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Rafael Nadal: Como disciplina com amor formou tenista que venceu 20 Grand Slams

By Jonathan Jurejko - BBC Sport

29/05/2021 09h45

De 'gato assustado' a 'touro furioso', a transformação de Rafael Nadal em um gigante tênis tem muito a ver com um homem em particular

Quando lançou a primeira bola de tênis para o sobrinho de três anos, Toni Nadal notou que havia algo diferente no garoto do outro lado da quadra.

Depois de atuar como jogador amador e competir em diversos campeonatos nacionais na Espanha, o treinador teve centenas de crianças sob sua batuta no Manacor Tennis Club, em sua ilha natal de Maiorca.

"Quando lancei a bola para o Rafael, ele foi em direção a ela. Não esperou que a bola chegasse", disse Toni à BBC Sport.

Ele explicou: "Normalmente, quando eu mandava uma bola para um garoto pequeno, ele ficava parado e esperava até a bola chegar. Mas meu sobrinho se moveu. Para mim, isso foi especial."

A avaliação estava certa. Rafael Nadal tinha um talento especial e, com a ajuda de Toni em sua formação como jogador e como pessoa, o tenista de 34 anos provou qualidades impressionantes.

Nenhum jogador na história ganhou mais títulos individuais masculinos do Grand Slam do que Nadal. O Grand Slam é formado pelos quatro torneios mais importantes do tênis mundial: Roland-Garros (Aberto da França), Wimbledon (Aberto da Inglaterra), US Open (Aberto dos EUA) e Australian Open (Aberto da Austrália).

O espanhol igualou o recorde de Roger Federer, que alcançou 20 grandes vitórias durante o French Open do ano passado, e agora tem a chance de ultrapassar a contagem do suíço.

A oportunidade se abrirá na próxima quinzena, durante o Aberto da França, em Roland Garros, onde uma vitória de Nadal costuma ser quase certa.

Como Nadal tantas vezes reconheceu, no entanto, ele talvez não tivesse alcançado o sucesso que disfruta hoje sem o homem conhecido em todo o mundo do tênis como "Tio Toni".

Há muitas lendas sobre a estratégia de "disciplina com amor" de Toni.

Sem ela, o jovem descrito pela irmã Maribel como "um gato assustado" talvez nunca tivesse se transformado no "touro furioso" que conhecemos nas quadras e em um dos atletas mais ferozmente competitivos de sua geração.

Fora as quadras vermelhas de saibro, seria difícil encontrar muitas semelhanças entre o Manacor Tennis Club e Roland Garros.

Manacor é uma vila típica de Maiorca. O clube de tênis, com quadras de saibro com vista para um restaurante e um terraço ensolarados, é semelhante a muitos na ilha mediterrânea.

Toni, que completou 60 anos em fevereiro, tinha pouco mais de 30 quando Nadal passou a fazer parte de um pequeno grupo de crianças que começavam a aprender o esporte.

Já nos primeiros dias juntos em quadra, Nadal era tratado de forma diferente pelo tio. Mas não era um caso de nepotismo.

O jovem Rafael - descrito por Toni como bem-educado e quieto àquela idade - costumava ficar incomodado com o que considerava um tratamento excessivamente duro.

"Exigi muito do Rafael porque me importei muito", diz Toni.

A mãe de Nadal, Ana Maria, lembra como seu filho costumava chegar em casa do treino chorando. Mas ele não contava o que o chateava.

Uma vez, ela ouviu do filho que Toni o havia chamado de "filhinho da mamãe". Ana Maria pensou em confrontar o cunhado, mas Nadal insistiu que não e pediu que ela ficasse quieta para evitar "piorar as coisas".

Nadal disse que o tio costumava gritar e tentar assustá-lo, às vezes deixando-o com uma "sensação de estômago embrulhado" quando via que seriam apenas os dois treinando juntos.

Se o garoto se distraísse enquanto estavam em quadra, Toni jogava bolas em sua direção para chamar sua atenção.

No final do treino, Toni mandava Nadal recolher todas as bolas espalhadas e varrer a terra vermelha, enquanto as outras crianças iam embora para casa.

Se ele não trouxesse sua garrafa de água, tinha que treinar sem se reidratar sob o sol quente de Maiorca.

Toni diz que tudo isso, exposto na autobiografia do sobrinho de 2011, é verdade.

"Acredito no trabalho e acredito nos jogadores que são fortes o suficiente para lidar com a intensidade desse trabalho", disse ele à BBC Sport.

"Não consigo viver outro estilo de vida. Na minha opinião, você sempre tem que saber o seu lugar no mundo. É por isso que eu era assim com Rafael. Eu sabia que ele aguentaria."

