"É como estar num labirinto sem saída", diz irmã de Marielle sobre investigações
"É como estar num labirinto sem saída", diz irmã de Marielle sobre investigações - Anielle Franco conta que militância nunca foi tão intensa em sua vida como nos dois anos seguintes à morte da vereadora. Apesar do acúmulo de frustrações, ela se nega a perder a esperança. "Temos um legado para honrar."O interesse de Anielle Franco pela política começou cedo. Antes de completar 17 anos, ela ganhou uma bolsa para estudar e jogar voleibol numa universidade nos Estados Unidos. Era uma das HBCUs (Historically black colleges and universities), instituições de ensino criadas para o público afro-americano antes da Lei dos Direitos Civis de 1964.
"Foi necessário me impor, entender meu cabelo, meu nariz, meu corpo", diz. A militância passou a ocupar maior espaço em sua vida, mas nunca na intensidade dos últimos dois anos, após o assassinato da vereadora Marielle Franco, sua irmã. "A gente tem um legado inteiro para defender e honrar."
Anielle, de 35 anos, é professora numa escola particular do Rio de Janeiro. O ofício passou a dividir espaço com a função de diretora do Instituto Marielle Franco, criado pela família da vereadora para fortalecer sua memória e legado, além de reivindicar justiça sobre o caso.
Nos dois anos que sucederam o crime, completados neste sábado (14/03), a investigação teve maior repercussão pelas controvérsias do que seus avanços. Em meio ao luto, a família teve que lidar com suspeitas de interferência nas investigações, formalizadas em denúncia feita pela ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge em setembro de 2019.
Na ocasião, ela acusou o conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado do Rio (TCE-RJ) Domingos Brazão de atuar para obstruir as investigações do assassinato da vereadora e do motorista Anderson Gomes. Dodge solicitou, ainda, a federalização das investigações, deslocando o caso da Polícia Civil do Rio para a Polícia Federal.
"É como se a gente estivesse num labirinto sem saída", desabafa Anielle. "Se ela sabia disso, por que não falou antes? Enquanto familiar, a gente fica entre a cruz e a espada. Ao mesmo tempo que a gente tenta acreditar que algo está sendo feito, pode ter tanta corrupção envolvida nessa investigação, que às vezes bate um desânimo disso tudo."
O debate sobre a possível federalização das investigações começou logo após o crime que vitimou Marielle e seu motorista – e segue indefinido. O pedido de Dodge entrou na pauta do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e deve ser levado a julgamento no próximo dia 31 pela ministra Laurita Vaz. O tema será analisado pela Terceira Seção, responsável pelos processos penais no STJ.
A transferência do caso é entendida na corte como uma medida excepcional. Além disso, dois acusados de executarem o crime, os ex-policiais militares Élcio de Queiroz e Ronnie Lessa, foram presos. Portanto, a tendência é que o requerimento seja negado.
Em janeiro deste ano, o ministro da Justiça, Sergio Moro, reviu sua posição favorável à transferência das investigações e passou a defender que permaneçam no Rio. Moro atribuiu a mudança ao desejo manifestado pela família de que o caso fique no Rio.
Os familiares, por sua vez, dizem não confiar no ministro para investigar os crimes, afirmando que seu interesse somente surgiu após a menção ao presidente Jair Bolsonaro no inquérito. "Acreditamos que Sergio Moro contribuirá muito mais se ele permanecer afastado das apurações", dizia uma nota da família em novembro passado.
"Moro é uma figura ímpar. Era previsível que ele ficasse a favor da federalização. Ele nunca nos recebeu, nunca procurou a família para falar sobre nada, e, de repente, disse que era a favor da federalização. Por quê? Eu vejo todos muito confusos: a investigação, o ministro e o presidente. Na posição de chefe de Estado, não era para ficar desmerecendo, fazendo piada, como ele faz. Não consigo acreditar em nada do que eles falam", diz a irmã da vereadora.
"Quanto mais revolta me dá, mais quero fazer"
Apesar do acúmulo de frustrações, Anielle afirma que perder as esperanças não é uma possibilidade. Ela traz tatuada no ombro esquerdo a medalha de São Bento e, nas costas, a imagem de São Jorge. A família é católica e vai junta à missa aos domingos. "A nossa fé moveu muita coisa até aqui. Teria sido diferente se eu não tivesse espiritualmente fortalecida naquele momento e em todos os que vieram depois", acredita.
Segundo ela, o maior desafio é ter compaixão pelos que se dedicam a caluniar a memória de sua irmã nas redes. Não falta quem diga que a vereadora "enche o saco".
"Dói muito. Mas quanto mais revolta me dá, mais eu quero fazer. Eu não consigo ver uma coisa atacando a memória, índole ou caráter dela e ficar quieta. Tenho muita dificuldade com isso, muita", confessa. "Ao mesmo tempo que fere o fato de as pessoas não conseguirem enxergar que não precisam julgar uma morte pela posição político-partidária, isso mostra o quão importante é nosso trabalho no instituto, de tentar dialogar com elas."
