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1,5 milhão de crianças sem creches e 11 milhões de analfabetos: os desafios urgentes para o Brasil 'passar de ano' na educação

Os desafios do Brasil na educação - Rodolfo Santos/Getty Images/iStockphoto
Os desafios do Brasil na educação Imagem: Rodolfo Santos/Getty Images/iStockphoto

Paula Adamo Idoeta

Da BBC News Brasil, em São Paulo

09/08/2020 06h26

Alguns dias antes da posse do novo ministro da Educação, Milton Ribeiro, em 16 de julho, um relatório oficial voltou a jogar luz sobre os desafios das escolas brasileiras para atingir patamares adequados de inclusão e de ensino de qualidade, desde um significativo déficit de vagas na educação infantil até a dificuldade em manter os adolescentes na escola e com alto nível de aprendizagem.

Esses desafios constam do Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado em lei em 2014 pelo Congresso, que estabelece um conjunto de 20 metas e submetas para o ensino no Brasil, a serem cumpridas entre 2015 e 2024. Essas metas abrangem, por exemplo, a universalização do ensino, a erradicação do analfabetismo e valorização da carreira de professores.

As metas são monitoradas por 57 indicadores. Deles, apenas 7 (ou 13,4%) foram cumpridos até agora, segundo o relatório do governo. Em 41 indicadores (ou 73% do total), passou-se da metade do patamar previsto pela meta (veja mais detalhes abaixo), segundo um relatório de monitoramento divulgado pelo Inesp (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira), autarquia ligada ao Ministério da Educação, no início de julho.

Avaliação

Segundo o Inep, o "nível médio de alcance das metas está em 76,22%".

"Reconhecer esses números é rejeitar a compreensão simplista que afirma que 'tudo vai mal na educação brasileira'; é reconhecer o esforço coletivo dos profissionais da educação que, mesmo que enfrentem adversidades, apostam na escola como o local da esperança e da transformação nacional", diz o relatório do Inep, destacando, porém, que "os resultados estão bastante aquém daqueles que desejamos para a educação nacional".

Para a Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, entidade que também monitora em relatório o avanço do PNE, os números até agora apontam para um "descumprimento quase total da lei".

"No ritmo que se tem avançado, cerca de 85% dos dispositivos (indicadores) das metas do PNE não serão cumpridos até o prazo de 2024", critica a organização em nota, em junho, acrescentando que, em alguns pontos, há estagnação ou mesmo retrocesso.

Governo Bolsonaro

Embora o ritmo lento venha desde antes do governo atual e alguns problemas sejam de longa data, críticos afirmam que, sob Jair Bolsonaro (sem partido) — que tem em Milton Ribeiro seu quarto ministro da Educação em um ano e meio de mandato —, o ministério vive um cenário de paralisia, com poucos projetos voltados aos problemas-chave do ensino e com baixa capacidade de execução.

Em entrevista coletiva sobre o relatório, o presidente do Inep, Alexandre Lopes, disse que o cumprimento das metas do PNE exigirá também o esforço de Estados, municípios e universidades, e citou a crise financeira do país. "O MEC (Ministério da Educação) se enfraquece um pouco diante da questão fiscal que o Brasil vive", afirmou.

A BBC News Brasil destaca, a seguir, alguns dos principais gargalos apontados pelo relatório do governo, que desafiam as políticas públicas do país:

Mais crianças nas creches e pré-escolas

A fila de espera por creches nas cidades do país ilustram um desafio nacional: ainda é preciso incluir 1,5 milhão de crianças de zero a três anos em creches até 2024. É o que prevê a Meta 1 do Plano Nacional de Educação.

Em 2018, segundo o relatório do Inep, o Brasil conseguiu ofertar vagas para 35,7% das crianças nessa faixa etária (ou 3,8 milhões), e o objetivo é chegar até 50%.

Esse acesso também é bastante desigual entre as crianças mais vulneráveis e as que vivem em famílias com boas condições financeiras: "A diferença no acesso (a creches) entre as crianças 20% mais ricas e as 20% mais pobres é de 25 pontos percentuais", explica à BBC News Brasil Anna Helena Altenfelder, diretora-executiva do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).

A meta 1 do PNE também previa que todas as crianças de 4 e 5 anos estivessem matriculadas na pré-escola até 2016, o que não aconteceu até hoje. Ainda faltam vagas para estimadas 330 mil crianças, segundo dados de 2018.

