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Menções de autoridades ao AI-5 seriam algo 'inaceitável' em outros países, diz pesquisadora de Oxford

Na segunda-feira, ministro disse que as pessoas não podem "se assustar" se houve pedidos por um novo AI-5 - OLIVIER DOULIERY/AFP
Na segunda-feira, ministro disse que as pessoas não podem 'se assustar' se houve pedidos por um novo AI-5 Imagem: OLIVIER DOULIERY/AFP

Nathalia Passarinho - @npassarinho - Da BBC News Brasil em Londres

27/11/2019 17h26

Para Francesca Lessa, autora de cinco livros sobre regimes miltares, nos outros países da América Latina que viveram ditaduras, como Chile, Argentina e Uruguai, comentários nostálgicos sobre esse período não seriam tão tolerados como no Brasil. Ela cita 4 fatores que ajudam a explicar o motivo essa diferença.

"Não se assustem, então, se alguém pedir o AI-5". "Se a esquerda radicalizar, a resposta pode ser via novo AI-5". "Não houve golpe militar em 1964".

Essas frases, ditas respectivamente pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, o deputado federal Eduardo Bolsonaro e o presidente Jair Bolsonaro dificilmente seriam proferidas hoje, em público, por governantes de outros países da América Latina que sofreram ditaduras militares, segundo a pesquisadora da Universidade de Oxford, Francesca Lessa, doutora em Relações Internacionais.

Autora de cinco livros e dezenas de artigos sobre regimes militares e transições democráticas, ela diz que, em nações como Argentina, Chile e Uruguai, não haveria por parte da população e dos políticos em geral a mesma "tolerância" a comentários saudosistas ou revisionistas sobre a ditadura militar.

"Acho que, no Brasil, nos últimos dois anos, há uma crescente aceitação desses discursos de apologia à ditadura e aos tipos de crimes perpetuados pela ditadura", disse em entrevista à BBC News Brasil.

"A Argentina seria o país onde haveria menos espaço para discursos nostálgicos ou de retorno da ditadura e o Brasil estaria no outro extremo."

Na segunda (25/11), em entrevista coletiva em Washington, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que não é possível "se assustar" com a ideia de alguém pedir um novo AI-5 diante de um hipotético cenário de protestos de rua radicais no Brasil. Editado em 1968, o Ato Institucional número 5, fechou o Congresso Nacional e cassou as liberdades individuais.

ditaduras - Arquivo Nacional - Arquivo Nacional
Para Francesca Lessa, nos outros países da América Latina que viveram ditaduras, como Chile, Argentina e Uruguai, comentários nostálgicos sobre esse período não seriam tão tolerados como no Brasil
Imagem: Arquivo Nacional

Em várias ocasiões, Jair Bolsonaro e seus filhos exaltaram o período de regime militar. Bolsonaro, inclusive, questiona a ocorrência de um golpe de Estado em 1964, quando os militares assumiram o poder à força.

"Lembro quando Bolsonaro homenageou o coronel Brilhante Ustra, militar conhecido pelos atos de tortura no Brasil. Esse tipo de homenagem não aconteceria no Chile, no Uruguai ou na Argentina, onde há uma rejeição maior a esse tipo de discurso", diz Lessa, em referência ao momento em que o presidente, então deputado federal, dedicou o voto a favor do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff ao coronel Carlos Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi e reconhecido por comandar torturas.

A pesquisadora da Universidade Oxford lembra ainda que o comentário que Bolsonaro fez em setembro sobre o ex-ditador chileno Augusto Pinochet e o pai da ex-presidente do Chile Michelle Bachelet. Na ocasião, o brasileiro foi criticado pelo atual presidente do Chile, Sebastian Piñera, ele próprio um adversário político de Bachelet.

Em sua conta no Twitter, Bolsonaro disse, em setembro, que "se não fosse o pessoal do Pinochet derrotar a esquerda em 1973, entre eles o seu pai (de Bachelet), hoje o Chile seria uma Cuba".

O pai de Bachelet, general Alberto Bachelet, foi torturado e morto pela ditadura de Pinochet.

No Uruguai, Lessa destaca que recentes declarações de militares sobre disposição de intervir em caso de desordem nas eleições foram amplamente criticadas e políticos chegaram a entrar com ações na Justiça pedindo punição.

Na Argentina, diz ela, há ainda menos espaço para exaltações públicas aos sete anos de regime militar no país.

"Lá há um amplo reconhecimento de que havia uma política sistemática de desaparecimentos, terror estatal e tortura. Então, no caso argentino, a rejeição desses argumentos nostálgicos é forte e há grupos atuantes em defesa dos direitos humanos."

