'Há um renascimento de grupos neonazistas no Brasil', diz diretor de fundação judaica
A prisão de um jovem de 17 anos, detido por atirar bombas caseiras do tipo coquetel molotov em duas escolas enquanto usava uma braçadeira com uma suástica, acendeu mais uma vez o alerta para o crescimento do antissemitismo no Brasil.
Para Ariel Gelblung, diretor para a América Latina do Centro Simon Wiesenthal, o incidente é reflexo do fortalecimento da ideologia neonazista no país durante o governo de Jair Bolsonaro.
"Há um renascimento de grupos neonazistas no Brasil. Vimos algo semelhante acontecer nos Estados Unidos durante o governo de Donald Trump, quando membros da extrema direita se achavam no direito de expressar e dizer qualquer coisa", afirmou o advogado à BBC News Brasil.
"O mesmo aconteceu no Brasil durante o governo Bolsonaro."
Segundo o argentino, o tema precisa ser discutido e trazido à tona para "desarmar a disseminação" do antissemitismo violento.
"Embora estejamos tranquilos com a forma como as autoridades agiram para deter o agressor e por não haver vítimas ou danos significativos, estamos preocupados com o episódio em si", diz o representante da organização judaica que afirma ter como objetivo promover os direitos humanos e pesquisar o Holocausto.
O ataque aconteceu no prédio em Monte Mor, interior de São Paulo, que abriga a Escola Estadual Professor Antonio Sproesser e a Escola Municipal Vista Alegre, onde o agressor havia estudado até o 5º ano do ensino fundamental. Ele é menor de idade e não teve a identidade divulgada.
Dois artefatos explodiram depois de atingir a grade de entrada do prédio, mas ninguém ficou ferido.
Segundo a Guarda Municipal, além da braçadeira, foram encontrados um caderno e livros com referências nazistas e uma réplica de fuzil em um carro utilizado pelo agresssor e na casa dele.
"É a primeira vez que vemos algo assim recentemente no Brasil. Trata-se de um adolescente e sinceramente não sabemos se a motivação foi pessoal ou ideológica. Mas isso é um sinal de que temos que ficar em alerta", afirmou Ariel Gelblung.
Alianças perigosas
Para o argentino, não há necessariamente uma ligação direta entre Jair Bolsonaro e o antissemitismo, mas as visões e alianças feitas pelo ex-presidente durante seu mandato deram espaço para o crescimento de uma extrema direita perigosa.
"Bolsonaro recebeu e se aproximou de uma representante da AfD da Alemanha", diz o advogado, em referência à recepção à deputada alemã Beatrix von Storch, vice-líder do partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD).
Von Storch é neta de Johann Ludwig Schwerin von Krosigk, que serviu como ministro das Finanças da ditadura de Adolf Hitler por mais de 12 anos. Muitos membros da legenda também são acusados regularmente de nutrir simpatias pelo nazismo e de minimizar os crimes cometidos pelo Terceiro Reich.
"Ideologicamente, esses membros da extrema direita se sentiram como se tivessem o direito real de expressar suas crenças", diz Gelblung.
Questionado sobre a proximidade do ex-presidente e de muitos de seus seguidores com Israel - não é incomum que bolsonaristas exibam bandeiras do país em demonstrações públicas - o especialista afirmou que a política nem sempre segue uma lógica exata.
"Me parece que Bolsonaro fala sério quando expressa sua admiração por Israel, porque ele apoia muito a igreja evangélica e eles amam Israel", diz.
"Mas nem todo mundo pensa igual. Muitos de seus apoiadores não são evangélicos - eles o apoiam como político, não como fiel. A política não é como matemática."
Bolsonaro sempre negou ter qualquer relação com extremistas da direita ou neonazistas.
O diretor da organização judaica para a América Latina também compara esse contexto brasileiro com o americano. "Ninguém fez tanto por Israel [na Presidência americana] como Donald Trump. Mas a extrema direita se sentiu confortável demais com sua liderança", afirma.
A BBC News Brasil tentou contato com Bolsonaro e seus assessores para que pudessem dar um posicionamento a respeito das alegações. Não foram enviadas respostas até a publicação deste material.
'Novo governo traz outros problemas'
Apesar da preocupação, Ariel Gelblung afirma que o Brasil fez alguns progressos nos últimos anos, com a entrada na Aliança Internacional de Memória do Holocausto (IHRA) como membro observador e decisões importantes do Supremo Tribunal Federal (STF) contra discursos de negação do Holocausto.
Mas o advogado não vê a mudança de governo como necessariamente uma boa notícia para o combate aos grupos neonazistas. Segundo ele, a proximidade do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva com o Irã pode ser problemática para o avanço da luta contra o antissemitismo.
Gelblung viu a decisão da Presidência de, inicialmente, permitir o atracamento de duas embarcações militares iranianas no porto do Rio de Janeiro em janeiro como sinal dessa aproximação.
A autorização foi vetada posteriormente, após o pedido do governo do Irã ser visto como uma tentativa de Teerã de usar o Brasil para provocar os EUA — os navios chegariam à costa na mesma semana em que o presidente brasileiro estaria em Washington para uma visita à Casa Branca.
"Com a mudança de governo podemos ver surgir outro tipo de problema com o antissemitismo", diz o representante do Centro Simon Wiesenthal.
"Quando o Irã ampliou sua influência na América Latina no passado, tivemos três ataques terroristas no país. Dois em Buenos Aires e um no Panamá."
Buenos Aires foi alvo de dois ataques, em 1992 e 1994. O primeiro deles, contra a embaixada de Israel, deixou 29 mortos. O segundo atentado teve como alvo o prédio da Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA) e deixou 85 mortos.
Um dia depois do ataque de 1994 em Buenos Aires, a explosão de um avião no Panamá matou todas as 21 pessoas a bordo. Entre os passageiros, 12 eram judeus. O incidente foi oficialmente classificado como ato terrorista por Israel e EUA.
A BBC procurou a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República sobre um posicionamento em relação às declarações, mas não obteve resposta.
Crescimento de denúncias
Entre junho de 2020 e julho de 2022, o Brasil registrou uma denúncia de antissemitismo por semana, segundo levantamento feito pelo relatório O Antissemitismo durante o governo Bolsonaro.
O documento, assinado por quatro ativistas e acadêmicos brasileiros de longa trajetória no estudo e monitoramento do antissemitismo no país, fala em 104 "acontecimentos antissemitas" no Brasil ao longo de mais de 700 dias.
Os pesquisadores apontaram para uma exacerbação do antissemitismo em paralelo a manifestações de caráter nazifascista no Brasil, inclusive por parte de integrantes de postos governamentais.
Diversos episódios são listados no relatório como indicativos desse comportamento por membros do governo. Um dos casos apontados aconteceu em 2020, quando Jair Bolsonaro e assessores beberam um copo de leite durante uma live.
"Beber leite em público é um símbolo dos neonazistas. Eles defendem uma 'teoria' (obviamente parte da pseudociência), que afirma que somente indivíduos da raça ariana seriam capazes de tolerar lactose enquanto adultos. Portanto, em manifestações, eles tomam galões de leite e 'se orgulham' disto", diz o relatório.
Em outro episódio mais recente, apoiadores de Bolsonaro fizeram uma saudação nazista durante execução do Hino Nacional em uma manifestação a favor da intervenção militar em Santa Catarina. O caso é investigado pelo Ministério Público.
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