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'Escolher quem salvar': o drama para prestar socorro aos yanomamis

Há dificuldades no atendimento aos yanomamis; casos mais graves são levados a Boa Vista - Expedicionários da Saúde
Há dificuldades no atendimento aos yanomamis; casos mais graves são levados a Boa Vista Imagem: Expedicionários da Saúde

08/02/2023 04h00

Um médico, uma enfermeira e três técnicos de saúde. Essa é a equipe de profissionais de saúde disponível até a semana passada (30 de janeiro) dentro da Terra Indígena (TI) Yanomami, em Roraima, nas proximidades da fronteira brasileira com a Venezuela, para atender os cerca de 30 mil indígenas que vivem no local, em meio à crise sanitária que assola a região.

Alocada no polo-base de saúde de Surucucu — a 270 km da capital Boa Vista ou duas horas de viagem em um avião de médio porte —, a equipe se desdobrava dia e noite para cuidar dos 200 indígenas que estavam internados no local, que tem estrutura para atender somente 25 pacientes.

"Neste momento, os profissionais de saúde têm de escolher quem salvar. Eles removem de Surucucu para Boa Vista primeiro quem eles acham que tem maior chance de sobrevivência", disse o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami, Junior Hekurari.

Por isso, "agonia" era o sentimento descrito pelos profissionais de saúde do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei), que aguardavam ansiosos a chegada a Surucucu dos primeiros voluntários da Força Nacional do SUS, convocada pelo Ministério da Saúde após a pasta declarar Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional na TI Yanomami, no dia 20 de janeiro.

O primeiro voo da Força Aérea Brasileira (FAB) que levaria 16 voluntários da Força Nacional do SUS ao polo-base de Surucucu chegou à terra indígena com três dias de atraso, e com menos profissionais do que o esperado: quatro enfermeiros e três médicos.

Sem um hospital dentro do território yanomami, contudo, os casos mais graves continuarão sendo levados para Boa Vista.

Faltam equipamentos nas unidades de saúde da terra yanomami, faltam medicamentos, e não há profissionais para trabalhar nesses lugares. A saúde entrou em colapso no território yanomami e não é de hoje
Dário Kopenawa Yanomami, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami

'Longe de retratar a realidade'

Boa Vista - Lalo de Almeida/Folhapress - Lalo de Almeida/Folhapress
Criança yanomami internada com desnutrição em hospital de Boa Vista
Imagem: Lalo de Almeida/Folhapress

A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, viajou para Boa Vista no último final de semana para acompanhar os trabalhos da Força Nacional do SUS.

"O que está sendo noticiado ainda está longe de retratar a realidade", disse.

A ministra relatou o óbito de uma criança de um ano no sábado, no polo-base de Surucucu. Com quadro severo de desnutrição, a criança não conseguiu ser removida a tempo de helicóptero para Boa Vista por causa das condições meteorológicas na região — chovia torrencialmente há quatro dias seguidos.

Para agilizar atendimentos emergenciais como o dessa criança, a FAB deverá construir um hospital de campanha em Surucucu. Mas, para isso, a pista de pouso do local precisará ser ampliada para receber aviões de maior porte.

Mais uma vez, o tempo poderá ser um obstáculo no socorro aos yanomamis.

Mais ameaças de morte

Além da crise sanitária na região, lideranças yanomamis relataram que estão recebendo mais ameaças de morte desde que foi declarada a emergência no território.

No dia 30, uma comitiva do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania embarcou para Boa Vista para apurar violações contra defensores locais de direitos humanos e lideranças indígenas.

A violência contra as comunidades indígenas também tem aumentado desde que o Ministério da Justiça fechou o espaço aéreo no dia 1º de fevereiro, após decreto assinado pelo presidente Lula.

O texto permite ao governo federal neutralizar aeronaves e equipamentos relacionados com o garimpo e autoriza a Força Nacional de Segurança a proteger equipes de saúde no território Yanomami.

Yanomami - Urihi Associação Yanomami/Sumaúma Jornalismo - Urihi Associação Yanomami/Sumaúma Jornalismo
Crianças yanomamis desnutridas; ação do garimpo é uma das causas para situação crítica
Imagem: Urihi Associação Yanomami/Sumaúma Jornalismo

Acompanhada de coordenadores da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e membros da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Guajajara sobrevoou o território yanomami no domingo e visitou comunidades onde era seguro se aproximar.

Segundo ela, os garimpeiros que não conseguiram fugir da terra indígena desde que a Polícia Federal entrou na região, no domingo, estão se deslocando dos garimpos menores para os maiores.

Roubo de alimentos

A diretora de Promoção e Desenvolvimento Sustentável da Funai, Lucia Alberta, também estava no sobrevoo e relata que o envio de cestas básicas foi suspenso temporariamente em duas regiões por causa da proximidade dos garimpeiros, que têm roubado os alimentos dos indígenas.

Por conta dessa pressão que os garimpeiros estão sentindo de não conseguirem mais levar os insumos para os garimpos [por causa do espaço aéreo agora controlado pelo Ministério da Justiça], eles estão buscando os alimentos que nós estamos enviando para os indígenas
Lucia Alberta, diretora de Promoção e Desenvolvimento Sustentável da Funai

Além da violência, o mercúrio usado no garimpo também contaminou os rios locais, essenciais para os yanomamis.

Para resolver o problema, o governo federal, segundo Guajajara, irá construir cisternas para armazenar água potável e perfurar poços artesianos nas aldeias. Ela não deu um prazo para início da ação.

