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A decisão do Ministério da Cidadania que põe em risco a assistência social nas cidades brasileiras

O corte compromete funcionamento de centros e ocorre em momento de enxugamento do Bolsa Família - Jefferson Rudy/Agência Senado
O corte compromete funcionamento de centros e ocorre em momento de enxugamento do Bolsa Família Imagem: Jefferson Rudy/Agência Senado

André Shalders

Em Brasília

11/03/2020 07h13

Portaria do fim do ano passado reduziu em até 40% repasses da União para municípios; corte compromete funcionamento de centros e ocorre em momento de enxugamento do Bolsa Família.

Uma portaria do Ministério da Cidadania lançada no fim de 2019 resultou em cortes nas verbas federais repassadas para os serviços de assistência social no país. Segundo gestores dos municípios, a decisão de Brasília põe em risco a continuidade do atendimento, especialmente em localidades menores e com menos recursos - as remessas foram até 40% menores que as anteriores.

A portaria nº 2362 foi publicada no Diário Oficial em 23 de dezembro do ano passado - um dia antes da véspera de Natal. Mas os efeitos da medida só foram sentidos no começo deste mês. O impacto variou em cada município, mas oscilou de 30 a 40%.

O corte ocorre num momento de enxugamento do principal programa social do país, o Bolsa Família.

Em 2019, cerca de 500 mil famílias estavam na fila de espera do programa, segundo dados obtidos pelo jornal O Globo por meio da Lei de Acesso à Informação. O Ministério da Cidadania, no entanto, não informa o número mês a mês.

Um dos serviços atingidos pela portaria nº 2362 são os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS). Estes são responsáveis justamente por encaminhar as pessoas que têm direito a benefícios como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC).

No Brasil, o financiamento da assistência social é dividido entre a União, os Estados e os municípios - e o dinheiro do governo federal chega aos gestores dos municípios por meio do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS).

Os recursos são usados pelos municípios para manter os vários tipos de serviços que compõem o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), e que vão desde albergues para a população de rua até equipes de assistentes sociais que acompanham famílias vulneráveis, passando pelos CRAS e Centros de Referência Especializados (CREAS).

Utilizando a ferramenta Siga Brasil, do Senado Federal, a reportagem da BBC News Brasil constatou que o Ministério da Cidadania dispunha de R$ 1,8 bilhão para transferir aos Estados e municípios por meio do FNAS no Orçamento deste ano - o valor é cerca de 35% menor que os R$ 2,8 bilhões empenhados com esta finalidade ao longo de 2019.

O Siga Brasil reproduz dados do Sistema Integrado de Administração Financeira (SIAFI), o sistema que gerencia os pagamentos do governo.

Procurado pela reportagem, o Ministério da Cidadania não contradisse os dados ou apresentou números diferentes - a reportagem perguntou especificamente sobre o valor disponível para este tipo de transferência.

A pasta disse apenas que as parcelas estão sendo pagas aos municípios e Estados "de acordo com a disponibilidade orçamentária e financeira destinada" no Orçamento de 2020.

A portaria, diz o ministério, tem por objetivo adequar os repasses da União para a assistência social ao que determinam a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA).

O texto, em si, "não reduz nem aumenta os recursos disponíveis para a Assistência Social", argumenta a pasta.

A portaria busca garantir que a contribuição da União "ocorra em conformidade com as legislações de responsabilidade fiscal e orçamentária vigentes, respeitando também as orientações dos órgãos de controle", diz a nota.

'Não sei como vou manter o serviço'

José Arimatéia de Oliveira é o secretário municipal de assistência social do município de Aratuba (CE), uma pequena cidade de 13 mil habitantes localizada a duas horas de viagem de Fortaleza.

O município é considerado de pequeno porte, dentro do SUAS. A União ajuda a cidade a bancar serviços básicos, com aportes de cerca de R$ 19 mil por parcela, segundo o gestor.

No começo de março, no entanto, o novo pagamento foi de apenas R$ 11 mil, diz ele.

"Principalmente nós, dos municípios de pequeno porte, vamos ser impactados diretamente. Esse era um recurso que ajudava a pagar as equipes do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF); o material de expediente e os gêneros alimentícios que eram dados às famílias que participam (do programa)", diz o secretário.

No município de Nhamundá (AM), a parcela paga no começo de março veio com um valor 35% menor, segundo a secretária municipal da pasta, Eldilene Alves da Silva.

O município costumava receber cerca de R$ 80 mil por parcela, diz ela, mas o último pagamento foi de apenas R$ 56 mil.

Localizado ao longo da fronteira do Amazonas com o Pará, Nhamundá tem uma área de mais de 14 mil quilômetros quadrados. É quase 10 vezes a área do município de São Paulo, embora a população seja de apenas 21 mil habitantes.

Estes números significam que as equipes de assistentes sociais precisam se deslocar por longas distâncias, diz Eldilene.

"No Norte, a gente tem uma logística muito custosa, muito específica da região, onde o acesso às comunidades muitas vezes é fluvial. A gente acaba tendo um gasto com combustível muito alto. Para acompanhar os beneficiários do Bolsa Família, por exemplo, é preciso deslocar equipes, e isso encarece a nossa atividade", diz ela.

