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Mulheres, imigrantes e WhatsApp: o garimpo se transformou; quando é ilegal?

Garimpo no rio Uraricoera, Terra Indígena Yanomami, em janeiro de 2022  - Relatório Yanomami sob ataque
Garimpo no rio Uraricoera, Terra Indígena Yanomami, em janeiro de 2022 Imagem: Relatório Yanomami sob ataque

Do UOL, em São Paulo

03/02/2023 04h00Atualizada em 03/02/2023 11h39

O avanço do garimpo tem sido apontado como uma das principais causas da crise que atinge o povo yanomami, em Roraima. A atividade extrativista é considerada ilegal em terras indígenas, mas a legislação brasileira permite, sob uma série de condições, o garimpo no país. Por definição, garimpo é a extração de minérios com baixa mecanização e mão de obra não especializada. O atual cenário brasileiro, no entanto, apresenta paradoxos em relação ao conceito.

Como começou o garimpo no Brasil?

  • Desde a época da colonização, o garimpo já era uma atividade econômica no país.
  • Durante o período da ditadura militar brasileira (1964-1985) houve um fomento para a garimpagem, com o caso da Serra Pelada, em Carajás (PA).
  • O garimpo na Serra Pelada foi um marco na história do Brasil; após o declínio, os garimpeiros de lá migraram em massa para outras regiões da Amazônia, incluindo para o estado de Roraima, onde vive o povo yanomami.
  • Em 1989, por meio da Lei nº 7.805, o regime de permissão de "lavra garimpeira" é estabelecido no Brasil.

Em relatório divulgado no ano passado pelo projeto MapBiomas, uma iniciativa colaborativa de ONGs, universidades e startups que mapeia a cobertura vegetal e uso da terra do Brasil, as áreas de garimpo no Brasil dobraram em apenas uma década, tornando a atividade mais extensa do que a própria mineração industrial. A Amazônia, por sua vez, concentrava 91,6% da área garimpada em 2021, de acordo com o relatório.

Existe garimpo porque existe ouro. É uma região muito rica e também tem outros tipos de minerais, muito utilizados nas indústrias de tecnologia
Francilene dos Santos Rodrigues, professora e pesquisadora da Universidade Federal de Roraima

Quando um garimpo é legal?

garimpo - Chico Batata - 2020/Greenpeace - Chico Batata - 2020/Greenpeace
Garimpo ilegal dentro da terra indígena yanomami, em Roraima, em 2020
Imagem: Chico Batata - 2020/Greenpeace
  • A legislação brasileira permite a outorga da lavra garimpeira em áreas que não sejam territórios indígenas e que não ultrapassem 50 hectares.
  • Se for em faixa de fronteira, a permissão estará sujeita a mais critérios ainda.
  • A permissão só é válida para o prazo de cinco anos.
  • Para exercer a atividade, o garimpeiro deve seguir exigências ambientais, como evitar que a água utilizada no procedimento cause danos a terceiros e compatibilizar o trabalho com a proteção ambiental.

O garimpo legal é aquele que passa pelos processos e procedimentos de acordo com o Código de Mineração Brasileiro. Inclusive tem uma dicotomia de legislação porque ela fala de garimpagem como uma atividade com equipamentos rudimentares e individual. O que acontece é que atualmente no Brasil isso é muito raro. Pouquíssimas pessoas fazem assim. Atualmente é um processo de mecanização, com retroescavadeira e outras máquinas, em áreas ilegais
Francilene dos Santos Rodrigues

Além da área do povo yanomami, outros territórios indígenas podem estar sendo ameaçados pelo garimpo. Segundo o levantamento do MapBiomas, as terras dos povos kayapó, munduruku, tenharim do igarapé preto e apyterewa também têm sinais da existência de garimpos.

O levantamento ainda aponta que os garimpos presentes em terras indígenas em 2021 eram 625% maiores do que em 2010.

Quem são os garimpeiros?

O perfil dos garimpeiros mudou ao longo dos anos. A pesquisadora Francilene dos Santos Rodrigues, que estuda o tema desde a década de 1990, afirma que majoritariamente quem constitui um garimpo são homens, entre 20 e 40 anos.

Mas, se no passado a maior parte deles eram nortistas ou migrantes do Nordeste, hoje os garimpeiros já são de todas as regiões do Brasil e até mesmo de países vizinhos.