Quando Nadal, aos 11 anos, conquistou o título nacional espanhol de Sub-12, o lado mais severo de Toni voltou a aparecer.

Em uma pequena reunião para comemorar o sucesso, Toni cortou o clima ao recitar os nomes dos 25 vencedores anteriores. Ele ligou para a Federação Espanhola de Tênis para obtê-los, se passando por jornalista.

Nadal só tinha ouvido falar de cinco - aqueles que passaram a jogar profissionalmente. Toni, aparentemente com uma sensação de triunfo, mostrou seu ponto: ele só tinha uma chance em cinco de fazer o mesmo.

Outro exemplo aconteceu alguns anos depois, quando Nadal, agora com 14 anos, voltou para casa animado de um torneio internacional na África do Sul - o mais longe que ele já havia viajado.

Ele tinha ficado feliz por conhecer uma cultura diferente, tinha visto animais selvagens como elefantes e leões pela primeira vez, e voltou vitorioso.

Em sua autobiografia, Nadal explica que uma festa de boas-vindas havia sido organizada por uma de suas madrinhas, com uma faixa com uma mensagem que dizia algo como "celebrando e relaxando ao mesmo tempo".

Mas Nadal nunca viu a faixa. Toni a arrancou da parede, impediu o jovem de entrar na festa e chamou-o para treinar às 9h do dia seguinte.

"Eu queria que ele soubesse que tudo o que ele conquistou naquela idade não era muito relevante em uma perspectiva mais geral", diz Toni.

"Queria amortecer as expectativas. Queria que ele soubesse que era apenas um pequeno passo e que se ele quisesse progredir tinha de continuar a trabalhar muito."

O pai de Nadal, Sebastian, irmão de Toni, às vezes se perguntava se o irmão mais novo estava pressionando demais seu filho. A esposa também tinha reservas.

Fora de seu círculo íntimo, algumas pessoas - olhando para trás por lentes de quase 30 anos, em meio às mudanças atuais de posturas sobre bem-estar no esporte - também podem questionar os métodos de Toni.

Em seu livro, Nadal revelou como sentiu que o tio contribuiu para ele ser "mais inseguro".

Já Toni diz que só "queria o melhor" para o sobrinho.

"Fui duro com ele, mas não severo", acrescenta. "Fui duro pelo seu bem."

"Não havia muitas" desavenças familiares, diz ele, e Sebastian e Ana Maria reconheciam a importância de Toni na formação de seu filho como jogador de tênis profissional.

Esta foi uma das razões da decisão de rejeitarem uma bolsa de estudos de tênis que significaria uma mudança para Barcelona quando ele tinha 14 anos.

O próprio Nadal, mesmo tão jovem, sabia que a parceria com Toni era especial e também relutava em partir para o continente espanhol.

"Eu não queria sair de casa e estou feliz por não ter feito isso, agora olhando para trás", disse ele em seu livro Rafa: My Story, de 2011, escrito com o autor britânico John Carlin.

"[Mesmo que] Toni estivesse me irritando, eu sabia que tinha algo bom com ele", disse. "Porque Toni estava certo. Muitas vezes irritante, mas, a longo prazo, certo."

Durante o último Aberto de Madri, campanhas de televisão usaram tomadas cinematográficas da histórica praça de touros Las Ventas, na capital espanhola, em referência às partidas de Nadal.

O logotipo pessoal do maiorquino, que também adorna as roupas que veste em quadra, é uma representação abstrata de dois raios que representam os chifres de um touro.

Mas sua família brinca sobre como, desde muito jovem e ainda agora, ao se aproximar do 35º aniversário, ele não gosta de escuro, prefere dormir com a luz ou a TV ligada, e se esconde embaixo de almofadas sempre que há um trovoada.

A persona do 'Touro Furioso' - traduzida pela resistência, intensidade, implacabilidade, e recusa em aceitar derrotas - foi construída pelo Tio Toni.

"Fui um treinador que se preocupou mais em formar e fortalecer o caráter do Rafael, do que em formá-lo tecnicamente", afirma.As habilidades essenciais que permitiram a Nadal vencer 20 Grand Slams, 36 Masters e praticamente todas as outras honras no esporte ainda são evidentes em suas partidas hoje.

A resistência, provavelmente a palavra mais importante do mantra Nadal, foi desenvolvida tanto no sentido físico quanto mental pelas longas e inflexíveis sessões de treinamento com Toni.

O espírito indomável foi encorajado por partidas de 20 pontos, nas quais o Nadal mais velho deixava o protegido chegar a 19 antes de subir de nível e vencer.

