Quem foi Pedro Aleixo, que apoiou o golpe, mas foi o único a votar contra o AI-5 na reunião que decidiu pela decretação do ato
Na noite de 13 de dezembro de 1968, os membros do Conselho de Segurança do regime militar se reuniram no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, a pedido do então presidente Artur da Costa e Silva.
Na pauta estava a decretação do Ato Institucional Número 5, que deu ao início ao período mais autoritário da história recente do Brasil.
Entre os presentes estava o vice-presidente da República, o civil mineiro Pedro Aleixo. Aleixo não tinha virado vice-presidente por acaso - apoiara o golpe contra João Goulart quatro anos antes, assim como fizeram outros civis da elite política e econômica do país. No entanto, sabia o que o ato representaria e, naquela noite, votou contra sua decretação. Foi o único dos 23 membros do conselho a fazê-lo.
No ano seguinte, quando deveria assumir o lugar de Costa e Silva, que havia morrido, foi impedido de tomar posse pelas Forças Armadas. Não voltou mais à política.
Em 2011, uma lei incluiu o nome de Pedro Aleixo na galeria de presidentes da República.
Também entrou para o folclore da história política do Brasil porque teria dito, quando lhe foi perguntado se não confiava em Costa Silva, que, sim, confiava muitíssimo, mas temia pelo efeito que o AI-5 teria no comportamento do "guarda da esquina". Não há registros que provem que a declaração aconteceu, mas sua filha e amigos dizem que sim.
A frase vem sendo lembrada em discussões sobre como o discurso político de um chefe do Executivo pode impactar seus subordinados na outra ponta da hierarquia. Especialistas opinam que a crescente violência policial e o desmatamento ilegal estão ligados a posicionamentos agressivos do presidente Jair Bolsonaro e outros políticos, como o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel.
Aleixo morreu em 1975. Naquele mesmo ano, seu irmão Alberto também morreria num hospital do Rio por causa de ferimentos decorrentes de tortura.
Quem era essa contraditória figura da história brasileira?
Por que Aleixo participava do governo militar?
Aleixo era um respeitado bacharel, professor e político de carreira, fundador e diretor do jornal Estado de Minas. O mineiro fazia parte da ala dos liberais que apoiaram o golpe de 1964, mas mais tarde se afastaram. No livro A Ditadura Envergonhada, o autor, o jornalista Elio Gaspari escreve que Aleixo era conhecido por sua "retidão e tibieza".
Como descreve o professor de História da Universidade de São Paulo Marcos Napolitano, havia vários matizes de liberalismo no grupo do qual Aleixo fazia parte, "desde liberais que poderiam ser considerados moderados, que aceitavam reformas sociais modernizantes, mas eram anticomunistas, até liberais de tradição francamente oligárquica, antipopulistas e antirreformistas".
Além disso, diz ele, "havia liberais estritamente economicistas, que professavam a fé na economia de mercado e na propriedade privada, mas eram politicamente conservadores e autoritários quando se tratava de defender a ordem social tradicional, supostamente ameaçada."
Aleixo era da ala do liberalismo conservador brasileiro, diz o professor. "Este tipo de liberalismo poderia ser descrito como restrito à defesa de normas jurídicas formais na organização do Estado e à defesa intransigente da propriedade privada, mas socialmente elitista e politicamente conservador, flertando com o autoritarismo em momentos de crise social e política. A trajetória aparentemente contraditória de Pedro Aleixo se conecta às contradições deste tipo de liberalismo, muito comum na América Latina, mas sobretudo uma marca da política brasileira."
O professor de História da Universidade Federal de Minas Gerais Rodrigo Patto Sá Motta os descreve assim: "ele pertencia à ala de figuras que aceitaram o golpe, mas ao mesmo tempo não desejavam uma ditadura sem limites. Era uma espécie de liberalismo autoritário, a favor da repressão à esquerda, mas que desejava garantias para a opinião política moderada. Havia outros como ele, a exemplo de Milton Campos e Luiz Vianna Filho, que se sentiram desconfortáveis em relação ao AI-5, mas ao mesmo tempo eram a favor da intervenção em 1964."
Para o professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos João Roberto Martins Filho, os membros desse grupo tinham a ilusão de que o governo militar seria transitório. "Uma vez que ele não foi, ficaram paralisados", diz Martins Filho.
