Na Índia, Bolsonaro diz que, no Brasil, imigrantes têm 'mais direito que nós'
Ao comentar em Nova Déli a deportação de pelo menos 70 brasileiros que viviam ilegalmente nos EUA, ordenada nesta semana por Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro acabou tocando em um dos temas mais espinhosos da agenda do primeiro ministro Narendra Modi, anfitrião da visita oficial do brasileiro à Índia.
Modi é o assunto de capa da última edição da revista britânica The Economist, que já estampou Bolsonaro na capa sob a chamada "a mais nova ameaça à América Latina" e agora traz Modi junto à manchete "Índia intolerante: como Modi ameaça a maior democracia do mundo".
A revista, junto a veículos prestigiados como os jornais Financial Times e New York Times, questiona uma série de decisões do líder nacionalista hindu com impactos negativos sobre minorias no país. Entre as críticas estão mudanças em políticas migratórias, consideradas discriminatórias aos quase 200 milhões de muçulmanos no país.
Após afirmar que respeitava a decisão soberana de Trump de expulsar os brasileiros ilegais, Bolsonaro resolveu falar sobre a Lei de Migração brasileira, sancionada enquanto o presidente ainda era deputado federal, em maio de 2017.
"A nossa lei de migração é uma vergonha, fui o único a votar contra e fui muito criticado pela imprensa. Eles chegam no Brasil com mais direito do que nós. Isso não pode acontecer, porque devemos preservar o nosso país. Se abrir as portas como está previsto na lei de migração, o pais pode receber um fluxo de pessoas muito grande e com muitos direitos", disse o brasileiro.
A fala reforça o alinhamento de Bolsonaro a líderes conhecidos por posições antimigração como Trump, o presidente húngaro Viktor Orban e o político italiano Matteo Salvini.
O que acontece na Índia?
Uma emenda à Lei de Cidadania Indiana, norma implementada há 64 anos e que impede imigrantes ilegais de se tornarem cidadãos indianos, gerou uma onda de protestos violentos que deixaram dezenas de pessoas presas e feridas, além de seis mortas até o fim do ano passado.
Na Índia, imigrantes ilegais são aqueles que entram no país sem passaporte ou visto válidos, ou permanecem ali além do tempo permitido. Caso sejam identificadas, essas pessoas podem ser deportadas ou presas.
Com a mudança na legislação, passaram a poder solicitar cidadania quem vive na Índia ou trabalha para o governo há pelo menos 11 anos.
Mas o texto permite que membros de seis minorias religiosas do Paquistão, Afeganistão ou Bangladesh - hindu, sikh, budista, jain, parsi e cristã - solicitem cidadania caso estejam ali há somente seis anos.
A não inclusão dos muçulmanos foi um dos gatilhos das críticas e dos protestos violentos.
Modi, do Partido Nacionalista Hindu Bharatiya Janata (BJP), disse que a nova lei é "para aqueles que enfrentam anos de perseguição lá fora e não têm para onde ir, exceto a Índia".
Mas os críticos do mandatário dizem que a lei é excludente, faz parte de uma agenda para marginalizar muçulmanos e viola os princípios seculares consagrados na Constituição. Para eles, a fé não pode ser transformada em critério para cidadania.
Hinduísmo ortodoxo
A principal bandeira do BJP é o hipernacionalismo pautado pela "hindutva" - uma ideologia politica que defende que a Índia pertenceria aos hindus e que suas crenças deveriam se sobrepor às de cristãos ou muçulmanos (que também ocupam o território em menor escala há séculos).
Na avaliação de analistas como Iam Bremmer, editor-chefe da revista Time e presidente do Eurasia Group, a prioridade dada por Modi aos hindus tem efeito "trágico" para milhões de muçulmanos e para a democracia indiana, historicamente composta por um caldeirão étnico e religioso.
A Constituição indiana proíbe a discriminação religiosa contra seus cidadãos e garante a todas as pessoas igualdade perante a lei. Mas, como Bolsonaro, Modi se elegeu graças a uma base eleitoral e parlamentar fortemente ligada à religiosidade - no Brasil, representada pelos evangélicos, na Índia, pelos hindus.
"Bolsonaro e Modi têm em comum a postura de contrapor e criticar minorias a partir da voz e dos anseios da maioria", disse à BBC News Brasil o cientista politico Maurício Santoro, professor do departamento de relações internacionais da UERJ, sobre as características comuns aos dois líderes.
"O que Modi está fazendo em termos de cidadania é mais radical em termos de autoritarismo. Hoje, na Índia, há uma preocupação muito grande sobre o lugar das minorias religiosas no projeto nacionalista hindu", avalia.
À reportagem, a professora Karin Vasquez, pesquisadora do Centro de Estudos dos Brics da Universidade Fudan, em Xangai, lembrou do histórico brasileiro de migração.
"O Brasil sempre teve uma tradição de receber imigrantes. E os imigrantes, como sabemos, não só no Brasil, como nos EUA e em vários países, tiveram papel importantíssimo na construção da nossa nação, da economia, da nossa política. No Brasil, sempre tivemos tradição de tolerância", disse.
A lei de migração criticada por Bolsonaro inovou ao evitar deportações imediatas em fronteiras, criar visto humanitário para afetados por desastres ambientais e conflitos armados, facilitar a regularização de estrangeiros e permitir que eles tenham os mesmos direitos trabalhistas dos brasileiros.
Para os críticos, especialmente os membros da chamada "Bancada da bala", a medida reduz o controle nas fronteiras e facilita a entrada de criminosos ou produtos ilegais.
O que houve com os brasileiros nos EUA?
Na noite de sexta-feira, o segundo voo em menos de três meses vindo do Texas, no sul dos EUA, trouxe uma leva de brasileiros deportados para Belo Horizonte. Os imigrantes ilegais haviam sido capturados tentando atravessar a fronteira com o México, sem apresentar documentos.
"Em qualquer país, as leis têm que ser respeitadas. Em qualquer país do mundo onde pessoas estão de forma clandestina, é direito do Chefe de Estado, usando a lei, devolver essas pessoas. Lamento que os brasileiros foram buscar novas oportunidades lá fora e voltam deportados. Lamento, mas tem que respeitar a soberania de outros países", disse Bolsonaro neste sábado.
Na véspera, o governo Trump pediu ao governo brasileiro para fretar mais aviões para trazer imigrantes deportados.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.