Caso Lázaro: como crimes famosos resultaram em mudanças polêmicas na lei
Em meio à repercussão do caso Lázaro Barbosa, a Câmara dos Deputados aprovou na terça-feira (22/06) a urgência de um projeto de lei (PL) que torna obrigatório o exame criminológico para autorizar saídas temporárias de presos e progressão de pena, como para o regime aberto.
Essa avaliação é produzida por psicólogos e assistentes sociais a partir de entrevistas com o detento e de seu comportamento no cárcere.
Em tese, o exame avalia se um preso tem condições de convívio social e se ele poderia cometer novos crimes fora da cadeia. Atualmente, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) autoriza juízes a pedir o laudo para casos específicos, normalmente crimes graves contra a vida. Mas ele não é obrigatório.
O caráter de urgência do PL 2213/21 foi aprovado por cerca de 400 deputados, incluindo parlamentares de partidos de esquerda e centro-esquerda, como PCdoB e PSB. Só votaram contra as bancadas do PSOL e do PT. O presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), colocou o PL na pauta de votação de ontem, mas não houve tempo para votá-lo - ele deve ser apreciado nesta quinta-feira ou nos próximos dias.
Por um lado, quem é a favor da mudança acredita que a medida poderia dificultar o cometimento de crimes por detentos em saída temporária ou em cumprimento de penas em liberdade. Por outro, críticos argumentam que a proposta é inconstitucional, ineficaz e de difícil aplicação em um sistema carcerário já precário.
Há quem diga, também, que ele é mais um episódio de "legislação do pânico" - quando a comoção e o medo gerados por crimes famosos motivam a criação de leis mais duras. Essas novas leis afetam pessoas que nada têm a ver com o crime específico e produzem consequências graves no sistema carcerário.
Esse movimento já ocorreu várias vezes no Brasil, como nas mudanças na lei motivadas pelo assassinato da atriz Daniella Perez e pelo sequestro do empresário Abílio Diniz (leia mais abaixo).
Caso Lázaro
O novo projeto foi apresentado pelo deputado federal Alex Manente (Cidadania-SP) na semana passada, quando a caçada da polícia do Distrito Federal por Lázaro Barbosa, de 32 anos, ganhou grande destaque no noticiário.
Ele é acusado de matar Cláudio Vital, 48, e Cleonice Andrade, 43, além de dois filhos do casal, um de 21 anos e outro de 15. A família foi encontrada com marcas de tiros e facadas, segundo a polícia.
A Justiça aponta que Lázaro tem um histórico de crimes, como estupro e roubos. Condenado, ele fugiu da prisão algumas vezes. A última ocorreu em 2016, quando foi beneficiado pela saída temporária de Páscoa.
Lázaro ganhou o benefício depois de ter cumprido dois quintos de sua pena e de progredir para o regime semiaberto. Ele também fez cursos de reeducação solicitados por um exame criminológico.
'Saidinhas'
Se o projeto de lei for aprovado, o laudo criminológico será obrigatório para todos os detentos sujeitos a progressão de pena e saídas temporárias, incluindo pessoas condenados por crimes não violentos, como furto.
"O caso Lázaro mostra uma fragilidade da legislação. Temos inúmeros exemplos de pessoas que cometeram crimes nas 'saidinhas' da prisão. Nós não podemos liberar qualquer tipo de bandido. Precisamos proteger a sociedade, não colocá-la em risco", diz o parlamentar Alex Manente.
Após o projeto entrar na pauta da Câmara, 98 entidades de defesa dos direitos humanos e de psicologia, como o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), a Conectas e o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, divulgaram uma a carta pública com críticas ao texto.
"Trata-se de proposta de norma de efeitos nefastos sobre o sistema prisional brasileiro", diz o documento, lembrando que o tema não foi discutido com a sociedade civil por meio de audiências públicas.
Para Hugo Leonardo, advogado criminal e presidente do IDDD, o projeto visa "dificultar o acesso de presos a um direito deles". "Ele cria entraves burocráticos com a finalidade de aumentar o rigor punitivo de forma irracional, ferindo o caráter progressivo da pena. O objetivo não é de fato realizar os exames, porque o sistema não tem essa capacidade, mas sim criar uma fila e deixar as pessoas presas por mais tempo", afirma.
Já Manente diz que o PL não está criando algo novo. "O exame criminológico já é previsto pela lei. Muitos juízes já pedem o laudo. O que estamos fazendo é torná-lo obrigatório para que pessoas perigosas não cometam mais crimes", explica o parlamentar.
Estrutura precária
Defensores ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que o sistema prisional já não tem equipes suficientes para realizar os laudos pedidos atualmente.
Segundo o Depen (Departamento Penitenciário Nacional), o Brasil tinha, no primeiro semestre do ano passado, 678.506 presos, a terceira maior população carcerária do mundo, em números absolutos. O déficit no sistema era de 231.768 vagas.