Segundo o professor, em memórias escritas posteriormente, esses políticos tentaram justificar suas posições dizendo que tinham um compromisso com os presidentes. "Os presidentes diziam que falavam em nome da democracia, que entregariam o poder. É uma contradição, mas ninguém ali dizia 'sou contra a democracia'. Eles se definiam como um regime autoritário que defendia a democracia."
Até o AI-5, no entanto, Aleixo foi parte importante do golpe e da sustentação do governo. Como líder da oposição a João Goulart na Câmara, participou ativamente das articulações entre civis e militares pela derrubada do então presidente, que a justificavam dizendo que a Constituição estava sob ameaça das propostas socialistas do governo.
O jornalista Jesus Chediak, que dirigiu um documentário sobre Aleixo exibido no Canal Brasil, Parto Para Liberdade, diz que Aleixo era "um liberal absolutamente coerente. Ele realmente acreditava que haveria um golpe da esquerda. Hoje sabemos que não era nada disso, mas ele achava que sim", diz ele, que hoje atua como curador na Secretaria de Cultura do Estado do Rio.
Segundo sua biografia no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, Aleixo foi um dos redatores do texto que viria a ser o primeiro Ato Institucional, que determinava como seria um processo de eleição indireta de presidentes e permitia punições a pessoas ligadas a Goulart.
Foi um dos fundadores e liderou a União Democrática Nacional (UDN), partido que dava sustentação ao governo militar. Seria também líder da Aliança Renovadora Nacional (Arena), que substituiu a UDN após a extinção dos partidos pelo AI-2. Em 1967, assumiu como vice do presidente Artur da Costa e Silva.
O conteúdo do AI-5, no entanto, era um limite que Aleixo não podia ultrapassar, dizem pesquisadores. Como liberal, diz Martins Filho, Aleixo tinha certos princípios, todos eles atingidos pelo AI-5: autonomia dos municípios e Estados em relação ao poder central, a independência dos poderes, garantias a direitos individuais.
Esses princípios, diz o professor, já haviam sido atacados, mas havia sobrado algo, principalmente o habeas corpus, que protege cidadãos de abuso de autoridade.
"O AI-5 permite a intervenção em Estados e municípios, cassações, que se afaste ministros do Supremo Tribunal Federal, o fim do habeas corpus. Não precisava de muito para perceber que essas coisas acabavam com o que sobrava de liberalismo no Brasil. O Pedro Aleixo se recusou", diz Martins Filho.
"Defendia simultaneamente o regime constitucional e sua biografia", escreve Gaspari no primeiro livro de sua série sobre a ditadura. "Mais esta que aquele", conclui o jornalista.
Não era a primeira vez que Aleixo participava da ascensão de um regime para depois deixá-lo quando o julgasse excessivamente autoritário.
Ele foi um dos arquitetos da candidatura de Getúlio Vargas à presidência da República em 1930, pela qual organizou o movimento Aliança Liberal, como conta sua biografia no CPDOC.
Com a vitória de Julio Prestes, foi um dos mais ativos na movimentação que culminou na Revolução de 1930 e na ascensão de Vargas ao poder.
Com a decretação do Estado Novo, Aleixo retirou seu apoio a Vargas, depois de enviar a ele um telegrama onde criticava o fato de o edifício da Câmara dos Deputados ter sido ocupado por tropas da polícia. Chegou a ser convidado para ser Prefeito de Belo Horizonte, mas declinou.
Por ter participado da articulação que gerou o chamado Manifesto dos Mineiros, documento que repreendia o governo, foi destituído do cargo de diretor do Banco Hipotecário e Agrícola de Minas Gerais.
Qual era o contexto e como ele agiu na reunião que decidiu pelo AI-5?
Há diversas interpretações históricas do que provocou o AI-5. Alguns autores dizem que foi uma reação à resistência ao governo militar que se fortalecera naquele ano. Os militares argumentavam que o governo estava ameaçado pela esquerda. Outros, como Martins Filho, dizem que essa suposta ameaça foi apenas um pretexto para superar tensões entre grupos das Forças Armadas e impor a força militar. Outros ainda, como Patto Sá, acham que o AI-5 "se prestava não apenas a intensificar a repressão sobre a esquerda, mas, sobretudo, a enquadrar os dissidentes nas próprias hostes da ditadura".
Seja como fosse, todos os membros do Conselho de Segurança votaram a favor do texto, redigido pelo ministro da Justiça, Gama e Silva. Sobre a mesa em torno da qual aconteceu a reunião havia um gravador, que registrou tudo que foi dito naquela noite.
