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O Brasil do regime militar idealizado por Bolsonaro

Jean-Philip Struck

19/10/2018 08h03

Presidente, que determinou celebração do golpe de 1964, já afirmou que deseja a volta do país de "50 anos atrás". À época em que os militares estavam no poder, péssimos índices de desenvolvimento social eram uma marca.O presidente Jair Bolsonaro determinou nesta semana que as Forças Armadas brasileiras realizem celebrações no dia 31 de março, dia que marca o golpe de 1964, que abriu as portas do repressivo regime militar à frente do país durante 21 anos. A medida de Bolsonaro contrasta com a postura de países vizinhos ao Brasil, que também passaram por ditaduras militares e cujos governos rejeitam qualquer apologia ao golpismo e à repressão.

Ao anunciar a medida, o porta-voz da Presidência, Otávio do Rêgo Barros, afirmou que "o presidente não considera o 31 de março de 1964 golpe militar", mas sim uma ocasião em que "civis e militares" se uniram para "recuperar" o país.

Essa romantização do golpe e do regime por parte de Bolsonaro, ele próprio um ex-militar, não é uma novidade. Durante a campanha eleitoral de 2018, o atual presidente também afirmou desejar um Brasil "semelhante àquele que tínhamos há 40, 50 anos atrás", em tom de quem evocou uma suposta era dourada perdida no país. O capitão reformado falava de costumes, criminalidade e educação como se essas coisas tivessem se degenerado ao longo das últimas décadas.

Mas o período a que Bolsonaro se referiu estava longe de ser uma época digna de nostalgia sob quase todos os aspectos. Voltando meio século no tempo, o regime estava em seu quarto ano e vivia o início da sua fase mais dura. Defensor público da ditadura, Bolsonaro também já deixou claro em outras ocasiões que não considera episódios como o Ato Institucional nº 5, a repressão e a tortura como aspectos negativos.

Mas, para além do aspecto político do regime, o Brasil do regime militar - mais especificamente o de 50 anos atrás - também era um país atrasado, com alta prevalência de miséria e fome e com péssimos índices de desenvolvimento social: um terço da população era analfabeta, doenças infecciosas e parasitárias ainda apareciam entre as principais causas de morte, e a mortalidade infantil era seis vez maior que a atual. A criminalidade também havia começado a se tornar epidêmica nos grandes centros urbanos. E vários desses aspectos pioraram ao longo do regime.

Saúde e expectativa de vida

Em 1968, início dos chamados Anos de Chumbo, não havia nada parecido com o Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1988. Somente parte da população com carteira assinada tinha acesso à saúde por meio do antigo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Mesmo esse sistema sofria com a ineficiência. E para quem não estava no mercado de trabalho formal, como as empregadas domésticas, restava pagar pelo atendimento ou contar com a benevolência de hospitais beneficentes.

À época, a diarreia e doenças parasitárias e infecciosas apareciam entre as principais causas de morte em várias grandes cidades. Na região Norte, ainda havia alta incidência de doenças como hanseníase (lepra).

A mortalidade infantil era uma chaga no país. Em 1968, o índice era de 89,62 para cada mil nascidos, considerando apenas as capitais. Em 2016, caiu para 14 por mil. Na região Nordeste, os números eram ainda piores, chegavam a 167,51 por cada mil nascimentos.

Os índices ainda pioraram em relação ao início da década, explicitando o sucateamento da saúde sob o regime militar. Em 1960, 60,2 por mil nascidos morreram em São Paulo. Em 1968, foram 76,6. À época, a taxa nos EUA era de 19,8.

Segundo o antropólogo Luiz Eduardo Soares, entre 1972 e 76, em todo o Brasil, morreram 1,4 milhão de crianças por causas associadas à desnutrição e à falta de saneamento, como difteria, coqueluche, sarampo, poliomielite e doenças diarreicas.

Além disso, 72% dos que morriam no país tinham menos de 50 anos e, destes, 46,5% eram crianças menores de quatro anos. Também ao final dos anos 1960, a população de 47% dos municípios brasileiros tinha uma expectativa de vida de até 50 anos. Hoje, ela chega a 75,5 anos no país.

O governo militar ainda mascarava a situação. Em 1974, o noticiário sobre uma epidemia de meningite em São Paulo foi censurado. Esconder a má situação para promover uma imagem fictícia do Brasil também era prática comum em relatórios oficiais.

Em 1974, o governo encomendou um estudo para apontar como se alimentavam os brasileiros. Foram entrevistadas 55 mil famílias. O pediatra Yvon Rodrigues, da Academia Nacional de Ciências, afirmou em entrevista nos anos 80 que os resultados foram tão aterradores que o documento foi engavetado. "Havia famílias que comiam ratos, crianças que disputavam fezes”, disse ele. O relatório ainda mostrava que 67% dos brasileiros sofriam de subnutrição.

Educação

Em 1968, o analfabetismo ainda era uma das maiores causas de vergonha nacional. No início da década, 39,7% da população com mais de 15 anos era analfabeta. Em 1970, 33,7% ainda não sabiam ler e escrever – a queda foi proporcionalmente mais lenta do aquela observada entre 1950 e 1960.

Em 1968, o governo militar criou o Movimento Brasileiro de Alfabetização, o Mobral. Foi um fracasso: em 15 anos de existência, 40 milhões de pessoas passaram pelo programa, mas apenas 15 milhões foram diplomadas.