Ou seja, caso o projeto seja aprovado, dezenas de milhares de pessoas permaneceriam presas, esperando a elaboração do laudo para receberem o benefício a que tem direito.
"Não temos equipes psicossociais em todas as unidade prisionais. O mais comum é esperar de seis meses a um ano pelo exame criminológico. Se todos tiverem que passar por isso, muita gente vai continuar presa sem necessidade, gerando um custo altíssimo para o sistema", diz Alessa Veiga, defensora pública que atua na área de execuções penais em Minas Gerais.
O PL não detalha os impactos financeiros da mudança, quantos servidores teriam que ser contratados para produzir os laudos nem qual será a estratégia do poder público para cumprir a lei.
"O Estado é quem tem que buscar alternativas (para aplicar a legislação). Não posso deixar de cumprir meu papel de legislador por causa da incapacidade da gestão, não posso me omitir", argumenta o deputado Alex Manente, autor do texto.
'Inconstitucional'
A carta das entidades de direitos humanos afirma que o PL é inconstitucional, embora o Manente diga que isso é "subjetivo".
"A Constituição Federal de 1988 adota a culpabilidade e não a periculosidade como parâmetro da execução penal, o que torna a proposta legislativa absolutamente inconstitucional", diz a carta.
Isso significa que uma pessoa não pode ser julgada por sua identidade ou personalidade, e sim por sua ação concreta.
Para Maurício Dieter, professor de criminologia da USP, o PL não é "só inconstitucional", mas também "anacrônico e anticientífico".
"Psicólogos e psiquiatras não são capazes de antecipar o comportamento de pessoas em liberdade sem violar o próprio estatuto ético e científico de suas disciplinas, a ciência aponta que isso é impossível. Isso é típico de uma criminologia ultrapassada, de 100 anos atrás", afirma.
Segundo ele, a proposta legislativa erra ao apontar o exame criminológico como instrumento de prevenção de crimes. "Não existe relação entre o exame e a capacidade de prognósticos de reincidência em 'saidinhas' da prisão. O exame não pode ser objeto desse tipo de futurologia, ele não consegue entregar isso", diz Dieter.
'Legislação do pânico'
Tentativas de alterações na lei motivadas pela comoção por crimes graves não são novidade no Brasil. A própria Câmara dos Deputados chamou projetos como esses de "legislação do pânico" no relatório da CPI que investigou o caos no sistema carcerário brasileiro, em 2009.
"Esse festival de proposições legislativas decorre, quase sempre, de momentos de crise de segurança pública, e, via de regra, por pressão social face a violências, principalmente diante de fatos pontuais de grande repercussão na mídia nacional."
Segundo o documento, "a legislação do pânico sobrecarrega a justiça criminal brasileira, carente de estrutura humana, material e de tecnologia, e abarrota os estabelecimentos penais, na sua esmagadora maioria de presos pobres".
A Câmara apontou como emblemática a lei 8.072/90, batizada de Lei de Crimes Hediondos, editada no governo Fernando Collor durante uma onda de violência no país, em 1990. Meses antes da aprovação, o sequestro do empresário Abílio Diniz gerou grande comoção e repercussão na imprensa.
A nova lei classificou como inafiançáveis os crimes de sequestro, estupro e tráfico de drogas, "negando aos seus autores o direito à liberdade provisória e progressão de regime", disse a CPI.
Em 1994, a mesma lei sofreu nova alteração: incluiu homicídio qualificado no rol de crimes hediondos. A mudança foi motivada pelo assassinato da atriz Daniella Perez, em dezembro de 1992 - ela foi morta pelo colega Guilherme de Pádua e sua mulher, Paula Thomaz.
Só em 2007 o STF considerou alguns pontos da lei como inconstitucionais. "Enquanto perdurou seus efeitos, as consequências no sistema carcerário foi enorme, aumentando a superlotação e os custos com a manutenção de presos que poderiam estar em liberdade", escreveu a CPI da Câmara.
Outro crime de grande repercussão gerou uma série de propostas de mudanças na lei - dessa vez, em relação à maioridade penal.
A discussão renasceu depois de 9 em abril de 2013, quando o estudante universitário Victor Hugo Deppman, de 19 anos, foi assassinado na frente de casa por um adolescente que roubou seu celular. O crime foi gravado por câmeras de segurança e exibido pela mídia. Faltavam três dias para que o infrator completasse 18 anos, idade que permitiria julgá-lo como adulto.
Nos meses seguintes, várias propostas para reduzir a maioridade penal foram apresentadas por parlamentares e governadores, embora nenhuma tenha sido aprovada até agora. Porém, esse tema ainda faz parte de discursos de inúmeros políticos que usam a segurança pública como plataforma eleitoral.
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