"Também não podemos perder de vista a necessidade de garantir a qualidade do ensino para todas as crianças da educação infantil", aponta o Observatório do PNE, feito pelo movimento Todos Pela Educação. Alguns especialistas apontam que, para crianças pequenas, uma creche de má qualidade (sem estímulos e cuidados adequados) pode ser ainda pior para o desenvolvimento social e cerebral do que não estar na creche.

Em contrapartida, oferecer mais vagas em instituições públicas de qualidade pode ajudar as crianças pequenas a desenvolver habilidades e funções cognitivas úteis ao longo de toda a vida.

São, também, consideradas um passo importante para permitir o acesso de mães ao mercado de trabalho.

A persistência do analfabetismo (absoluto e funcional)

O Brasil conseguiu praticamente alcançar, em 2019, uma meta que estava prevista para quatro anos antes: alfabetizar 93,5% de sua população com mais de 15 anos. Mas, na prática, ainda faltam 11 milhões de brasileiros a serem alfabetizados até 2024 — um contingente equivalente à toda a população do estado do Paraná.

E se o analfabetismo absoluto persiste, o analfabetismo funcional é ainda mais abrangente.

Ser analfabeto funcional significa ser capaz de ler e escrever, mas ter dificuldade em entender e interpretar textos, em identificar ironias ou sutilezas nesses textos e em fazer operações matemáticas simples em situações cotidianas.

A Meta 9 do PNE é de reduzir o índice de analfabetismo funcional pela metade nos próximos quatro anos. Como base, o Inep usa os dados de uma pesquisa do IBGE, que apontava 18,5% de analfabetismo funcional na população em 2012. O objetivo, portanto, é baixar esse índice para 9,2% até 2024.

Mas alguns outros indicadores apontam que esse problema pode ser ainda mais amplo: segundo o Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf) de 2018, praticamente 30% da população entre 15 e 64 anos tinha essa dificuldade em leitura e compreensão.

No que diz respeito às crianças pequenas, a meta é garantir até 2024 que todas estejam alfabetizadas, no máximo, até o final da terceiro ano do ensino fundamental, por volta dos 8 anos de idade.

Os dados mais recentes da Avaliação Nacional de Alfabetização, de 2016, apontam que apenas 45,3% das crianças nessa etapa tinham aprendizagem adequada em leitura, 66,1% em escrita e 45,5% em matemática.

O Ministério da Educação, sob o governo Bolsonaro, lançou no início do ano o programa Tempo de Aprender, que prevê ações de incentivo à alfabetização para as redes estaduais e municipais que aderirem. O MEC afirma que 3.231 municípios e Estados aderiram ao programa até maio.

Mas Altenfelder, do Cenpec, afirma que o programa não pode ser considerado uma política pública. "É um programa com algumas diretrizes feito em total falta de diálogo com os municípios e com a produção acadêmica nacional [sobre os processos de alfabetização]", diz.

Muitos jovens fora da escola ou atrasados no ensino

A cada 100 crianças brasileiras que entram no ensino fundamental, apenas 65 concluem os estudos, explica Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco. "Os que terminam já são sobreviventes", diz ele.

Ou seja, ao longo dos 12 anos da educação básica, muitos alunos ficam pelo caminho — porque não conseguem acompanhar as aulas, perdem o interesse na escola ou precisam trabalhar, por exemplo.

O custo anual da evasão escolar é de R$ 214 bilhões, ou 3% do PIB (Produto Interno Bruto), por conta do impacto do abandono nas possibilidades de emprego, renda e retorno para a sociedade das pessoas que não concluem a educação básica, segundo cálculos do economista Ricardo Paes de Barros.

Especialistas temem que esse quadro de evasão escolar se agrave com a atual pandemia.

Algumas metas do PNE se referem justamente a manter os jovens por mais tempo na escola e para concluir as etapas da educação na idade certa, por exemplo:

  • Garantir que, até 2024, 95% dos alunos concluam o ensino fundamental até os 16 anos (por enquanto, esse índice é de 75,8%, segundo dados de 2018);
  • Matricular todos os jovens de 15 a 17 anos na escola até 2016 (meta que já foi descumprida, uma vez que, segundo os dados mais recentes, 8,5% desses jovens ainda estão fora da escola);
  • Elevar a escolaridade média da população de 18 a 29 anos, para que todos tenham completado 12 anos de educação formal até 2024. A meta prevê também reduzir as diferenças entre população rural e urbana, entre negros e não negros, e aumentar o tempo de escolaridade no nordeste do Brasil (que tem os menores índices do país). Até 2015, porém, segundo o Observatório do PNE, a escolaridade média da população do campo era de 8,3 anos; a da população do Nordeste, de 9,3 anos e a dos negros, 9,5 anos (contra 10,8 anos da média da população branca);
  • Garantir que, até os próximos quatro anos, 85% dos jovens estejam no ensino médio, ou seja, nas séries corretas para a sua idade. Ainda estamos longe disso: apenas 68,7% dos adolescentes dessa idade cursavam o ensino médio até 2018. O desafio, segundo o Observatório do PNE, é "tornar o ensino médio mais atrativo, com a diversificação do currículo, [...] introduzir uma melhor qualidade e equidade e reduzir as taxas de evasão na etapa".

Também é um desafio colocar em prática a Base Nacional Comum Curricular do ensino médio, um conjunto de diretrizes para essa etapa que ainda não se traduziu em ações práticas nas escolas. Nesta semana, São Paulo anunciou ser o primeiro estado ter formulado um currículo para o ensino médio tendo a base como referência, para começar a ser implementado em 2021.

No geral, diz o relatório do Inep, "as questões mais preocupantes em relação à educação brasileira continuam sendo o baixo nível de aprendizado dos alunos, as grandes desigualdades e a trajetória escolar irregular, que ainda atinge porção significativa dos estudantes das escolas públicas brasileiras".

Mais dinheiro para a educação pública

A meta final do PNE determinava aumentar o investimento público na educação, para alcançar 7% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro até 2019 e 10% até 2024.

"No entanto, os resultados observados de relativa estagnação dos gastos em torno de 5% e 5,5% do PIB, com indicativo de pequena queda, apontam grande desafio para o atingimento das metas intermediária e final", diz o relatório do governo.

Neste mês, a Câmara dos Deputados aprovou a proposta de emenda constitucional do novo Fundeb, fundo que financia a educação básica. O texto aprovado prevê mudanças nos aportes públicos à educação que, segundo especialistas, podem aumentar o montante investido nas escolas e garantir que mais municípios pobres recebam recursos.

A proposta, agora, tramita no Senado.

O Plano Nacional de Educação tem muitas outras metas. Por exemplo, aumentar a oferta de escolas em tempo integral; melhorar a formação e equiparar o salário médio de professores da rede pública aos profissionais com o mesmo nível de escolaridade (em 2015, os docentes ganhavam apenas 52,5% do salário médio das pessoas com escolaridade semelhante); triplicar as matrículas na educação profissional e aumentá-las no ensino superior; entre outras.

Muitas delas ainda permanecem distantes de seu cumprimento, e muitos especialistas da educação pedem mais protagonismo do MEC no esforço para alcançá-las.

"Neste ano e meio [de governo Bolsonaro], infelizmente, não vimos nada [em iniciativas] de implementação ou acompanhamento das metas do PNE", diz Altenfender, do Cenpec.

Onde o Brasil avançou

Alguns pontos em que o Brasil avançou, em contrapartida, são o aumento da nota média das crianças da 1ª à 5ª série (a nota média de 5,7, almejada para 2019, foi ultrapassada ainda em 2017), embora preocupe o fato de que, depois da quinta série, o desempenho dos alunos comece a cair.

No ensino superior, o Brasil bateu a meta de ter mais de 75% dos professores de educação superior com cursos de mestrado ou doutorado e também já tem, desde 2017, mais de 60 mil pessoas com títulos de mestrado (outra meta do PNE).

Outro avanço é que 98% das crianças brasileiras de 6 a 14 anos estão matriculadas no ensino fundamental — perto de universalizar o acesso, o que é esperado para 2024. O problema é que esses 2% restantes fora da escola "são, na maioria, famílias mais pobres, negras, indígenas e com deficiência", exigindo políticas públicas específicas para garantir que elas de fato consigam estudar, diz o Observatório do PNE.

Para Anna Helena Altenfelder, apesar dos enormes desafios restantes, é um erro achar o Plano Nacional de Educação "inexequível".

"O plano não é uma utopia", diz ela. "Ele tem uma força grande pela forma como foi construído [aprovado pelo Legislativo], de modo participativo, e por ser um parâmetro de referência para secretários de Educação estaduais e municipais. Ele é a síntese das aspirações do Brasil para a educação."