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Faltaram só 22 votos para Ulisses derrotar o general 'Nini'

O segredo na vida de um homem está em preparar-se para aproveitar a ocasião quando ela se apresentar.
Benjamim Disraeli (1804-1881), político conservador britânico, escritor e duas vezes primeiro-ministro do Reino Unido.

Faz 40 anos nesta semana.

No dia 25 de abril de 1984, com Brasília sob intervenção militar, comandado pelo general Newton Cruz, o "Nini", deu-se o grande duelo. Montado num cavalo branco e de chicote na mão, o fardado desafiava as tropas civis daquele senhor calvo, sempre de terno, ereto aos 67 anos, que se preparava para enfrentar o grande dia da sua vida.

Em poucas horas, o Congresso Nacional votaria a Emenda Dante de Oliveira, que restabelecia eleições diretas para presidente da República, depois de 20 anos de ditadura.

Não sei se o doutor Ulisses Guimarães, o "Sr. Diretas", leu Disraeli, mas ele soube aproveitar a ocasião. Depois de quatro meses à frente da maior campanha cívico-popular da nossa história, que levou milhões de brasileiros às ruas clamando pela volta da democracia, agora faltava pouco para o velho político pré-ditadura soltar o grito parado no ar.

Ao final do discurso de encerramento da campanha, com as galerias da Câmara superlotadas, em que foi aplaudido de pé 23 vezes, meu irmão de copo e de fé se emocionou. "Esta é a recompensa máxima de minha vida pública", comentou comigo.

Mais tarde, ele se lembraria de uma cena, depois de um comício no Crato, interior do Ceará, nas eleições municipais de 1976, quando um matuto o cercou na saída do palanque e lascou:

"O senhor me desculpe, mas com o perdão da palavra, vai falar bem assim na pqp..."

Nos pequenos aviões fretados, em que cruzamos o país várias vezes, ele brincava comigo: "Não precisa ficar com medo, jornalista. Avião comigo não cai".

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Certa vez, voando de Macapá para Belém em meio a uma tempestade amazônica, por teimosia dele, o piloto lhe disse que não morremos por pouco (em 1992, também por teimosia, Ulisses acabaria desaparecendo para sempre no mar de Angra dos Reis, num acidente de helicóptero).

Madrugada dos ausentes, o fim do dia da esperança

Esse foi o título da minha matéria publicada pela Folha no dia seguinte sobre os 22 votos que faltaram para a aprovação da emenda, graças aos 113 parlamentares do PDS, o partido dos militares, que fugiram do plenário para se esconder em seus gabinetes, com medo de votar contra a vontade da imensa maioria dos 130 milhões de brasileiros da época. No caminho da fuga, foram xingados e chutados por jornalistas e populares, mas não reagiram.

O placar final de 298 votos a favor das Diretas Já, 65 contra e 3 abstenções, insuficientes para alcançar a maioria de dois terços para aprovar uma emenda constitucional.

Abaixo, trechos da matéria reproduzida no meu livro "Explode um Novo Brasil - Diário da Campanha das Diretas" (Editora Brasiliense, 1984), com o prefácio manuscrito por Ulisses Guimarães, que assina o nome com "i" e não com "y".

Pelo chão acarpetado do plenário da Câmara Federal, quando tudo acabou, os representantes de um povo derrotado no seu maior anseio pisavam as pétalas de crisântemos amarelos, que estes meses todos simbolizaram uma luta, um sonho, um encontro _ o grito de liberdade desta humilhada Nação brasileira.

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(...) Assim como ninguém há de esquecer desta memorável campanha, ninguém haverá de esquecer os nomes destes traidores da vontade nacional, que, com sua ausência, permitiram que a minoria derrotasse a maioria para que os brasileiros não pudessem ser novamente donos do seu destino (no final do meu livro, publico os nomes deles).

Lá fora, depois das duas da manhã, algumas centenas de cidadãos ainda esperavam o impossível, uma reversão do resultado que ninguém queria.