Embora a abertura ao diálogo seja cada vez menor no contexto brasileiro de polarização, ela acredita haver brechas. Em 1º de março, a inauguração da Casa Marielle Franco, na zona portuária do Rio, atraiu 7 mil pessoas, segundo o instituto. Entre os muitos elogios à iniciativa enviados pelas redes, havia mensagens de pessoas identificadas com partidos e candidatos com pensamentos divergentes de Marielle. "Entendo que não é uma tarefa fácil, mas necessária. Eu não vou desistir disso", garante.
O espaço em homenagem à vereadora se localiza numa região de enorme importância para a memória da diáspora africana no Brasil. A 500 metros dali fica o Cais do Valongo, onde cerca de 1 milhão de africanos escravizados desembarcaram — 10% do total de 10 milhões que chegaram ao continente americano. Por ser o único vestígio desse afluxo nas Américas, o Valongo foi declarado Patrimônio Material da Humanidade pela Unesco em 2017.
Representatividade
Na mobilização para manter viva a memória de Marielle, o debate sobre a representatividade racial é o ponto mais sensível. Houve intensa discussão nas redes sociais nos últimos dias após o anúncio de que a roteirista Antonia Pellegrino convidou o cineasta José Padilha para dirigir uma série desenvolvida por ela sobre a vereadora, com estreia prevista para 2021. Ela é esposa do deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ), com quem Marielle trabalhou como assessora parlamentar por 16 anos.
O fato de os dois serem brancos gerou uma série de questionamentos. Anielle conta que a família foi procurada pela roteirista, com a ideia já formatada. "Eu entendo que ia acontecer com ou sem a gente. Se eles conseguirem, de fato, colocar pessoas negras ali, vou ficar muito mais contente, pois irá permitir que contem suas narrativas. A bola está na mão deles. Não começaram bem, mas têm a chance de terminar diferente", avalia. "Isso é algo que as pessoas brancas têm por costume fazer: elas decidem, falam e acabam fazendo porque têm acessos que a gente não tem."
Desde a estadia de Anielle nos EUA, que se estendeu por 12 anos, inquietações desse tipo – como a falta de representatividade racial, mas também feminina – costumavam ser tema de conversa entre ela e sua irmã quando estavam a sós. Por vezes, Marielle se via incomodada por ser a única mulher em espaços de decisão de seu partido. Além de ter perdido o porto seguro, a irmã caçula ficou com a responsabilidade de cuidar dos pais e levar adiante sua luta.
"Eu sempre acompanhava minha irmã, ajudava a escrever, estava junto nos debates. Ela me formou como mulher", resume. Questionada se, com tanta energia mobilizada para a militância, ela pensa em disputar um cargo eletivo, Anielle responde: "Não sei futuramente, mas hoje não. Para 2020, fora de cogitação total."
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Autor: João Soares
"Foi necessário me impor, entender meu cabelo, meu nariz, meu corpo", diz. A militância passou a ocupar maior espaço em sua vida, mas nunca na intensidade dos últimos dois anos, após o assassinato da vereadora Marielle Franco, sua irmã. "A gente tem um legado inteiro para defender e honrar."
Anielle, de 35 anos, é professora numa escola particular do Rio de Janeiro. O ofício passou a dividir espaço com a função de diretora do Instituto Marielle Franco, criado pela família da vereadora para fortalecer sua memória e legado, além de reivindicar justiça sobre o caso.
Nos dois anos que sucederam o crime, completados neste sábado (14/03), a investigação teve maior repercussão pelas controvérsias do que seus avanços. Em meio ao luto, a família teve que lidar com suspeitas de interferência nas investigações, formalizadas em denúncia feita pela ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge em setembro de 2019.
Na ocasião, ela acusou o conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado do Rio (TCE-RJ) Domingos Brazão de atuar para obstruir as investigações do assassinato da vereadora e do motorista Anderson Gomes. Dodge solicitou, ainda, a federalização das investigações, deslocando o caso da Polícia Civil do Rio para a Polícia Federal.
"É como se a gente estivesse num labirinto sem saída", desabafa Anielle. "Se ela sabia disso, por que não falou antes? Enquanto familiar, a gente fica entre a cruz e a espada. Ao mesmo tempo que a gente tenta acreditar que algo está sendo feito, pode ter tanta corrupção envolvida nessa investigação, que às vezes bate um desânimo disso tudo."
O debate sobre a possível federalização das investigações começou logo após o crime que vitimou Marielle e seu motorista – e segue indefinido. O pedido de Dodge entrou na pauta do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e deve ser levado a julgamento no próximo dia 31 pela ministra Laurita Vaz. O tema será analisado pela Terceira Seção, responsável pelos processos penais no STJ.
A transferência do caso é entendida na corte como uma medida excepcional. Além disso, dois acusados de executarem o crime, os ex-policiais militares Élcio de Queiroz e Ronnie Lessa, foram presos. Portanto, a tendência é que o requerimento seja negado.
