'Temo que Bolsonaro acabe se colocando numa postura subalterna ao Trump', afirma ex-embaixador nos EUA
Os sinais de uma política externa "altamente ideológica" dados pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, que se encontrará nesta terça-feira com seu colega americano, Donald Trump, podem afastar o Brasil de outras nações e ser "profundamente negativos" para os interesses do país.
Essa é a visão do embaixador aposentado Roberto Abdenur, que comandou a embaixada brasileira nos Estados Unidos de 2004 a 2006 e deixou o Itamaraty por discordâncias com a política externa do então presidente Luiz Inácio da Silva.
Ao desembarcar nos EUA no domingo para uma visita de três dias, Bolsonaro tuitou que "pela primeira vez em muito tempo, um Presidente brasileiro que não é antiamericano chega a Washington", mas para Abdenur, o que distingue a visita de viagens oficiais de presidentes anteriores é o risco de um "alinhamento automático, rígido" do Brasil aos interesses americanos.
"Paradoxalmente, o governo Bolsonaro, que tanto insiste na defesa da soberania do Brasil, está afetando, prejudicando essa soberania, se decidir alinhar-se incondicionalmente com os Estados Unidos no campo da política internacional. Eu vejo com preocupação o risco de que isso ocorra", afirmou Abdenur em entrevista à BBC News Brasil.
O diplomata, que iniciou sua carreira no Itamaraty em 1963 e chefiou também as embaixadas do Brasil em Equador, Alemanha e China, critica, também, a "atitude radicalmente simpática aos Estados Unidos" do chanceler Ernesto Araújo.
"Eu temo muito que o presidente acabe, sem se dar conta disso, talvez sem querer, se colocando numa postura subalterna ao Trump. Eu espero que isso não ocorra, mas é uma hipótese que não pode der descartada", disse também.
Embora Abdenur veja possíveis ganhos para o Brasil na esfera econômica a partir da maior aproximação com os Estados Unidos, ele vê um grande risco caso Bolsonaro decida se alinhar aos interesses de Trump contra a China.
O embaixador não se opôs à polêmica decisão do governo brasileiro de isentar unilateralmente os turistas americanos de visto para entrada no Brasil, mas repudiou declarações do deputado federal e filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, manifestando vergonha pelos imigrantes brasileiros que vivem ilegalmente nos Estados Unidos.
"Essa declaração é inaceitável, é desrespeitosa para com compatriotas nossos que têm buscado no exterior há décadas oportunidades que não tiveram no Brasil", ressaltou.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Ao chegar aos Estados Unidos, o presidente Bolsonaro tuítou: "Pela primeira vez em muito tempo, um Presidente brasileiro que não é antiamericano chega a Washington". O senhor considera correta essa fala? O que há de diferente nessa visita em relação às anteriores?
Roberto Abdenur - Sequer (os ex-presidentes petistas) Lula ou Dilma, que estiveram em visita aos Estados Unidos, eram propriamente antiamericanos. Eu não acho correta essa afirmação. O que há de diferente é que dessa vez com Bolsonaro há uma forte possibilidade de que ele se decida por um alinhamento (do Brasil) automático, um alinhamento rígido, com as posições dos Estados Unidos, o que seria um afastamento do curso tradicional da política externa brasileira que é de representar os nossos próprios interesses, e não seguir os interesses de outro país.
Curiosamente, paradoxalmente, o governo Bolsonaro, que tanto insiste na defesa da soberania do Brasil, está afetando, prejudicando essa soberania, se decidir alinhar-se incondicionalmente com os Estados Unidos no campo da política internacional.
Eu vejo com preocupação o risco de que isso ocorra, resta ver o que vai acontecer na conversa dele com o Trump e no comunicado que será depois divulgado, e também o que vai acontecer nas semanas e meses seguintes à visita em que poderão fazer-se presentes episódios de alinhamento, digamos, indesejável com os Estados Unidos na política exterior brasileira.
Nós sabemos que o atual chanceler tem uma atitude radicalmente simpática aos Estados Unidos. Ele considera que o Ocidente está em decadência, que o único país que tem condições de resistir são os Estados Unidos sob a liderança de Trump pessoalmente.
