Topo

Esse conteúdo é antigo

O que muda nos EUA com posse da conservadora Amy Barrett na Suprema Corte

Grupos antiaborto manifestaram-se nos últimos dias em frente à Suprema Corte para defender a nomeação de Amy Coney Barrett - Getty Images
Grupos antiaborto manifestaram-se nos últimos dias em frente à Suprema Corte para defender a nomeação de Amy Coney Barrett Imagem: Getty Images

Ángel Bermúdez (@angelbermudez) - BBC News Mundo

28/10/2020 07h27

Uma situação assim não é vista há mais de 80 anos, e suas consequências podem marcar os Estados Unidos por várias décadas.

A confirmação de Amy Coney Barrett na segunda-feira (26/10) pelo Senado como juíza da Suprema Corte americana, por 52 votos a 48, representa a consolidação de uma clara maioria ideológica na corte. A partir de agora, haverá seis magistrados de tendência conservadora e três de tendência progressista.

Ainda que não seja inédito, um desequilíbrio como este não ocorre desde os anos de 1930, quando durante o primeiro governo de Franklin Delano Roosevelt havia três juízes progressistas e quatro magistrados conservadores que sempre votavam em bloco, conhecidos como "os quatro cavaleiros (do Apocalipse)", além de dois juízes que tendiam a votar em apoio aos conservadores.

Os EUA estavam então mergulhados na crise gerada pela Grande Depressão, e as decisões da Suprema Corte dificultaram a aplicação do chamado New Deal, programa com o qual Roosevelt prometia proteger a população mais atingida.

"Entre 1933 e 1937, aquele tribunal rejeitou sistematicamente as leis populares do New Deal que o presidente considerou necessárias para tirar o país da depressão", disse Russell Wheeler, pesquisador sênior em estudos governamentais da Brookings Institution, sediada em Washington.

Da mesma forma, a nomeação de Barrett como magistrada Suprema Corte ocorre quando os EUA enfrentam diferentes crises do ponto de vista sanitário, econômico e político.

Por se tratarem de nomeações vitalícias, muitos analistas avaliam que essa mudança na composição da mais alta corte tenha um impacto que pode durar uma geração.

Amy Coney Barrett é uma católica devota que se opõe ao aborto - Getty Images - Getty Images
Amy Coney Barrett é uma católica devota que se opõe ao aborto
Imagem: Getty Images

Suas consequências podem se refletir em uma infinidade de aspectos, desde o funcionamento do próprio tribunal à legislação sobre questões delicadas do ponto de vista social e político, como o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou a legislação em torno do sistema de saúde (conhecida como Obamacare), sobre a qual o tribunal superior deve decidir em breve.

Além disso, há também a possibilidade de o desfecho da eleição presidencial americana deste ano ir parar na corte, em razão das disputas judiciais em torno da validade dos votos por correio, por exemplo.

A BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) trata abaixo de cinco mudanças que podem ocorrer nos EUA com a consolidação de uma confortável maioria conservadora na Suprema Corte.

1. Proibição do aborto

Legalizado desde 1973, em uma decisão histórica conhecida como Roe vs. Wade, o aborto nos EUA está novamente sob análise pela mais alta corte.

"Acho muito provável que a Corte enfraqueça o direito ao aborto e, até mesmo, acho que há uma boa chance de que o proíba completamente", disse Michael Dorf, professor da Universidade Cornell à BBC News Mundo.

O especialista lembra que, no passado, alguns magistrados conservadores deram sinais sobre dar esse passo controverso, por isso não descarta que a mudança ocorra.

Mas Wheller, da Brookings Institution, acredita que, embora o aborto possa ser banido, a Suprema Corte provavelmente optará por dar luz verde para a criação de leis estatais que indiretamente limitem as possibilidades de uma mulher de abortar, como ocorreu em algumas partes do país, onde as condições exigidas para o funcionamento das clínicas de aborto acabam por restringi-las bastante.

Durante as audiências no Senado para sua confirmação no posto, Barrett recusou-se a dar sua opinião sobre a questão do aborto, mas esclareceu que não considera a jurisprudência sobre o assunto como um "superprecedente", termo com o qual se refere às sentenças que são tão bem estabelecidas que nenhum ator político mostra mais intenções sérias de revertê-las.