A gestora diz ainda que Nhamundá e outros municípios da região enfrentam uma dificuldade adicional nos últimos anos: a chegada de imigrantes venezuelanos, que fogem da grave crise econômica e social em seu país de origem. O primeiro atendimento aos imigrantes é feito nos CRAS, diz ela - um dos serviços atingidos pelo corte.

'Quebra do pacto federativo', diz presidente de conselho

O fato do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) iniciar o ano com um orçamento menor que o necessário não chega a ser uma novidade - as verbas poderiam ser complementadas mais tarde, com a liberação de novos créditos aprovados pelo Congresso.

A diferença é que, graças à portaria de dezembro de 2019, o Ministério da Cidadania pode pagar parcelas menores que o acordado no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), diz a gestora Andréia Lauande. Ela preside o Congemas, um grupo que congrega secretários municipais de assistência social de todo o país.

No fim de 2019, o CNAS aprovou um orçamento de cerca de R$ 2,7 bilhões para 2020. Apesar disso, a Lei Orçamentária deste ano destinava apenas R$ 1,3 bilhão para estas transferências, inicialmente.

"O que significa a 'equalização de recursos' mencionada pela portaria? Quer dizer que, se o governo só destinou R$ 1,3 bilhão (para o Fundo Nacional de Assistência Social), ele vai começar a pagar só referente ao que ele tem. Distribui os R$ 1,3 bi ao longo de um ano e começa a pagar as parcelas, 40% a menos", explica Lauande.

"Só que aí você está descumprindo o pacto federativo; está descumprindo os termos de aceite com os quais os municípios se comprometeram ao começar a oferecer o serviço. O município concordou em oferecer aquele serviço por um valor determinado", diz Lauande.

"O que nós vamos fazer? Fechar as unidades? Demitir os servidores? O impacto está sendo enorme na assistência social do Brasil", diz.

"Ontem (dia 2 de março, última segunda-feira) fomos surpreendidos (com as parcelas pagas a menor). Até então, a gente ainda acreditava que o governo fosse fazer o pagamento integral e depois tentar conseguir mais recursos", diz ela.

Lauande, que é secretária de assistência social da prefeitura de São Luís (MA), dá um exemplo do impacto em sua cidade. O município mantém um abrigo para pessoas com deficiência, chamado Residência Inclusiva. O governo federal repassava cerca de R$ 10 mil mensais para ajudar a bancar o serviço - mas a última parcela foi de pouco mais de R$ 5 mil.

"Nós estamos falando de serviços que já estão sendo executados, que já estão em funcionamento; e isso impacta diretamente a vida das pessoas. Vou abrir os abrigos e dizer às pessoas: 'vão para fora, aguardem lá a recomposição do orçamento'?", argumenta.

Na última terça-feira, o Congemas e o Fórum Nacional de Secretários de Estado da Assistência Social (Fonseas) lançaram uma nota conjunta na qual cobram a revogação da portaria e a recomposição do orçamento do Fundo.

O texto diz ainda que os cortes do governo na área foram além do que exige a emenda constitucional do Teto de Gastos - uma mudança aprovada em 2016 e que proibiu o governo de aumentar seus gastos além da inflação.

"Os recursos estão sendo retirados dos demais entes federados e da população, em flagrante descumprimento do pacto federativo. Neste sentido, os gestores têm buscado esforços contínuos pela, ao menos, manutenção da atual rede de serviços na Assistência Social", diz um trecho da nota.

Na resposta enviada à reportagem, o Ministério da Cidadania disse que a portaria não "ignora" ou "desrespeita" as decisões de instâncias como o Conselho Nacional de Assistência Social - o texto apenas busca adequar os repasses à Lei Orçamentária, diz a pasta.

Como funciona o sistema

Patrícia Pinheiro é pesquisadora e professora do departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UnB).

Na assistência social brasileira, o atendimento começa pelos CRAS. As equipes que atuam em cada caso costumam ser formadas por um assistente social e um psicólogo, diz ela.

"A porta de entrada são os CRAS, que são os Centros de Referência de Assistência Social. Então, ali é feito o atendimento de baixa complexidade. Ali você identifica qual é a demanda, se é moradia, se teve situação de violência na família", diz.

"Se for um caso mais complexo, a pessoa vai para o CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social). Um caso de violência contra criança ou adolescente, por exemplo, é encaminhado para lá, que então aciona o Conselho Tutelar e toma as outras providências", explica ela.

"Agora, nos casos de vulnerabilidade, de extrema pobreza, quando estão na iminência de entrar em situação de rua, estas pessoas têm de ser cadastradas no CADÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais, do governo federal), para poder acessar os benefícios (como o BPC e o Bolsa Família)", diz a professora.

Embora a política do Sistema Único de Assistência Social tenha sido bem desenhada, diz Pinheiro, há relatos de pessoas que ficam sem atendimento e sem receber os benefícios a que têm direito por causa da insuficiência de trabalhadores para realizar os atendimentos.

"Tenho ex-alunas minhas que são assistentes sociais e estão hoje na gestão destes CRAS e CREAS, com fila de espera de centenas de famílias para os benefícios. São pessoas dentro dos critérios (de programas como o Bolsa Família e o BPC), em situação de risco, e que não são atendidas porque os centros não têm equipe para atender à demanda", diz ela.