O próprio presidente gosta de ser referido como "o Trump dos trópicos". Ou seja, existe uma atitude de certa admiração pelo Trump, e eu temo muito que o presidente acabe sem se dar conta disso, talvez sem querer, se colocando numa postura subalterna ao Trump. Eu espero que isso não ocorra, mas é uma hipótese que não pode der descartada.
BBC News Brasil - Há um alinhamento ideológico forte entre Bolsonaro e Trump. Qual o risco desse tipo de relação externa muito personalista?
Abdenur - Eu acho que o presidente e sua comitiva deveriam ter em mente nesse momento o fato de que o Trump começa a segunda metade do seu mandato duramente criticado, questionado e investigado pela maioria democrata que assumiu recentemente a Câmara de Deputados. Mas não só pelos democratas, também pelo procurador especial Robert Mueller, que está investigando a eventual interferência da Rússia nas eleições e uma possível obstrução de Justiça pelo próprio Trump.
Então, o Trump estará enfraquecido nesses dois últimos anos do seu primeiro mandato. Ele tem chances de ser reeleito, a economia americana está indo muito bem, mas ele é um presidente que não ampliou sua base, que não dialogou com o conjunto da sociedade americana e que atua única e exclusivamente para consolidar e fortalecer a sua base própria, que não passa de 40% do eleitorado americano.
O lado brasileiro nesta visita deveria calibrar muito cuidadosamente a aproximação com os Estados Unidos, e pessoalmente com Trump.
BBC News Brasil- O que o Brasil pode perder em caso de alinhamento automático com os Estados Unidos? Isso poderia afetar nossa relação com a China?
Abdenur - É um tema que me preocupa muito. Eu fui embaixador na China e atuei no lançamento da parceria estratégica Brasil-China em 1993. De lá para cá, essa parceria estratégica se fortaleceu muito, se desdobrou em inúmeras iniciativas, em inúmeros mecanismos de diálogo e cooperação.
Os Estados Unidos estão numa confrontação verdadeiramente estratégica com a China. Essa confrontação vai além do problema do deficit comercial americano com a China, tem que ver com uma disputa pela hegemonia científica e tecnológica, sobretudo com a próxima introdução da tecnologia 5G na internet.
Mais especificamente, o governo Trump está pressionando fortemente seus aliados e outros parceiros para que impeçam a grande companhia chinesa Huawei de participar da instalação da infraestrutura de 5G em diferentes países. Eu temo que haja uma tentativa do lado americano, nas conversas, de pressionar o Brasil a também aderir a esse boicote.
O Brasil tem um deficit comercial com os Estados Unidos ainda que pequeno, de cerca de US$ 200 milhões, mas tem com a China um saldo comercial positivo de nada menos que US$ 30 bilhões de dólares. E a China é hoje, não só o maior parceiro comercial, como também o principal investidor no Brasil. O Brasil, portanto, tem muito a perder se, de alguma maneira, colocar-se ao lado dos Estados Unidos nessa tensão.
A visita está tendo resultados muito positivos em termos de aproximação com os Estados Unidos, o acordo (para uso comercial da base) de Alcântara, o aumento do comércio e dos investimentos, o intercâmbio na área de segurança, entre os militares, tudo isso é muito positivo. Agora, outra coisa é nós fazermos uma opção preferencial pelo alinhamento com os Estados Unidos, seja com relação a China, seja com relação a outros países, a outras questões. Isso é algo que devemos evitar.
BBC News Brasil - A liberação unilateral de vistos para americanos adotada na segunda-feira pode ser positiva ao aumentar o fluxo de turistas para o Brasil ou fere nossa soberania?
Abdenur - Eu não sou partidário incondicional da tese da reciprocidade (segunda a qual o Brasil só deveria eximir de visto cidadãos de países que não exijam visto de brasileiros). Os Estados Unidos têm suas razões para exigir visto dos brasileiros na medida em que existe uma imigração ilegal forte de brasileiros para lá. Agora, eu não creio que haja uma imensa demanda americana por visitar o Brasil e que deixa de visitar apenas porque tem (a exigência de) visto. Hoje o visto é dado eletronicamente, custa pouco dinheiro, não dá tanto trabalho assim.