Em janeiro deste ano, o ministro da Justiça, Sergio Moro, reviu sua posição favorável à transferência das investigações e passou a defender que permaneçam no Rio. Moro atribuiu a mudança ao desejo manifestado pela família de que o caso fique no Rio.
Os familiares, por sua vez, dizem não confiar no ministro para investigar os crimes, afirmando que seu interesse somente surgiu após a menção ao presidente Jair Bolsonaro no inquérito. "Acreditamos que Sergio Moro contribuirá muito mais se ele permanecer afastado das apurações", dizia uma nota da família em novembro passado.
"Moro é uma figura ímpar. Era previsível que ele ficasse a favor da federalização. Ele nunca nos recebeu, nunca procurou a família para falar sobre nada, e, de repente, disse que era a favor da federalização. Por quê? Eu vejo todos muito confusos: a investigação, o ministro e o presidente. Na posição de chefe de Estado, não era para ficar desmerecendo, fazendo piada, como ele faz. Não consigo acreditar em nada do que eles falam", diz a irmã da vereadora.
"Quanto mais revolta me dá, mais quero fazer"
Apesar do acúmulo de frustrações, Anielle afirma que perder as esperanças não é uma possibilidade. Ela traz tatuada no ombro esquerdo a medalha de São Bento e, nas costas, a imagem de São Jorge. A família é católica e vai junta à missa aos domingos. "A nossa fé moveu muita coisa até aqui. Teria sido diferente se eu não tivesse espiritualmente fortalecida naquele momento e em todos os que vieram depois", acredita.
Segundo ela, o maior desafio é ter compaixão pelos que se dedicam a caluniar a memória de sua irmã nas redes. Não falta quem diga que a vereadora "enche o saco".
"Dói muito. Mas quanto mais revolta me dá, mais eu quero fazer. Eu não consigo ver uma coisa atacando a memória, índole ou caráter dela e ficar quieta. Tenho muita dificuldade com isso, muita", confessa. "Ao mesmo tempo que fere o fato de as pessoas não conseguirem enxergar que não precisam julgar uma morte pela posição político-partidária, isso mostra o quão importante é nosso trabalho no instituto, de tentar dialogar com elas."
Embora a abertura ao diálogo seja cada vez menor no contexto brasileiro de polarização, ela acredita haver brechas. Em 1º de março, a inauguração da Casa Marielle Franco, na zona portuária do Rio, atraiu 7 mil pessoas, segundo o instituto. Entre os muitos elogios à iniciativa enviados pelas redes, havia mensagens de pessoas identificadas com partidos e candidatos com pensamentos divergentes de Marielle. "Entendo que não é uma tarefa fácil, mas necessária. Eu não vou desistir disso", garante.
O espaço em homenagem à vereadora se localiza numa região de enorme importância para a memória da diáspora africana no Brasil. A 500 metros dali fica o Cais do Valongo, onde cerca de 1 milhão de africanos escravizados desembarcaram — 10% do total de 10 milhões que chegaram ao continente americano. Por ser o único vestígio desse afluxo nas Américas, o Valongo foi declarado Patrimônio Material da Humanidade pela Unesco em 2017.
Representatividade
Na mobilização para manter viva a memória de Marielle, o debate sobre a representatividade racial é o ponto mais sensível. Houve intensa discussão nas redes sociais nos últimos dias após o anúncio de que a roteirista Antonia Pellegrino convidou o cineasta José Padilha para dirigir uma série desenvolvida por ela sobre a vereadora, com estreia prevista para 2021. Ela é esposa do deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ), com quem Marielle trabalhou como assessora parlamentar por 16 anos.
O fato de os dois serem brancos gerou uma série de questionamentos. Anielle conta que a família foi procurada pela roteirista, com a ideia já formatada. "Eu entendo que ia acontecer com ou sem a gente. Se eles conseguirem, de fato, colocar pessoas negras ali, vou ficar muito mais contente, pois irá permitir que contem suas narrativas. A bola está na mão deles. Não começaram bem, mas têm a chance de terminar diferente", avalia. "Isso é algo que as pessoas brancas têm por costume fazer: elas decidem, falam e acabam fazendo porque têm acessos que a gente não tem."
Desde a estadia de Anielle nos EUA, que se estendeu por 12 anos, inquietações desse tipo – como a falta de representatividade racial, mas também feminina – costumavam ser tema de conversa entre ela e sua irmã quando estavam a sós. Por vezes, Marielle se via incomodada por ser a única mulher em espaços de decisão de seu partido. Além de ter perdido o porto seguro, a irmã caçula ficou com a responsabilidade de cuidar dos pais e levar adiante sua luta.
"Eu sempre acompanhava minha irmã, ajudava a escrever, estava junto nos debates. Ela me formou como mulher", resume. Questionada se, com tanta energia mobilizada para a militância, ela pensa em disputar um cargo eletivo, Anielle responde: "Não sei futuramente, mas hoje não. Para 2020, fora de cogitação total."
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Autor: João Soares
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