Mas por que, no Brasil, figuras públicas e autoridades se sentem confortáveis em exaltar o regime militar e mencionar um novo AI-5 como uma possibilidade real?

Por que a memória brasileira sobre o período da ditadura parece ser diferente da compartilhada por grande parte dos argentinos, chilenos e uruguaios?

A pesquisadora da Universidade de Oxford cita quatro elementos que ajudam a explicar isso:

1) O fato de a ditadura no Brasil ter sido relativamente menos sanguinária se comparada às de Argentina, Chile e Uruguai;

2) A ausência de punição e julgamentos de militares que cometeram violações e torturas;

3) O fato de o Congresso Nacional ter se mantido aberto durante grande parte do período em que vigorou a ditadura militar e de terem sido mantidas eleições para alguns cargos;

4) A duração mais longa da ditadura no Brasil, com grande intervalo entre o período mais violento do regime e a abertura democrática.

Mais tempo de ditadura, com menos mortes

O regime militar no Brasil durou de 1964 a 1985 e o período mais duro do regime, durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici, foi de 1969 a 1974.

Segundo relatório da Comissão da Verdade, durante os 20 anos de duração da ditadura no Brasil, 424 pessoas morreram ou desapareceram. Também foram identificados 370 casos de tortura.

Essa quantidade de mortos e torturados, embora relevante, é menor que a identificada na Argentina, no Chile e no Uruguai, principalmente quando levado em consideração o tempo de duração desses regimes militares e o tamanho da população.

"Na Argentina, houve de 15 mil a 30 mil desaparecidos e é um país muito menor. E a ditadura durou sete anos, então a violência foi muito brutal e concentrada. Então, quando você compara a extensão das violações de direitos, na Argentina elas foram mais intensas que no Brasil", diz Lessa.

No Chile, a comissão que investigou os crimes cometidos durante a ditadura de Pinochet, que durou de 1974 a 1990, apontou mais de 3 mil mortos.

Na Argentina, número de mortos e desaparecidos durante os sete anos de ditadura militar ultrapassa 15 mil - DANIEL GARCIA/AFP - DANIEL GARCIA/AFP
Na Argentina, número de mortos e desaparecidos durante os sete anos de ditadura militar ultrapassa 15 mil
Imagem: DANIEL GARCIA/AFP

No Uruguai, país com uma população muito menor que a do Brasil, o governo publicou em 2011 uma lista com nomes de 465 mortos durante a ditadura militar, que durou de 1973 a 1985.

Para Lessa, também conta o fato de os momentos mais violentos da ditadura no Brasil terem ocorrido no final da década de 60 e início de 70. Chile e Uruguai vivenciaram os períodos mais violentos depois, a partir da segunda metade da década de 70.

Ou seja, as violações aos direitos humanos estariam mais "frescas" na memória desses países.

"Na metade da década de 70, os ditadores brasileiros iniciaram o longo processo de transição e abertura para a democracia. Ainda havia repressão, mas era numa escala menor", diz a pesquisadora.

"E a ditadura brasileira durou 21 anos. Na Argentina, ela durou sete anos. Ou seja, na Argentina a violência e a perseguição se concentraram num período curto de tempo."

Impunidade

Outro fator que pode ter contribuído para a diferença na forma como os diferentes países da América Latina encaram o passado de ditadura militar é o fato de terem ou não punido líderes acusados de tortura e violações.

Uruguai, Peru, Chile, e Argentina tiveram processos contra integrantes do regime e, em alguns casos, os principais líderes foram condenados e presos. Já no Brasil a Lei de Anistia, de 1979, garantiu perdão aos crimes cometidos durante o governo militar, inclusive torturas praticadas por agentes do Estado contra presos políticos.

Ou seja, a mesma lei beneficiou exilados perseguidos pelo regime e integrantes das Forças Armadas que participaram dele.

Segundo Lessa, a Argentina é o país que puniu com mais rigor os crimes cometidos durante a ditadura - houve mais de 900 processos contra agentes do Estado que praticaram crimes, como tortura e assassinatos.

"No caso argentino, a rejeição de argumentos nostálgicos é forte e há grupos atuantes em defesa dos direitos humanos, e isso é um reflexo das centenas de processos e condenações de pessoas envolvidas em mortes e torturas", diz a pesquisadora da Universidade de Oxford.

"Todos os argentinos, inclusive as novas gerações, já leram sobre as violações aos direitos humanos nos jornais e revistas do país, por causa dos processos e condenações que se seguiram ao regime militar."