Eu diria que, dentro desse contexto de aproximação com os Estados Unidos, eu até relevo a questão da reciprocidade e admito esta decisão, um gesto simbólico, embora não seja muito confortável em termos de soberania.
BBC News Brasil - Como recebe a declaração do Eduardo Bolsonaro de que os imigrantes brasileiros ilegais são uma vergonha para o Brasil?
Abdenur - Essa declaração do Eduardo Bolsonaro é inaceitável, é desrespeitosa para com compatriotas nossos que têm buscado no exterior há décadas oportunidades que não tiveram, que não têm no Brasil.
São pessoas que vão para os Estados Unidos e outros países para trabalhar. Não são vagabundos. Os brasileiros têm muita facilidade de se integrar na vida americana, aprender inglês. Espero que muito dos brasileiros que estejam hoje em situação ilegal venham pouco a pouco a ser legalizados nos Estados Unidos. Não faz sentido que um deputado brasileiro como é Eduardo Bolsonaro, e ademais filho do presidente, diga uma coisa tão negativa sobre os nossos compatriotas. É preciso ter respeito por eles.
BBC News Brasil - Na sua avaliação, o governo está exercendo uma política externa ideológica?
Abdenur - A julgar pelas manifestações do nosso novo chanceler, tanto num longo ensaio que ele fez antes de assumir, chamado Trump e o Ocidente, quanto no discurso dele de posse do Itamaraty, e também na aula magna que deu recentemente no Instituto Rio Branco (que forma os novos diplomatas), ele defende um ideário profundamente retrógrado, altamente ideologizado.
Ele coloca um substrato religioso na política externa, dizendo que o afastamento de Deus e da família é o que enfraquece o Ocidente. É uma postura altamente ideológica que, se levada adiante, a sério, terá como resultado encolher, delimitar muito o alcance da política externa brasileira.
Ele apresenta o Islã como inimigo da cultura acidental. Ora, o Estado brasileiro é laico. A política externa brasileira é laica, ela não se move por razões religiosas. E nós não podemos ignorar o resto do mundo. Existe mais de 1 bilhão de muçulmanos, dos quais 300 milhões são árabes, existem mais de 1 bilhão de hinduístas na Índia, mais de um bilhão de chineses (que não são cristãos), centenas de milhões de budistas no Japão, na Tailândia e outros países asiáticos.
Ora, o Brasil tem tradicionalmente seguido uma política pluralista, ecumênica e universalista, buscando ter relações com a totalidade do resto do mundo. Abrimos muitas embaixadas e consulados em anos recentes, temos uma rede diplomática muito extensa e isso deve ser mantido.
As ideias altamente ideológicas do novo chanceler se contrapõem a isso, se afastam de outras civilizações, de outras culturas, de outros países, isso é profundamente negativo para os interesses do Brasil.
BBC Brasil - Em sua primeira noite em Washington, ao discursar em um jantar na embaixada brasileira, Bolsonaro disse: "quando a diplomacia não dá certo, a retaguarda são as Forças Armadas". O senhor vê risco do Brasil aderir a uma eventual intervenção militar dos Estados Unidos na Venezuela?
Abdenur - A frase é meio vaga. Não sei se ele está se referindo ao círculo de assessores militares que está em volta dele (e têm funcionado como contenção ao radicalismo do chanceler Araújo na política externa). Acho que ele não estava se referindo à Venezuela. O assunto Venezuela certamente vai ser abordado para valer na conversa com o Trump e nas conversas entre as duas equipes.
Acho correta a atitude do governo Bolsonaro de ter reconhecido e prestigiado Juan Guaidó (presidente da Assembleia Nacional da Venezuela que foi reconhecido como presidente do país por dezenas de nações, mas que não tem o controle de fato do governo venezuelano) porque já não havia mais espaço para negociações com Nicolás Maduro (cuja eleição para um novo mandato presidencial foi considerada uma fraude por boa parte da comunidade internacional).
Eu entendo que o meio militar brasileiro tem um certo patrimônio de bom relacionamento com o meio militar venezuelano. Se o estamento militar brasileiro tiver condições de dialogar com o estamento militar venezuelano para mostrar a inviabilidade mais a longo prazo de um governo Maduro, isso é positivo.
