As pessoas que sofrem de depressão no "país mais feliz do mundo"
A Finlândia costuma liderar o ranking das nações mais felizes, mas essa imagem traz problemas para quem sofre de depressão no país.
Tomando sol do lado de fora de uma cafeteria decorada com móveis nórdicos minimalistas e tecidos coloridos, Tuukkas Aaarni é uma espécie de garoto-propaganda da Finlândia, líder do ranking de felicidade da ONU (Organização das Nações Unidas) pelo segundo ano consecutivo.
"Estou muito feliz agora", diz o jovem de 19 anos, que recentemente concluiu o ensino médio e está prestes a começar um trabalho em uma mercearia depois de alguns meses em busca de emprego.
De fato, ele dá uma nota 10 de 10 para seu nível de felicidade, dizendo que nem ele nem ninguém em seu grupo de amigos já sofreu depressão. "Nossas vidas estão indo muito bem. Temos um bom clima - às vezes, pelo menos - boa educação e boa saúde."
Uma cultura local que incentiva passar tempo sozinho e com amigos também é algo que ele valoriza, ao lado da vasta natureza da Finlândia e dos baixos níveis de desemprego. "Há muitos empregos. Se alguém está em busca, pode conseguir um", argumenta.
São esses aspectos - juntamente com altos níveis de confiança e segurança e baixas taxas de desigualdade - que explicam a por vezes controversa posição da Finlândia no ranking global de felicidade.
O pequeno país de apenas 5,5 milhões de habitantes tem sido historicamente estereotipado - também - como uma nação de mentalidade melancólica, algo ligado aos seus longos e escuros invernos. De fato, não é um lugar onde você vê regularmente manifestações de alegria ou outras emoções positivas.
Ainda assim, como seus vizinhos escandinavos, a Finlândia atende a maior parte dos requisitos que normalmente influenciam a noção subjetiva de bem-estar em todo o mundo.
'Mundo mais complexo'
Mas muitos especialistas argumentam que essa imagem da Finlândia como uma nação feliz encobre desafios quando se trata de saúde mental - especialmente em relação aos jovens.
Alguns acreditam que isso pode até tornar mais difícil para os finlandeses reconhecerem sintomas da depressão e procurarem tratamento.
As taxas de suicídio na Finlândia de hoje são 50% menores do que na década de 1990 e caíram em todas as faixas etárias - uma mudança associada a uma campanha nacional de prevenção e a tratamentos melhores para depressão.
Mas elas permanecem bem acima da média europeia. Um terço de todas as mortes entre jovens de 15 a 24 anos tem o suicídio como causa.
De acordo com um relatório de 2018, "Na sombra da felicidade", elaborado pelo Conselho Nórdico de Ministros e o Instituto de Pesquisa da Felicidade em Copenhague, cerca de 16% das mulheres finlandesas de 18 a 23 anos e 11% dos jovens dizem que enfrentam sérias dificuldades na vida ou estão sofrendo. Este nível só é pior entre aqueles com 80 anos ou mais.
A organização sem fins lucrativos Associação Finlandesa para Saúde Mental (Mieli, na sigla em finlandês) estima que cerca de 20% das pessoas com menos de 30 anos já tiveram sintomas depressivos no ano passado.
"É algo predominante", diz Juho Mertanen, psicólogo da organização. "E há sinais de que pode estar aumentando, embora esse aumento não seja tão extremo quanto alguns veículos de mídia daqui apontaram."
Um relatório de 2017 do Centro Nórdico de Bem-Estar e Questões Sociais apontou haver relação entre abusos de substâncias químicas e problemas de saúde, observando que os finlandeses bebem mais do que seus vizinhos nórdicos. Também houve um aumento no uso de drogas na faixa etária de 25 a 34 anos.