Priorizar a mente ao corpo foi algo estimulado quando ele jogou com um dedo mindinho quebrado em um torneio espanhol de Sub-14, e acabou vencendo porque não queria mostrar nenhum sinal de fraqueza a Toni.

A habilidade de jogar com clareza sob pressão e resolver problemas na quadra também veio de seu tio - "o mágico onisciente da minha infância" - que constantemente analisava seus erros.

Todas essas qualidades ficaram evidentes nos maiores triunfos de Nadal. Por exemplo, a vitória titânica contra Roger Federer que lhe rendeu o primeiro título de Wimbledon, em 2008 ou, mais recentemente, a maneira como ele sobreviveu ao resistente Daniil Medvedev para vencer o Aberto dos Estados Unidos de 2019.

Há quinze dias, no Aberto da Itália, elas apareceram novamente.

Nadal, longe de seu melhor, enfrentou dois match points contra o canadense Denis Shapovalov, mas resistiu e virou o jogo na terceira rodada. Três dias depois, ele derrotou Novak Djokovic na final para erguer o título de Roma pela décima vez.

"Jogue cada ponto como se fosse o último", diz Toni, é a mensagem que ele transmitiu ao sobrinho.

O fato de Rafael ainda estar ganhando Grand Slams ao entrar nos anos finais de sua carreira, e vencendo tenistas muito mais jovens que não enfrentaram os mesmos problemas físicos causados ??por quase 20 anos de quadras, mostra que é absurdo sugerir que ele confia apenas na disposição de seu corpo e sua mente.

Claramente, sua proficiência técnica geral - um saque aprimorado e difícil, a habilidade de finalizar pontos violentamente à esquerda e à direita, raciocínio inteligente e jogo de rede bem executado - está entre as melhores do esporte.

Toni não leva nenhum crédito por isso.

"Acho que dei a ele o compromisso com o esporte, de estar sempre com o cérebro ativo e alerta, de nunca desistir. Uma das coisas mais importantes que disse a ele foi que ele precisava melhorar sempre", diz.

Toni costuma brincar que tinha dois requisitos importantes para ser um bom treinador para Nadal.

"Em primeiro lugar, sou tio dele e é difícil demitir um parente. A segunda é que fui o treinador mais barato do mundo", diz ele.

Nadal ganhou 16 de seus 20 títulos de Grand Slam sob o olhar atento do tio. Em 2017, Toni decidiu que estava cansado de viajar pelo mundo e se aposentou do cargo de técnico de Rafael.

Embora as histórias sugiram que Toni foi uma figura tirânica, exigente e irascível em igual medida, este não é um retrato justo.

Nadal fala sobre a "diversão e magia" em seu relacionamento, enquanto quem o conhece bem fala de um homem sério e franco, mas também dócil, generoso e com um senso de humor agudo.

"Apesar de toda a dureza com Toni, não sou daqueles atletas cujas histórias de vida mostram a superação de começos sombrios no caminho até o topo. Tive uma infância de contos de fadas", escreveu Nadal em seu livro.

Atualmente, Toni dirige a academia de Nadal em Maiorca, que fica a uma curta caminhada por uma avenida arborizada do Manacor Tennis Club, onde tudo começou. Lá, tanta preparar as futuras estrelas do tênis por meio de treinamento e educação baseada em valores familiares.

A dupla permanece próxima - assim como todo o clã Nadal (todos ainda vivem em Manacor) - e Toni descreve o relacionamento como um algo "normal" entre tio e sobrinho.

O jogo de Nadal nunca é discutido, no entanto. Embora Toni ainda assista a alguns de seus jogos - ele foi recentemente visto nas arquibancadas do Aberto de Madri - ele não se envolve.

Quando Rafael conquistou seu 10º título no Aberto da França em 2017 - o último Roland Garros de Toni como seu treinador - o radiante tio foi à quadra para entregar o troféu. O orgulho brilhou em seu rosto e o amor entre a dupla emanou quando eles compartilharam um abraço apertado.

Outra cena assim emocionante pode acontecer se Rafael se tornar o maior jogador masculino de todos os tempos - pelo menos pela métrica de títulos do Grand Slam - na mesma quadra, no próximo dia 13 de junho.

"Se pudéssemos voltar a quando comecei a jogar tênis com o Rafael e dissessem que ele ganharia 20 Grand Slams ou 21 Grand Slams, eu diria que era impossível", diz Toni.

"Mas agora, por causa do caminho que ele percorreu - vencendo Grand Slams quase todos os anos e melhorando sua pontuação - parece normal.

"Provamos que um garoto normal de Manacor - com esforço, com sacrifício - conseguiu atingir os muitos objetivos que estabeleceu quando era jovem."


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