No Chile, diz Lessa, o número de processos judiciais contra ex-integrantes do regime militar é semelhante, mas a punição tem sido "mais branda". Lá, uma parcela da população ainda manifesta saudosismo pelo regime de Pinochet, mas, segundo Lessa, políticos de peso não costumam manifestar declarações como as de Bolsonaro e seus filhos a respeito da ditadura militar.

Durante o período que Pinochet governou o Chile, mais de 3 mil pessoas foram mortas ou desapareceram. O general chegou a ficar preso por 503 dias, mas acabou sendo liberado - Getty Images - Getty Images
Durante o período que Pinochet governou o Chile, mais de 3 mil pessoas foram mortas ou desapareceram. O general chegou a ficar preso por 503 dias, mas acabou sendo liberado
Imagem: Getty Images

Já no Uruguai, houve menos processos contra acusados de tortura e assassinatos, mas eles foram emblemáticos, segundo Lessa.

"O ditador que liderou o golpe militar em 1973 foi condenado a 30 anos de prisão por violações de direitos humanos. Também condenaram um ex-ministro de Relações Exteriores e outros ditadores que assumiram posteriormente", lembra a pesquisadora.

Lessa acredita que os países que vivenciaram um processo de punição mais forte pelas violações ocorridas durante as ditaduras são, também, os que menos toleram discursos nostálgicos por parte de integrantes do poder político atual.

"Nos países onde condenações não ocorreram ou foram poucas pode haver uma tolerância maior a discursos de nostalgia. No Brasil, esse tipo de discurso tem ocorrido com frequência."

"Cada país tem suas características e há gradações em que eles podem ser posicionados em termos da aceitação à exaltação da ditadura. Claro que isso não é estanque, mas se tirássemos uma fotografia do momento, a ordem seria Argentina, Uruguai, Chile e Brasil, do menos tolerante com discursos antidemocráticos para o mais tolerante."

Democracia limitada

Outra diferença significativa entre o regime militar do Brasil e o de outros países latino-americanos é o fato de o Congresso Nacional ter permanecido aberto durante grande parte do período em que durou a ditadura.

O Ato Institucional número 2, de 1964, instituiu o bipartidarismo. A partir dali, apenas Arena e MBD podiam ter representantes no Congresso. Mas o fato de o Legislativo permanecer em funcionamento e de, a partir de 1972, haver eleições diretas para senador e prefeito, exceto para as capitais, garantiu ao regime militar uma imagem de relativa legalidade ou de "democracia parcial".

Manutenção do Congresso Nacional aberto e ocorrência de eleições criou aparência de relativa institucionalidade para o regime militar do Brasil - Arquivo Nacional - Arquivo Nacional
Manutenção do Congresso Nacional aberto e ocorrência de eleições criou aparência de relativa institucionalidade para o regime militar do Brasil
Imagem: Arquivo Nacional

Também contribuiu para essa imagem o fato de haver mudanças entre os generais que comandaram o Brasil durante o regime militar. Cinco generais ocuparam a chefia de Estado entre 1964 e 1985: Castelo Branco, Arthur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo.

Lessa lembra que, nos demais países da América Latina que passaram por ditaduras militares, não havia Congresso Nacional em funcionamento durante o período, nem eleições diretas. Além disso, houve menos alternância de generais no poder.

No Chile, uma mesma pessoa, Augusto Pinochet, governou o país por 17 anos, de 1973 a 1990. "Não havia Congresso funcionando, aberto, em nenhum outro país da América do Sul onde houve ditadura, nem eleições diretas. Isso certamente é um elemento que diferencia o caso do Brasil", diz Lessa.

Exaltação da ditadura revela nível de democracia

Para Lessa, a reação das populações às declarações pró-ditadura ajuda a revelar o quão consolidada é a cultura democrática de cada país.

A pesquisadora também afirma que, embora as instituições democráticas dos países da América Latina sejam mais fortes hoje que há cerca 50 anos, quando os primeiros regimes militares se estabeleceram, há riscos de retrocessos.

"Por enquanto, as instituições estão resistindo, mas é um equilíbrio delicado e os governos da região tendem a recorrer a um excesso de força quando há protestos populares, o que não é necessário. Isso ocorreu recentemente no Chile e na Bolívia", lembra Lessa.

"Também tem havido discursos que desafiam direitos existentes hoje e retrocessos em direitos de mulheres e outras minorias, como os indígenas. Com certeza, a democracia na América Latina é mais forte que há 50 anos, 40 anos, mas sempre precisamos estar alertas porque retrocessos estão sempre à espreita."