frequentemente, submetidas a castigos, algumas afirmam terem sido vítimas de abusos sexuais por pessoas responsáveis por cuidar delas.

Uma comissão investiga as denúncias de abusos que teriam ocorrido no orfanato - Nick Mailer - Nick Mailer
Uma comissão investiga as denúncias de abusos que teriam ocorrido no orfanato
Imagem: Nick Mailer
Gregor Rolfe, advogado das Filhas da Caridade, reconheceu no ano passado perante a Scai que um ex-funcionário pode ter abusado sexualmente de menores e, ainda que denúncias tenham sido feitas às freiras, elas nunca chegaram à polícia.

Alguns testemunhos dão conta que um grande número de crianças teriam morrido no orfanato, mas a forma exata como essas mortes se deram e onde foram enterrados os corpos é algo que ficou desconhecido por anos.

Em 2003, um dos sobreviventes do orfanato encontrou uma cova clandestina em um terreno próximo onde, segundo uma investigação da BBC, foram enterradas ao menos 400 crianças.

'Comi grama porque sentia fonte', disse testemunha

Ainda que a maioria dos que viveram no orfanato já tenham morrido, as denúncias do processo estão sendo levadas adiante por aqueles que estão vivos.

No fim de 2017, a Scai revelou alguns dos testemunhos das pessoas que teriam sido vítimas de abusos e contaram as experiências que tiveram no Smyllum Park.

Uma destas pessoas afirmou que as freiras a agrediam e a deixavam presa e que em uma ocasião chegaram a enfiar sua cabeça em uma privada. "Estava histérico, porque pensava que iria desaparecer pela privada", contou.

Outra vítima, ao ser interrogada sobre a comida no orfanato, disse que sempre passava fome. "Não me lembro de comida. Lembro de ter comido grama porque tinha fome", disse.

Após ser fechado, Smyllum Park ficou conhecido como o 'orfanato fantasma' - Getty Images - Getty Images
Após ser fechado, Smyllum Park ficou conhecido como o 'orfanato fantasma'
Imagem: Getty Images
Outra pessoa que diz ter vivido no local desde os 4 anos afirmou ter recebido choques elétricos. Contou que ficou amarrada a uma cama e amordaçada por horas, engasgando com um travesseiro e engolindo vômito.

Theresa Tolmie-McGrane, que se apresenta como uma das vítimas, contou à BBC que chegou aos 6 anos ao orfanato e que viveu ali "mais de uma década de abuso físico, sexual e mental".

"Todas as crianças foram agredidas, castigadas, trancadas em quartos escuros. Nos faziam comer nosso próprio vômito. Diria que muitos de nós tivemos a boca lavada com sabão", afirmou.

Após quase três anos de investigações, a Scai planeja divulgar um relatório preliminar sobre os abusos nas próximas semanas e uma decisão final em 2019.