E, embora as taxas de desemprego em todo o país sejam baixas, elas são significativamente mais altas entre os jovens: cerca de 12,5% das crianças de 15 a 19 anos estavam desempregadas no final de 2018, a maior proporção nos países nórdicos e acima da média da União Europeia (UE), de 11,5%.
Mertanen concorda que o mercado de trabalho tem um impacto sobre problemas de saúde mental entre os jovens finlandeses, porque "há muita incerteza hoje". Embora a Finlândia seja um país financeiramente estável para os padrões internacionais, a desigualdade está aumentando, ele acrescenta.
O psicólogo também ressalta que a Finlândia está exposta às tendências globais da digitalização e é um país onde a "economia dos bicos" está em alta e começa a desempenhar um papel importante nas discussões sobre saúde mental entre os jovens do mundo ocidental.
"O mundo está se tornando mais complexo. A economia está mudando, há menos carreiras estáveis em que você possa trabalhar sem parar até se aposentar", diz Mertanen. As mídias sociais, ele argumenta, também podem ter um efeito sobre a saúde mental dos jovens na Finlândia e em outros lugares.
Embora Mertanen aponte que há poucas pesquisas de longo prazo e em larga escala que analisam os impactos de serviços como Instagram e Facebook, ele explica que "a mente deprimida é propensa a fazer comparações" e que as mídias sociais oferecem uma forma fácil para alguns "compararem [seus] piores momentos com os melhores momentos da vida de outra pessoa".
Mertanen diz ser possível que a imagem da Finlândia como um lugar onde as pessoas estão satisfeitas com suas vidas esteja exacerbando o impacto negativo dessas tendências globais nos jovens finlandeses, que não sentem que suas experiências coincidem com esse estereótipo.
'Tudo estava bem, mas...'
É uma visão compartilhada por muitos jovens finlandeses que sofreram de depressão. "Você quase sente que não tem o direito de ficar deprimido quando vive em um país como a Finlândia, onde o padrão de vida é tão alto", explica Kirsi-Marja Moberg, de 34 anos, que foi diagnosticada pela primeira vez com depressão quando era adolescente e lutou contra a doença ao longo dos seus vinte anos.
"Você pensa que deveria estar se divertindo e aproveitando todas as possibilidades que você tem quando ainda é jovem."
Jonne Juntura, um médico de 27 anos que ficou deprimido por seis meses durante os estudos na universidade, concorda: "Na Finlândia, você acha que tudo deve estar bem, mesmo que não esteja".
Ele ressalta que, embora questões pessoais e sociais difíceis estejam frequentemente ligadas à depressão - por exemplo, fins de relacionamentos ou recessões -, é uma doença que pode afetar as pessoas independentemente do seu padrão de vida.
"Mesmo sendo o país mais feliz do mundo, de acordo com as estatísticas, a depressão é uma doença e nem sempre está relacionada às circunstâncias", afirma Juntura.
"Quando adoeci, tudo estava bem com minha vida. Estava gostando muito da minha escola. Amava meus hobbies. Estava em um relacionamento. Então, não havia nada de errado. Mas, ainda assim, fiquei doente."
Um estigma social?
A maioria dos especialistas em saúde mental concorda que os tabus em torno da depressão e da ansiedade começaram a desmoronar na Finlândia, especialmente desde o início da campanha nacional anti-suicídio.
Isso contribuiu para que mais pessoas procurassem tratamento, o que dificulta a comparação das taxas de depressão ao longo dos anos e entre as faixas etárias.
Mas muitos jovens finlandeses que sofreram depressão, incluindo Kirsi-Marja Moberg, acreditam que ainda existe um estigma associado a alguém "identificado como uma pessoa deprimida".
"O quão livremente as pessoas falam sobre essas coisas depende do tipo dos seus círculos sociais, de onde se more... O tabu definitivamente ainda existe", diz ela.