Em 2015, eu encontrei até jovens que estavam trabalhando para conseguir captar dinheiro para estudos. Tinha uma influência muito grande de gente do Sul e Sudeste do Brasil, o que diferenciava, por exemplo, da minha pesquisa de 1996, em que basicamente eram garimpeiros da região Norte ou Nordeste
Francilene dos Santos Rodrigues


Segundo a pesquisadora, hoje quem está no garimpo é principalmente quem tem capital para investir: os empresários do garimpo. "A mudança é que você tem um perfil de pessoas com grau de instrução um pouco maior, com cada vez mais jovens e há mais entrada das mulheres", explica.

Posição das mulheres no garimpo é predominantemente na cozinha e na prostituição. Francilene afirma que, apesar de as mulheres sempre estarem presentes na história do garimpo, há características específicas sobre esse novo momento.

Além de uma maior inclusão na própria atividade de extração dos minérios, elas desempenham funções de cozinheiras e podem estar submetidas à exploração sexual.

O trabalho das mulheres pode ser muito mais limitado dependendo do acesso ao garimpo. Mas, hoje, algumas delas vão inclusive com o marido. Elas vão para cozinhar, mas também eles querem que elas façam o serviço sexual. Na cozinha, podem ganhar 10g a 15g de ouro, o que, dependendo da cotação do ouro, pode chegar a R$ 5 mil
Francilene dos Santos Rodrigues

Além disso, segundo ela, também há muitas mulheres imigrantes, especialmente da Venezuela. "Às vezes, essas migrantes chegam por meio de uma rede de tráfico de pessoas", diz a pesquisadora.

Garimpeiros podem tentar cooptar indígenas para o garimpo. O avanço do garimpo nas terras indígenas também muda a dinâmica das relações em um garimpo. Francilene explica que homens indígenas podem ser incentivados a trabalhar com a extração de minérios.

Os garimpeiros oferecem armas, ouro dentre tantas outras coisas na tentativa de cooptá-los e com promessa de enriquecimento. Além disso, na medida em que esse garimpo se aproxima dessas terras, meninas adolescentes, que andam desnudas na frente de não-brancos e cuja sexualidade está se desenvolvendo, acabam se tornando mais vulneráveis. O número de IST (Infecções Sexualmente Transmissíveis) nos indígenas, por exemplo, aumentou
Francilene dos Santos Rodrigues

Tudo é comunicado pelas redes sociais. Diferentemente de antes, hoje os garimpeiros têm acesso à internet e o fluxo de informação é muito maior.

A região da Amazônia é muito grande, então os grupos do WhatsApp servem como uma ótima maneira de comunicação para os garimpeiros. Nesses grupos, eles produzem vídeos, textos e falam sobre tudo abertamente, como as mortes que ocorrem nos garimpos, os serviços que fazem...
Francilene dos Santos Rodrigues

O que explica o aumento dos garimpos?

garimpo - REUTERS - REUTERS
Garimpo ilegal no território yanomami
Imagem: REUTERS

A condução de políticas no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro é apontada como uma das causas. Só na Terra Indígena Yanomami o garimpo ilegal cresceu 54% no último ano do governo de Bolsonaro. Uma pesquisa realizada pelo ISA (Instituto Socioambiental) em parceria com a HAY (Hutukara Associação Yanomami) aponta que 1.782 novos hectares foram destruídos entre dezembro de 2021 e dezembro de 2022.

As duas únicas lavras de garimpo autorizadas pela ANM (Agência Nacional de Mineração) em terra yanomami foram liberadas durante o governo de Bolsonaro. A medida foi inédita, segundo a Folha de S.Paulo.

O subemprego e a promessa de dinheiro fácil. Com a reforma trabalhista e o aumento do trabalho precarizado no Brasil, o garimpo se torna uma atividade que promete oferecer dinheiro fácil e rápido para a população. No entanto, a realidade não é essa, como explica a pesquisadora Francilene.

As pessoas acreditam que vão ganhar mais rapidamente aquilo que demorariam anos para ganhar em um trabalho informal, como sendo motorista de aplicativo. Eles trabalham 10h a 12h horas por dia, em condições insalubres, mas quem ganha de fato não são os garimpeiros de maneira geral
Francilene dos Santos Rodrigues

Mudanças no cenário internacional. Com o advento da globalização e, consequentemente, o aumento da mobilidade humana, o garimpo acaba se tornando uma alternativa também para muitos migrantes de outros países.

Um exemplo se dá na relação dos venezuelanos com o garimpo brasileiro. Francilene afirma que, durante uma pesquisa em 2005, a presença destes migrantes era inexistente em garimpos brasileiros. No entanto, dez anos depois, a situação mudou, acompanhando o cenário socioeconômico do país.

Com a conjuntura política, eles começam a chegar no Brasil. Por conta da discriminação e xenofobia, eles não conseguem emprego e o que vira alternativa é o garimpo
Francilene dos Santos Rodrigues