Em sua entrevista, Bolsonaro citou ainda que deseja um país que "respeite as crianças em sala de aula", como era "há 50 anos". Mas, cinco décadas atrás, poucos jovens tinham a oportunidade de sequer ver uma sala de aula. Havia algumas ilhas de excelência pelo país, mas o acesso era para poucos.

No final da década de 1960, 76% dos municípios registravam uma média inferior a dois anos de estudo para a população adulta. No Nordeste, a média de anos de estudo era de apenas 15 meses. No Norte, nove. Menos de 10% das crianças entre quatro a seis anos frequentavam a escola – hoje são mais de 90%.

No final de 2017, 7% da população do país com mais de 15 anos de idade não sabia ler ou escrever, segundo dados do IBGE.

Criminalidade

O Brasil de 2018 sofre, sem dúvida, muito mais com a violência do que em 1968. A taxa de homicídios em 2016 foi de 30,3 por cada grupo de 100 mil habitantes. Só que a atual epidemia começou a ser gestada na época sobre a qual Bolsonaro demonstra nostalgia. Os números do período de São Paulo servem de amostra.

Em 1960, quatro antes do golpe militar, a cidade registrou 5,7 homicídios por 100 mil habitantes. Eram, em sua maioria, casos envolvendo maridos traídos e disputas familiares. Em 1968, no entanto, a taxa saltou para 10,4 por 100 mil habitantes – pela primeira vez, havia atingido um nível epidêmico.

Segundo estudos, a situação piorou com o aumento da desigualdade e a mudança de atitude da polícia, que passou a priorizar cada vez mais o uso de uma lógica de extermínio em vez de formas adequadas de solução de crimes.

O ano de 1968 marcou a estreia dos infames esquadrões da morte em São Paulo, formados por grupos de policiais. Naquele ano, eles assassinaram 200 pessoas. As vítimas eram, em sua maioria, suspeitos de envolvimento em assaltos e furtos.

Mas a ação violenta de policiais acabou tendo um efeito reverso, piorando a criminalidade nas periferias. Com a polícia envolvida em assassinatos, parte da população passou evitar denunciar crimes. Conforme a Justiça ficou menos acessível, o ato de matar passou a ser visto cada vez mais como uma ferramenta eficaz.

"Em vez de controlar os roubos, os homicídios provocam novos homicídios e aumentam a desordem nesses lugares. Em territórios onde as próprias polícias matam, o homicídio torna-se uma ação cada vez mais escolhida na mediação de conflitos", aponta o pesquisador Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP).

Em 1984, último ano da ditadura, o índice de homicídios em São Paulo havia alcançado 37,9 por 100 mil habitantes – mais alto do que a atual média nacional.

Crescimento e desigualdade

O ano de 1968 marca o início do "milagre econômico brasileiro", período de crescimento robusto que durou até 1973, com altas do Produto Interno Bruto (PIB), de entre 7% e 13% ao ano. Ao mesmo tempo, este também foi um período de piora nos níveis de desigualdade.

Em 1965, a participação na renda nacional do 1% mais rico da população, era cerca de 10% do total. Três anos depois, a cifra subiu para 16%. Os números pioraram ainda mais até o fim do regime. Já entre os 5% mais ricos, a participação na renda passou de 28,3% em 1960 para 34,1% em 1970.

Em contraste, os 50% mais pobres, que recebiam 17,4% do rendimento total em 1960, passaram a 14,9% do total em 1970. Neste último ano, havia 3.275 municípios (83% do total) cuja população vivia, em média, com menos de meio salário mínimo por mês.

Os indicadores também apontam que no período entre 1964 e 1974 ocorreu uma queda ou estagnação do salário mínimo real, apesar do crescimento da economia. Em São Paulo houve queda de 42% no poder aquisitivo do salário mínimo. Com os sindicatos banidos, os trabalhadores também não tinham canais para registrar a insatisfação.

Situação das mulheres

O panorama para as mulheres também era pior do que o atual. Elas tinham menos participação na economia, tinham mais filhos e menos renda e estudo.

O número de mulheres economicamente ativas em 1968 era baixo, mal alcançava 20%, contra 50% em 2010. A principal atividade delas era ajudar a formar famílias. Em 1970, a taxa de natalidade era de 5,8 filhos nascidos vivos por mulher – hoje, é de 1,7. Elas também eram mais dependentes dos maridos, e ainda não havia a Lei do Divórcio, sancionada apenas em 1977.

Naquela época, a renda média das mulheres era muito inferior à dos homens em todos os segmentos, como não escolarizadas e diplomadas. Em alguns casos, a discrepância chegava a quatro vezes o valor médio da renda. Uma mulher com curso universitário no Brasil em 1970 ganhava em média 41% do salário médio de um homem com diploma. Hoje, o percentual é de 75%.

Elas também tinham menos anos de estudo. A média no final da década de 1960 era de apenas 2,2 anos, contra 2,6 dos homens. No Nordeste, era de apenas 1,1 ano. Hoje é o contrário. Em 2015, elas tinham em média 9,7 anos de estudos, contra 9 anos dos homens. Em 2016, as mulheres também apareceram como maioria nos cursos de graduação no Brasil: 57,2% dos alunos. Em 1970, representavam 25,6% da população com título universitário.

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