Aldeias ocupadas

A TI Yanomami, maior reserva indígena do país, tem mais de 350 aldeias distribuídas em cerca de 9,6 milhões de hectares de floresta contínua nos estados de Roraima e do Amazonas.

É uma área equivalente a quase duas vezes o tamanho da Suíça. Estima-se que ao menos 180 das aldeias estejam ocupadas por 20 mil garimpeiros, segundo relatório Yanomami sob ataque, da Hutukara Associação, com participação do Instituto Socioambiental (ISA), publicado em abril de 2022.

Com a chegada de uma equipe da Força Nacional do SUS a Surucucu, o objetivo é que os voluntários comecem uma busca ativa por indígenas doentes dentro da terra indígena Yanomami.

Yanomami - Reprodução redes sociais - Reprodução redes sociais
Canoa lotada de garimpeiros ilegais deixando a terra yanomami
Imagem: Reprodução redes sociais

"O objetivo é que os profissionais da saúde sejam enviados para as aldeias, mas somente para aquelas que não estão ameaçadas por garimpeiros", afirma Junior Hekurari.

Segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), anteriormente, cerca de 70 polos de saúde funcionavam dentro da área e atendiam mais de 5 mil indígenas por mês.

Com o domínio dos garimpeiros sobre esses polos e sobre as pistas de pouso usadas pelas equipes de saúde, conforme denunciado no relatório do ISA, sobrou apenas o polo-base de Surucucu como o único local viável para trabalho dos médicos.

Os profissionais de saúde não conseguem entrar nessas comunidades onde os garimpeiros estão armados com metralhadora, fazendo ameaças. Isso significa que, enquanto o governo não remover o garimpo delas, não é seguro enviar médicos para lá
Junior Hekurari, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami

Menos de 25% dos yanomami têm atendimento

Em números, portanto, menos de um quarto da população de cerca de 30 mil yanomami poderá receber os médicos da Força Nacional do SUS.

"Estamos falando de 23 mil indígenas impedidos de receber atendimento médico neste momento", diz o presidente do Conselho de Saúde Yanomami.

Com a precariedade da estrutura de saúde dentro da TI Yanomami agravada pelos garimpeiros, os profissionais da saúde contam que, em grande parte dos casos, os indígenas têm de caminhar por horas mata adentro até o polo-base de Surucucu para receberem ajuda médica.

Doentes que não têm condição para caminhar solicitam transporte de helicóptero via rádio de alta frequência.

Onde os yanomami são internados

Por dia, 8 a 15 pacientes chegam em Surucucu com casos graves de malária. Outros, chegam desnutridos, desidratados por causa de vômito e diarreia, além de verminoses e viroses.

Ao todo, são resgatados de 30 a 35 pacientes para o polo-base de Surucucu. Os casos mais graves são removidos de lá para Boa Vista
Júnior Hekurari, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami

Já para Boa Vista, são enviados cerca de oito yanomamis em estado grave diariamente. Na capital, eles são encaminhados para um dos três hospitais públicos de Boa Vista ou para o hospital de campanha montado pela FAB na Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai).

Crianças yanomamis vulneráveis

As crianças em caso grave que precisam ser removidas para Boa Vista vão para o hospital de campanha montado na Casai, na capital.

As que precisam de internação são encaminhadas para o Hospital Materno Infantil Nossa Senhora de Nazareth, o único hospital infantil estadual de Roraima. No dia 30, quinze estavam internadas no local, sendo sete recém-nascidos.

Os casos mais graves vão para o Hospital da Criança Santo Antônio.

Crianças - 22.jan.2023 - Weibe Tapeba/ Sesai / Divulgação - 22.jan.2023 - Weibe Tapeba/ Sesai / Divulgação
Crianças yanomamis resgatadas em operação do Ministério da Saúde
Imagem: 22.jan.2023 - Weibe Tapeba/ Sesai / Divulgação

O local tem 50 crianças yanomamis internadas no momento (até terça-feira, 7), sendo quatro em Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Uma delas tem três semanas de vida e havia sofrido cinco paradas cardíacas na viagem de três horas de sua aldeia até o polo-base de Surucucu.

Barreira linguística e alimentar

Além da distância, os indígenas que conseguem chegar a Boa Vista também enfrentam a dificuldade da língua, uma vez que quase nenhum deles fala o português, precisando de um intérprete em cada atendimento.

"Os médicos estão tendo dificuldades em atender. Custamos a encontrar intérpretes para ajudar", relata Hekurari.

Emergência sanitária

Quando o governo federal decretou a Emergência em Saúde Pública na TI Yanomami, foi lançado um formulário online para médicos que queiram integrar a Força Nacional do SUS na região.

No final de janeiro, entrou em funcionamento o Centro de Operação de Emergências em Saúde Pública (COE-Yanomami), um esforço conjunto dos Ministérios da Defesa, Desenvolvimento Social, Desenvolvimento Regional, Saúde e da Funai. O COE acompanha e reforça ações sanitárias, nutricionais e ambientais na região.

Garimpo - Divulgação/ISA - Divulgação/ISA
27.mai.2021 - Associação dos yanomamis estima que mais de 20 mil garimpeiros operem ilegalmente no local
Imagem: Divulgação/ISA

Organizações indígenas e dos povos yanomami, que lançaram a Campanha SOS Yanomami, também fizeram doações na última semana de janeiro.

A última vez em que o Brasil havia declarado uma emergência de saúde pública foi em 2020, por causa da pandemia de covid-19.