Foi um dia que pareceu uma eternidade, discursos e mais discursos, adiando a decisão _ intermináveis 17 horas de uma sessão histórica, para que ao final o povo brasileiro ficasse sabendo que continuava tutelado, sem direitos (ainda levaria mais 5 anos para que pudéssemos votar para presidente e, por ironia do destino, o eleito acabou sendo Fernando Collor, que era do PDS, o partido da ditadura que derrotou a emenda).

(...)"Sim, pelo bem do Brasil", "Sim, pela liberdade", "Sim, pela soberania nacional", completavam os parlamentares da oposição ao anunciarem seus votos. Estado por estado, a votação do "sim" sempre esteve à frente do "não", mas a vitória não passava de uma ilusão: os pedessistas ausentes, na calada da madrugada, iam definindo o resultado. Os pedessistas que apareceram dizem um "não" baixinho, envergonhados. Alguns não se dignam sequer a ir até o microfone. Sussurram seus votos lá mesmo do fundo do plenário.

(...) "Vossa excelência faça o favor de se levantar", quase implora o presidente do Senado, Moacir Dalla, que dirigiu a sessão, quando um deputado do PDS, Afrísio Vieira Lima, se escondeu atrás de colegas para balbuciar "não" longe dos microfones.

(...) Até os boatos sobre ameaças de "Nini" desapareceram na madrugada da vergonha e da afronta, uns dizendo aos outros, sem ter que falar nada, só com os olhos: "É, desta vez não deu...!" Mas que ninguém pense que esta cena se repetirá impunemente. Uma Nação que se levantou em tão poucos meses de campanha, não se agacha mais. Por mais escura que esteja a madrugada, como já disse um poeta, mais perto se está da luz de um novo dia.

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Alguns deputados choravam, outros se prostravam em silêncio. Ao ser anunciado o resultado, a grande festa que todo o povo brasileiro esperava corria o risco de se transformar num imenso velório.

Mais uma vez, porém, este povo reagiu. Em vez de ficarem lamentando os 22 votos que faltaram para que o Brasil voltasse a ser uma democracia, os homens e as mulheres que lotavam as galerias bradaram seus gritos de guerra: "Um, dois, três, quatro cinco, mil, queremos eleger o presidente do Brasil", "O povo unido jamais será vencido", "O povo quer votar, Diretas já", "A luta continua!".

(...) Sem banda, sem regente, lá vinham eles de novo, cantando o Hino Nacional. Lá embaixo, no plenário, os parlamentares também se deram as mãos, braços erguidos, e se refazia a corrente. Do lado de fora, as tropas do general Newton Cruz, já que estavam ali mesmo, resolveram jogar algumas bombas de gás lacrimogêneo e atiçar seus cães pastores em cima dos inimigos vencidos que deixavam o Congresso.

A atriz Christiane Torloni, "musa das diretas", dava bandeira de que tinha chorado —e não foi pouco. "Eu aguentei até chegar perto do Ulisses. Aí não aguentei, dei um abraço no velho e chorei que nem criança".

Se o Brasil chorava de raiva ou de vergonha, um homem se regozijava: claro, ele, o general "Nini", que às três e meia da madrugada mandou a tropa se perfilar diante do Ministério do Exército, onde funciona seu QG do Comando Militar do Planalto. Depois de cumprimentar os rapazes pelo belo trabalho, ordenou seis "hip-hip-hurra" para festejar a vitória.

(...) Num apartamento da W-3, ainda resistia, apesar de tudo, uma faixa em que se podia ler, simplesmente: BRASIL.

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***
Ri melhor quem ri por último. Hoje, 21 de abril de 2024, vivemos em plena liberdade, apesar de todos os recentes arreganhos autoritários, graças àquela derrota de 40 anos atrás, que se tornou um divisor de águas entre a ditadura estrebuchando e a democracia nascente.

Demorou, mas no final da história o Brasil do doutor Ulisses venceu o Brasil do general "Nini".

Vida que segue.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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