Barrett também confirmou que havia assinado dois manifestos públicos contra o aborto no passado, mas esclareceu que um deles foi quando, saindo da missa, encontrou uma mesa para as pessoas assinarem um comunicado "reafirmando seu compromisso com a posição do Igreja Católica sobre questões de vida".

Na segunda vez, ela o fez como professora de direito na Universidade de Notre Dame em um texto que reafirmou "o total apoio ao compromisso de nossa universidade com o direito à vida".

Durante as mesmas audiências, Barrett confirmou que nunca colocaria suas crenças pessoais acima da lei.

2. Casamento entre pessoas do mesmo gênero

Aprovado em 2015, após uma decisão que aboliu todas as leis estaduais que o proíbem, o casamento entre pessoas do mesmo gênero continua sendo uma questão controversa nos EUA.

"É improvável que a Suprema Corte reverta sua decisão de poucos alguns anos atrás", diz Wheeler, que adverte, no entanto, que a questão pode ser tratada por meio de outras normas ligadas ao tema.

Assim, por exemplo, ele acredita que pode haver decisões sobre questões como se um funcionário pode ser processado por se recusar a celebrar um casamento do mesmo sexo. Ou se alguém que presta serviços relacionados a este tipo de celebração, como confeiteiros ou floristas, pode fazer o mesmo.

"Com certeza haverá muitos processos judiciais sobre essas questões", prevê Wheeler.

Dorf também não acredita que o casamento homossexual será anulado pela Suprema Corte, mas afirma que recentemente dois magistrados manifestaram interesse em retomar o assunto.

3. Obamacare

Desde que se aprovou em 2010 a lei conhecida como Obamacare, o Partido Republicado tenta anulá-la.

Estima-se que mais de 20 milhões de pessoas hoje contem com um seguro-saúde nos EUA graças a essa norma.

Em 2016, Trump foi eleito com a promessa de que iria "derrubar e substituir" essa legislação, algo que não concretizou completamente (ele conseguiu esvaziar alguns pontos do Obamacare).

Em novembro, a Suprema Corte americana prevê analisar um apelo apresentado pelos procuradores-gerais de 18 Estados governados pelo Partido Republicano.

"Há uma questão de saber se haverá cinco votos que concordam com o tribunal de primeira instância ao considerar que a lei inteira é inconstitucional. Muitas pessoas acreditam que isso é improvável de acontecer porque seria uma leitura extrema da lei", diz Wheeler.

Dorf acredita que o atual processo contra a Obamacare é muito fraco do ponto de vista jurídico, e por isso não deve prosperar.

"De qualquer forma, é possível que o revoguem. Afinal, um tribunal de apelações aceitou os argumentos deles, não se pode descartar que cinco magistrados façam o mesmo", afirma.

4. Menos regulações, mais pena de morte

Dorf observa que a Suprema Corte antes da chegada de Barrett já era "favorável" o suficiente em relação ao setor empresarial e hostil às tentativas do governo de impor regras à atividade privada.

Agora estima-se que essas tendências devem se acentuar.

"Vamos ver uma tolerância menor para as tentativas regulatórias do governo", diz Dorf.

Ele também acredita que a Suprema Corte será mais conservadora em questões como pena de morte e que as liberdades religiosas serão revigoradas.

"Acho que veremos extrema deferência à religião", afirma.

5. Um tribunal enfraquecido?

A confirmação de Barrett gerou bastante discórdia porque foi realizada de forma unilateral poucas semanas antes das eleições presidenciais com apenas votos do Partido Republicano.

O processo foi questionado pelo Partido Democrata, que lembrou que em 2016 os republicanos bloquearam a confirmação do juiz Merrick Garland, indicado pelo então presidente Obama, sob o argumento de que era um ano eleitoral e por isso teriam que esperar até a eleição de um novo presidente.

Wheeler defende que a nomeação de Barrett, nessas circunstâncias, só contribuirá para intoxicar ainda mais o ambiente político nos EUA.