Então, eu acho que a postura básica está correta, é preciso evitar estridência como por vezes faz o chanceler.
BBC News Brasil - E quanto a uma possível intervenção militar americana?
Abdenur - O Brasil assumiu uma posição correta em ser contra uma intervenção militar, que teria consequências para a paz e a estabilidade na América do Sul difíceis de prever. Essa posição foi endossada pelo Grupo de Lima e eu espero que o presidente e seus assessores sustentem perante Trump esta posição.
BBC News Brasil - Há expectativa de que durante a visita o Brasil ganhe dos Estados Unidos o status de "aliado extra-Otan". Seria algo positivo?
Abdenur - Não sei se isso vai sair. Eu acho que não é mal na medida em que aumenta as possibilidades de intercâmbio entre as Forças Armadas do Brasil e dos Estados Unidos. O importante é que nossas Forças Armadas preservem a sua identidade, a sua personalidade, não sejam colocadas em posição subalterna em relação aos Estados Unidos. Eu não acho que a caracterização do Brasil como aliado estratégico extra-Otan signifique necessariamente um rebaixamento da condição do Brasil. Pode dar resultados positivos.
BBC News Brasil - Depois de quase duas décadas do fracasso do acordo firmado pelo governo Fernando Henrique Cardoso para uso comercial da base de Alcântara, que foi rejeitado em comissão no Congresso inclusive com voto do então deputado Jair Bolsonaro, o agora presidente assina novo entendimento com os Estados Unidos. Vê ambiente para que isso prospere no Congresso dessa vez?
Abdenur - Pelo que dizem as pessoas que estiveram conduzindo as negociações, elas resolveram os problemas de prejuízo a nossa soberania que existiam na primeira versão do acordo, do ano 2000. Eu acho importante porque nós temos a base há mais de 20 anos sem uso. O entendimento com a Ucrânia (firmado no governo Lula e depois abandonado) era precário, a Ucrânia não teria condições plenas de cumprir com tudo que seria necessário. Perdeu-se tempo, perdeu-se dinheiro e não se conseguiu nada. E 80% dos lançamentos de satélites no mundo são feitos ou pelos Estados Unidos ou com componentes americanos colocados em foguetes de terceiros países, então, os Estados Unidos têm grande poder de veto em relação ao lançamento de satélites.
Eu realmente acho muito positivo esse acordo porque vai se viabilizar pela primeira vez, ainda que com muito atraso, a base de Alcântara. Como disse o ministro de Ciência e Tecnologia (Marcos Pontes), com esse entendimento com os Estados Unidos será fácil seguirmos com entendimento com outros países. Não queremos que apenas os Estados Unidos usem a base.
BBC Brasil - Há pouca esperança de avanços concretos em duas demandas brasileiras: a entrada na OCDE e a reabertura do mercado americano à carne brasileira in natura. O Brasil vai sair com pouco na área econômica desse encontro, ou é natural que essas discussões se alonguem?
Abdenur - Seria muito auspicioso o Brasil poder entrar para a OCDE, seria uma espécie de selo de qualidade na governança e nas políticas públicas do Brasil. Isso daria não só prestígio político, mas teria consequências ainda que indiretas no campo econômico, para reduzir o spread (juros cobrados) de empréstimos ao Brasil, para valorizar o nosso rating (avaliação de risco do país).
Mas as indicações são de que não haverá progresso em relação a isso nas conversas em Washington. Consta que os Estados Unidos querem que primeiro a OCDE defina critérios para sua ampliação, não querem que a organização cresça muito.
No entanto, a visita aos Estados Unidos tem uma repercussão qualitativamente boa. A presença do ministro da Economia, o Paulo Guedes, e de outros ministros ao lado do presidente, os contatos que estão tendo com empresários, com associações comerciais, com membros do governo americano, com jornalistas, isso tudo tem uma repercussão muito positiva junto ao empresariado americano, se irradia mundo afora e aumenta a disposição para investir no Brasil.
De modo que eu acho que a visita tem sim um impacto muito positivo no plano econômico, financeiro e de investimentos.
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