A história e a polêmica por trás da cidadania por nascimento, que Trump quer banir nos EUA
O presidente Donald Trump afirmou nesta semana que planeja acabar por decreto com a cidadania por nascimento nos Estados Unidos.
Em entrevista ao site americano Axios, ele disse estar trabalhando para colocar um fim nesse tipo de cidadania, um princípio vigente há 150 anos que diz que qualquer pessoa nascida em solo americano é cidadã do país.
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"Sempre me disseram que seria preciso uma emenda constitucional para isso. Mas, adivinha só, não precisa não.".
"Você pode sem dúvida fazer com uma lei do Congresso. Mas agora eles estão dizendo que eu posso fazer isso apenas com um decreto", disse Trump, acrescentando que a medida estaria em andamento.
Pouco tempo depois da declaração, Lindsey Graham, senador republicano da Carolina do Sul, tuitou: "Pretendo criar uma legislação na mesma linha do decreto proposto pelo presidente @realDonaldTrump."
A questão provocou um debate acalorado sobre se o presidente tem ou não o poder unilateral de fazer tal coisa, e se a premissa básica que sustenta proposta - de que a cidadania por nascimento é aproveitada por imigrantes sem documentação - é de fato válida.
O que é cidadania por nascimento?
A primeira sentença da 14ª Emenda da Constituição dos EUA estabelece o princípio da cidadania por nascimento:
"Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas a sua jurisdição, são cidadãs dos Estados Unidos e do Estado em que residem."
Os que defendem o endurecimento das regras argumentam que a política é um "grande ímã para a imigração ilegal" e que ela encoraja mulheres grávidas sem documentação a atravessarem a fronteira para darem à luz, um ato pejorativamente chamado de "turismo do nascimento" ou ter um "bebê âncora".
"O bebê é, em resumo, um cidadão dos Estados Unidos durante 85 anos com todos esses benefícios. Isso é ridículo", disse Trump ao Axios. "Tem que acabar."
Um estudo do Pew Research Center de 2015 identificou que 60% dos americanos se opunham a acabar com a cidadania por nascimento, enquanto 37% eram a favor.
Como surgiu essa ideia?
A 13ª Emenda havia abolido a escravidão em 1865, enquanto a 14ª, adotada em 1868, após o fim da guerra civil, resolveu a questão da cidadania de ex-escravos nascidos nos Estados Unidos.
Decisões anteriores da Suprema Corte, como Dred Scott contra Sandford em 1857, haviam decidido que os afro-americanos nunca poderiam ser cidadãos do país. A 14ª Emenda anulou isso.
Em 1898, a Suprema Corte dos EUA decidiu que a cidadania por nascimento se aplicava aos filhos de imigrantes no caso de Wong Kim Ark contra os Estados Unidos.
Então com 24 anos, Wong era um filho de imigrantes chineses que nasceu nos EUA, mas que teve a reentrada no país negada quando voltou de uma visita à China. O rapaz alegou com sucesso que, pelo fato de ter nascido nos EUA, o status de imigração de seus pais não afetava a aplicação da 14ª Emenda.
"(No caso contra os EUA) Wong Kim Ark afirmou que, independentemente da raça ou do status de imigração dos pais, todas as pessoas nascidas nos Estados Unidos deveriam ter acesso aos direitos que a cidadania oferecia", escreve Erika Lee, diretora do Centro de Pesquisa de História da Imigração na Universidade de Minnesota.
"Desde então o tribunal não reexaminou esta questão."
Trump pode acabar com a cidadania por nascimento com um decreto?
A maioria dos juristas concorda que Trump não pode acabar com a cidadania por nascimento com um decreto.
"Ele está fazendo algo que vai incomodar muita gente, mas no final isso será decidido pelos tribunais", diz Saikrishna Prakash, especialista em direito constitucional e professora da Faculdade de Direito da Universidade da Virgínia.
"Isso não é algo que ele possa decidir sozinho."
Prakash diz que, embora o presidente possa determinar que os funcionários das agências federais interpretem a cidadania de forma mais restrita - a agentes da Agência de Imigração e Alfândega dos EUA, por exemplo -, isso inevitavelmente fará surgirem recursos judiciais de pessoas cuja cidadania for negada.
Isso poderia levar a uma longa batalha judicial que poderia acabar na Suprema Corte dos EUA.
O presidente republicano da Câmara Paul Ryan foi incisivo em rechaçar a afirmação de Trump de que poderia agir unilateralmente.
"Você não pode acabar com a cidadania por nascimento com um decreto", disse ele à rádio WVLK, do Kentucky.