"Ela rompe com uma das normas da política americana segundo as quais, em certa medida, as nomeações no Judiciário devem ter apoio bipartidário e, em certa medida, deve refletir um consenso."

"Esse costumava ser o caso quando 60 votos (em 100) eram necessários no Senado para confirmar um magistrado e, na maior parte, os presidentes nomeavam pessoas com quem concordavam ideologicamente, mas que não eram extremistas."

Wheeler acredita que essa ofensiva dos republicanos terá um efeito de curto prazo ao mobilizar os eleitores democratas incomodados com o ocorrido, mas também terá consequências na Corte, que poderá ter sua imagem institucional prejudicada.

"Acho que isso vai reduzir a legitimidade do tribunal", diz.

Wheeler explica que, apesar de o Judiciário também ser independente dos caprichos da opinião pública, os tribunais precisam ser apoiados e respeitados pelos cidadãos.

Nesse sentido, além das condições polêmicas em que ocorreu a nomeação de Barrett, Wheeler enfatiza que ela é uma pessoa muito mais conservadora do que o cidadão comum.

"Agora que temos um país que parece inclinado a eleger um presidente localizado à esquerda do centro (Joe Biden, o candidato democrata, à frente nas pesquisas de opinião), os republicanos se apressaram em nomear uma magistrada bastante conservadora, cujas opiniões sobre questões difíceis como aborto ou controle de armas não coincidem com as de boa parte da sociedade."

"Se esses seis magistrados conservadores se tornarem um obstáculo no caminho das leis que a maioria dos cidadãos deseja ver, a legitimidade da Corte pode ser seriamente questionada", alerta.

E se a Suprema Corte não mudar muito?

A confirmação de uma supermaioria conservadora na Suprema Corte americana, entretanto, não significa que a instituição dará uma virada radical para a direita.

Nos últimos anos, quando o equilíbrio entre os magistrados era de cinco conservadores e quatro progressistas, ocorreram várias decisões consideradas progressistas que contaram com o voto de um ou dois magistrados conservadores.

"Já era uma Corte bastante conservadora, mas estava moderada pelo fato de que o presidente do tribunal, John Roberts (conservador) se preocupa mais do que ninguém com a instituições, e acredito que em algumas ocasiões isso o levou a se alinhar com os magistrados mais progressistas", afirma Michael Dorf.

Ele ressalta que, agora, sentenças mais progressistas demandariam o apoio de algum outro juiz de tendência conservadora. "Acredito que em alguns temas poderia ser Neil Gorsuch, e em outros, trataria-se de Brett Kavanaugh", diz Dorf, citando dois magistrados indicados por Trump.

Wheeler destaca que, recentemente, Roberts e Gorsuch votaram juntos com os progressistas em uma sentença que estabeleceu que um empregador não pode demitir uma empregada pelo fato de ela ser abertamente homossexual.

"A abordagem conservadora teria sido dizer que, quando o estatuto dos direitos civis, que proíbe a discriminação com base no sexo, foi aprovado, nenhum dos legisladores tinha tal situação em mente e que isso implicaria em estender a proteção para incluir homossexuais. No entanto, Gorsuch e Roberts concordaram com os progressistas", diz ele.

Outro elemento que pode afetar os rumos do novo tribunal é a ideia de que alguns dirigentes do Partido Democrata têm sugerido aumentar por lei o número de magistrados na Suprema Corte para contrabalançar as indicações feitas por republicanos que consideram inadequadas.

Segundo Wheeler, uma ideia semelhante ajudou o presidente Roosevelt a acabar com a obstrução judicial de suas iniciativas do New Deal.

"Quando Roosevelt propôs em 1937 expandir o tamanho do tribunal para ter juízes que fossem mais empáticos com o New Deal, dois dos juízes que costumavam ficar do lado dos conservadores mudaram de posição e começaram a aprovar leis que até então acreditava-se que eles não apoiariam", explica.

Na história judicial dos EUA, esse episódio é conhecido como "a mudança no tempo que salvou nove" ("the switch in time that saved nine") e foi interpretado como uma ação dos magistrados para proteger a integridade e a independência do tribunal, tornando desnecessária a ampliação para 15 magistrados proposta por Roosevelt.