"A decisão está tomada e é proposta ao Conselho de Segurança Nacional, para ampla discussão, para a ampla opinião de cada um, porque eu não desprezo o conselho do Conselho de Segurança Nacional", disse o presidente.
"Eu preciso que cada membro diga aquilo que sente, aquilo que pensa e aquilo que está errado nisto, para que possamos, com consciência tranquila, e vivamente apoiado num conselho como este, de responsabilidade enorme perante a nação, eu possa autenticar, [corte], para depois estabelecer uma discussão."
Anos depois, Delfim Netto, então um jovem ministro da Fazenda, faria a seguinte avaliação sobre a reunião e a posição de Aleixo, citada no livro de Gaspari: "Naquela época do AI-5 havia muita tensão, mas no fundo era tudo teatro. Havia as passeatas, havia descontentamento militar, mas havia sobretudo teatro. Era um teatro para levar ao Ato. Aquela reunião foi pura encenação. O Costa e Silva de bobo não tinha nada. Ele sabia a posição do Pedro Aleixo e sabia que ela era inócua. Ele era muito esperto. Toda vez que ia fazer uma coisa dura chamava o Pedro Aleixo para se aconselhar e, depois, fazia o que queria. O discurso do Marcito (deputado Moreira Alves, que chamou o Exército de antro de torturadores e convocou as mulheres a pararem de dançar com oficiais em bailes) não teve importância nenhuma. O que se preparava era uma ditadura mesmo. Tudo era feito para levar àquilo".
Costa e Silva interrompeu a reunião para que os membros pudessem ler o conteúdo do ato. Ele trazia medidas draconianas, como fechar o Congresso Nacional, cassar mandatos parlamentares, intervir em Estados e municípios, suspender os direitos políticos de qualquer cidadão por até dez anos e suspender a garantia do habeas corpus.
Aleixo foi o primeiro a falar. Já havia adiantado ao presidente que seria contra o ato. Eles haviam conversado logo antes da reunião. Aleixo sugeriu que fosse decretado um estado de sítio e, "se então o país continuasse sendo vítima dessas tentativas de subversão que aí estão na rua a todo momento, neste instante, então, a própria nação, entendo eu, sem que houvesse assim uma antecipação de movimentos, compreenderia a necessidade de um outro procedimento", disse ele.
"Eu estaria faltando um dever para comigo mesmo se não emitisse, com sinceridade, esta opinião (...) Porque, da Constituição (...) não sobra, nos artigos posteriores, absolutamente nada que possa ser realmente apreciável como sendo uma caracterização do regime democrático. Pelo Ato Institucional, o que me parece (é que estamos) instituindo um processo equivalente a uma própria ditadura."
A votação seguiu. Outros cinco ministros fizeram ressalvas ao ato, mas o aprovaram. Todos os demais o apoiaram sem qualquer ressalva. Ao final, o Ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva deixou a sala e anunciou o ato à imprensa, que já os esperava do lado de fora.
"Quando as portas da sala se abriram, era noite. Duraria dez anos e dezoito dias", escreve o jornalista Elio Gaspari no livro A Ditadura Envergonhada.
As consequências
"A ideia de que a ditadura brasileira foi civil-militar é interessante porque mostra quanto de apoio havia na sociedade ao regime, mas quem mandava mesmo eram os militares", diz Martins Filho. Prova disso, opina, é o que aconteceu com Aleixo em seguida.
Nos meses seguintes, segundo sua biografia no CPDOC, Aleixo atuou pela reabertura do Congresso e pela formulação de uma nova constituição que retiraria os aspectos mais autoritários do regime. Tinha, segundo o texto, o apoio de Costa e Silva nessa empreitada. Mas durante as negociações, o presidente adoeceu, e a proposta naufragou. O texto do CPDOC conta que Aleixo ouviu dos militares que, por ter sido contrário à edição do AI-5, não teria força para vencer a resistência militar ao programa mais ameno proposto pela dupla.
Depois que Costa e Silva morreu, deveria ser Aleixo a assumir, mas uma junta militar o impediu e o substituiu na presidência. Aleixo então deixou a política e voltou a dar aulas.