No entanto, Martha S Jones, autora do livro Birthright Citizens (Cidadãos por Direito de Nascimento, em tradução literal), escreveu no Twitter que a Suprema Corte não examinou diretamente se os filhos de não cidadãos ou imigrantes sem documento deveriam se tornar automaticamente cidadãos no nascimento.
"Scotus (a Suprema Corte dos Estados Unidos) poderia diferenciar novos casos do de Wong Kim Ark com base nos fatos", escreve Jones.
"Os pais dele tinham autorização - ou podemos dizer que eram imigrantes legais. Sua presença nos EUA havia sido autorizada."
Prakash concorda.
"Pessoas que estão com visto de turista ou que estão aqui sem permissão... seus filhos recebem automaticamente a cidadania por nascimento", diz ele. "É assim que isso tem sido entendido nos tempos modernos, embora não tenha havido um pronunciamento definitivo da Suprema Corte a respeito."
Uma emenda constitucional poderia acabar com esse tipo de cidadania, mas isso exigiria dois terços dos votos tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado e a ratificação com três quartos dos Legislativos estaduais.
Eleições legislativas
Análise de Anthony Zurcher, repórter da BBC News em Washington
A decisão de Donald Trump de mais uma vez pressionar pelo fim da cidadania por nascimento - o que ele diz agora que pode ser feito com uma canetada presidencial - deve ser vista no contexto das eleições para o Congresso, previstas para a semana que vem.
Assim como o anúncio feito pela Casa Branca de que mais de 5 mil soldados seriam despachados para a fronteira dos EUA para impedir a entrada da caravana de migrantes da América Central que hoje atravessa o México e tem como destino os EUA, este parece ser outro esforço para concentrar a atenção americana na questão da imigração.
Trump fez do discurso linha dura sobre a imigração uma parte central de sua campanha presidencial de 2016 e considera isso uma das razões para ter levado a melhor na disputa.
Agora, na reta final da eleição que pode determinar o sucesso da segunda metade de seu mandato presidencial, Trump está buscando novamente um conhecido apoio.
Uma pesquisa realizada em 2017 mostra que a maioria do público apoiava a cidadania por nascimento, inclusive para migrantes sem documentos, mas 30% eram contra.
Mesmo que esses números não tenham mudado, convencer esse terço do público americano de que o presidente está lutando por eles - e pode conseguir o que eles querem se os republicanos conseguirem maioria no Congresso - pode ser suficiente para fazer a balança pender a seu favor nas principais disputas, na próxima terça.
"Isso não tem nada a ver com eleições", disse Trump em uma entrevista recente.
É difícil ignorar, no entanto, o timing desses esforços.
Outros países têm cidadania como direito de nascença?
Em suas declarações ao Axios, Trump afirmou erroneamente que os Estados Unidos são o único país que garante cidadania por nascimento.
Na verdade, mais de 30 países - incluindo Canadá, México, Malásia e Lesoto - praticam o chamado "jus soli" automático, ou "direito de solo" sem restrições.
Já em outros países, como o Reino Unido e a Austrália, a cidadania é concedida automaticamente se um dos pais for cidadão ou residente permanente.
Os Estados Unidos também não são o único país onde a prática é alvo de críticas.
Em agosto, delegados da convenção nacional do Partido Conservador do Canadá votaram pelo fim da cidadania por direito de nascimento para as crianças, a menos que um dos pais seja canadense ou residente permanente.
Após o voto dos membros de base, o líder conservador, Andrew Scheer, disse que o partido buscaria o desenvolvimento de uma política mais direcionada que abordasse a questão do chamado "turismo de nascimento".
Quem usa a cidadania por direito de nascimento?
De acordo com o Pew Research Center, centro de pesquisa americano, havia 275 mil bebês de pais imigrantes irregulares nos EUA em 2014 e 4,7 milhões de crianças nascidas nos EUA com menos de 18 anos que vivem com pelo menos um dos pais que não tem documentos.
Durante as décadas de 1990 e 2000, os nascimentos de filhos de pais imigrantes irregulares aumentaram continuamente antes de atingirem o auge em 2006. Desde então, há um declínio.
Embora o Pew não tenha números exatos sobre os países de origem dos pais, Mark Lopez, diretor de Migração Global e Demografia, diz que três quartos dos imigrantes irregulares nos EUA são de países da América Latina.
"Os hispânicos constituirão a maioria dessas crianças nascidas de pais imigrantes não autorizados", diz ele.
No entanto, ele acrescenta que, uma vez que não sabemos como Trump vai escrever seu decreto, é possível que filhos de portadores de visto ou outros residentes temporários também sejam afetados.
*Reportagem de Jessica Lussenhop
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