Em uma cultura em que a privacidade é valorizada, as manifestações abertas de emoções são raras e até mesmo jogar conversa fora é algo que se evita, reconhecer e discutir a depressão pode continuar sendo um desafio para finlandeses com a doença. "Não é só um estereótipo", diz Juntura, sobre a reputação da comunicação limitada entre os finlandeses.
Agora, tratando seus próprios pacientes com depressão, ele argumenta que os jovens podem achar especialmente difícil verbalizar pelo que estão passando.
"Os problemas de saúde mental ainda estão associados à fraqueza e, na cultura masculina, algumas pessoas acham difícil dizer que estão se sentindo tão mal."
Recebendo tratamento
Quando se trata de ajuda para a depressão, as autoridades municipais são responsáveis pelos serviços de saúde mental, que são fortemente subsidiados por impostos.
Isso significa que, como em outros países nórdicos com fortes sistemas de assistência social, aqueles que enfrentam problemas de saúde mental não devem, em teoria, ter problemas para conseguir se tratar.
No entanto, nos últimos anos, tem havido debates políticos sobre as longas listas de espera para isso nas cidades maiores, o acesso a tratamento em áreas mais remotas e os cuidados com adolescentes à medida que passam para a idade adulta.
"Acho que a necessidade aumentou, mas os serviços de saúde não conseguem atender essa demanda. É realmente difícil obter ajuda rapidamente. Pode levar semanas ou até meses. E, em uma situação de crise, isso é muito tempo", diz Emmi Kuosmanen, que trabalha com adolescentes em uma escola de ensino médio em Helsinque.
O psicólogo Mertanen concorda que a intervenção precoce é crucial para a recuperação, especialmente entre os jovens que experimentam sintomas depressivos pela primeira vez.
"Com a saúde mental, geralmente, se você não recebe ajuda desde o início, a pessoa pode cavar um buraco mais fundo nesse meio tempo", diz o psicólogo.
Uma ferramenta que ganhou popularidade nos últimos anos é a plataforma digital Mental Health Hub, criada pelo professor Grigori Joffe e pelo médico Matti Holi no hospital central da Universidade de Helsinque, como resposta aos serviços de saúde mental fragmentados e à necessidade de tratamento em uma nação em grande parte escassamente povoada.
Agora usado por todos os distritos de saúde, fornece informações sobre onde procurar tratamento, ferramentas de autoajuda e até sessões de videoterapia para pessoas com depressão leve a moderada. Existe também uma linha direta de crise administrada pela Mieli.
Enquanto isso, uma petição pública para que toda pessoa que procure ajuda para um problema de saúde mental tenha garantida uma breve intervenção psicoterapêutica em menos de um mês conquistou mais de 50 mil assinaturas, o mínimo necessário para que uma iniciativa seja debatida no Parlamento.
A ministra de Assuntos da Família e Serviços Sociais da Finlândia, Krista Kiuru, apoia a iniciativa, que deve ser discutida entre os políticos ainda este ano.
O custo anual dessa iniciativa é estimado em 35 milhões de euros por ano (cerca de R$ 159 milhões), no entanto, ativistas argumentam que ela poderia ajudar na economia de um valor dez vezes maior por meio da redução da concessão de auxílios-doença ou de desemprego.
O médico Juntura, que teve depressão, diz estar confiante de que, apesar dos desafios atuais da Finlândia quando se trata de combater a doença entre os jovens, os serviços continuarão a melhorar.
Ele espera que - juntamente com um maior investimento em intervenções precoces - o debate nacional também evolua como resultado da expansão da conscientização global sobre a depressão.
A recente inclusão pela ONU da saúde mental como objetivo de desenvolvimento sustentável é um exemplo de uma mudança radical de atitudes em relação a isso nos últimos anos, segundo Juntura.
"As pessoas estão lentamente começando a entender os problemas de saúde mental e quantos recursos são necessários, quando se trata de fornecer serviços para a sociedade toda", argumenta ele. "Ainda há muito a ser feito, mas me sinto realmente otimista."
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