Segundo o CPDOC, em 1970, ele se desvinculou do Arena. Nos anos seguintes, tentou, sem sucesso, registrar um novo partido, o Partido Democrático Republicano (PDR), que, na visão dele, acabaria com o bipartidarismo e defenderia a democracia. Essa era, na visão de Aleixo, a intenção do golpe - que ele chamava de "revolução" - de 1964.
Em 2011, uma lei retornou seu nome ao rol de presidentes da República. O autor do projeto, o deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MG), argumentou que Aleixo lutou pelo retorno da democracia. "Ele trabalhou pelo fim do período militar e pela restauração da normalidade institucional. Foi contra o AI-5 e a favor da reabertura do Congresso Nacional e da promulgação da Emenda 1 (Constituição de 1969)", disse Azeredo.
Um irmão de Aleixo, Alberto, morreu em 1975 em decorrência da tortura, prática que marcou o período após o AI-5. Segundo o livro Farol alto sobre as diretas (1969-1984), do jornalista Paulo Markun, Alberto trabalhava desde 1966 na produção e distribuição do jornal Voz Operária.
Em 1975, o governo militar estourou a sua e outra gráfica, em São Paulo, e prendeu pessoas que trabalhavam nelas, entre elas, Alberto, então com 72 anos.
Em março daria entrada no Hospital Souza Aguiar, no Rio, "magro, desidratado, sem exonerar o intestino há quatro dias, com sangramento hemorroidário". Morreria meses depois.
Sua história só foi revelada em 1995, quando o Grupo Tortura Nunca Mais-RJ descobriu, no Arquivo Público do Rio de Janeiro, dados sobre mais duas pessoas desaparecidas: Alberto e o escultor Vítor Carlos Ramos, desaparecido desde 1974 quando tinha 26 anos.
Pedro Aleixo já havia morrido, no dia 3 de março, quando seu irmão faleceu. Não se sabe que tipo de contato ou relação os dois tinham. A filha de Pedro, Heloisa, hoje com 92 anos, afirma que nunca chegou a conhecer o tio.
Heloisa diz que, depois que Aleixo deixou o governo, em 1969, não falou mais sobre política com ela. "Ele acreditava realmente que sua presença entre os militares seria moderadora. Mas acho que não se arrependeu. Se arrependeria se tivesse agido contra seus princípios, mas foi coerente", diz ela.
Segundo Napolitano, Aleixo faz parte de um grupo de liberais que seguiram apoiando o governo militar, mas defendendo uma reforma constitucional.
"Outros liberais, mais doutrinários e fiéis à tradição das liberdades civis e individuais, se afastaram ideologicamente do regime militar, mas não chegaram a romper completamente com os militares, pois, grosso modo, apoiavam a luta contra a guerrilha de esquerda (que atuava no início dos anos 1970) e a política econômica do regime durante o 'Milagre' (1968-1973)", diz ele.
"Acredito que o rompimento liberal mais efetivo com a ditadura ocorrerá somente a partir de 1974, e se dará por ondas sucessivas. Naquele contexto, início do governo Geisel, a política econômica centralizadora e estatizante desagradava parte do empresariado e a guerrilha já estava derrotada, não havendo justificativa para a suspensão dos direitos civis e a manutenção do AI-5. Além disso, a censura à imprensa criou um cisma incontornável com muitas vozes liberais."
Pesquisadores avaliam que a história de Aleixo traz reflexões válidas para o momento. "A trajetória contraditória deste 'liberalismo' que não hesita em apoiar golpes de Estado, soluções autoritárias contra adversários políticos e violência de Estado no controle social deveria ser objeto de reflexão das elites políticas brasileiras", diz.
"Uma parte destas elites até tem rejeitado soluções autoritárias e manobras jurídicas, como os Atos Institucionais do regime militar. Mas, por outro lado, o flerte e o apoio a políticos e grupos francamente autoritários, em nome do combate à esquerda, não foi plenamente assimilado. Muitos que se dizem liberais, no Brasil, ainda têm medo da democracia plena, e continuam alimentando as cobras no quintal que futuramente irão picá-los."
Para Martins Filho, "uma lição que pode ficar, e acho que ela de certa forma foi aprendida pela sociedade, é que remover os direitos constitucionais baseado em alguma ameaça imaginária ou real é uma situação que pode levar a um caminho sem retorno porque uma vez que você suspende essas garantia você pode demorar muito tempo até conseguir voltar à democracia. O risco seria de novo entrar num túnel ditatorial", diz o pesquisador.
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