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Venezuela: como é a quarentena em um país onde falta acesso aos serviços básicos

29/05/2020 07h47

De acordo com o governo de Nicolás Maduro, há 1.327 casos positivos da Covid-19 na Venezuela, mas muitos cidadãos ignoram o distanciamento social e saem às ruas para protestar pelo direito de acesso aos serviços básicos.

Elianah Jorge, correspondente da RFI em Caracas

Assim tem sido a quarentena em diversas partes da Venezuela. Até mesmo na capital, Caracas, onde estão as sedes da presidência e dos principais ministérios, falta água, energia elétrica e gasolina. Além disso, parte da população em todo o país enfrenta a falta de gás doméstico e de limpeza urbana. Muitos voltaram a cozinhar à lenha. Para piorar a situação, a inflação voltou a ganhar força nos últimos dias, alavancada pela escassez de combustível. Parece de um filme de terror, mas este é o cotidiano de muitos venezuelanos.

Entre todos os problemas, o mais grave é o da falta de água. Conseguir lavar as mãos, uma das orientações para conter a propagação do novo coronavírus, é quase uma missão impossível. "Aqui a situação da água é bem complicada. Às vezes ficamos até sete ou oito dias sem que chegue água. Precisamos caminhar quatro, cinco quadras para poder encher reservatórios com água e trazê-los para casa", diz uma moradora de uma comunidade na região leste de Caracas, que preferiu não se identificar."Às vezes chega a água durante dois dias, mas ela vem marrom e insalubre. Às vezes chega a ter mau cheiro", conta a entrevistada.

Vídeos que circularam esta semana pelas redes sociais mostraram moradores de Petare, uma das principais favelas caraquenhas, brigando para tentar encher galões de água. Alguns lugares estão há meses sem água encanada, que falta em 20% do país. O fornecimento irregular afeta outros 70% da população. Até mesmo hospitais de grande porte estão com as torneiras secas e usam baldes gigantes para armazenar o líquido.

Água paga em dólar

Os 86 caminhões-pipa importados recentemente pelo governo não foram suficientes para suprir a demanda interna. Críticos afirmam que com o valor pago pelos veículos seria possível investir no sistema de distribuição de água encanada. Há quem lucre com o problema. Caminhões-pipa particulares antes cobravam entre US$ 50 e US$ 70. Mas com a escassez de gasolina, que agora é revendida ilegalmente a valores exorbitantes, os preços pularam para entre US$ 100 e US$ 150.

Beber água potável é um investimento que pesa no bolso. Uma família de cinco pessoas, por exemplo, usa entre três ou quatro garrafões de água limpa por semana. Só o garrafão vazio custa entre US$ 7 e US$ 9. Enchê-lo sai por US$ 0,50.

A conta supera o valor do salário mínimo, que é de US$ 4,5 dólares de acordo com a conversão do bolívar, a moeda venezuelana. "Por mês gasto cerca de US$ 5 dólares para ter água potável, que usamos para beber e preparar a comida", diz a chefe de família.

Energia elétrica

Há constantes cortes ou oscilações de energia elétrica em todo o país.   Desde 2013 o país sofre com falhas no fornecimento de energia elétrica. De lá para cá a situação piorou. Exemplo disso foi o mega apagão registrado entre fevereiro e março do ano passado que deixou quase toda a Venezuela às escuras.

O governo alegou que a falha massiva foi um "ataque eletromagnético". No entanto, o problema persiste em todo o país, inclusive, na capital Caracas. As quedas de energia afetam a rotina familiar. Ocarina Castillo, decana da Universidade Central da Venezuela, sofre diariamente com as falhas de energia no bairro onde mora em Caracas.

"Nós temos um racionamento muito forte de água. Normalmente recebemos água duas vezes ao dia por durante meia hora. Meia hora pela manhã e meia hora à noite chegam pequenos bombeamentos de água. Automaticamente quando cai a luz do bairro, caem os bombeamentos e ficamos sem água. Ou seja, desde às cinco da tarde de terça-feira até às dez horas da manhã de hoje (quinta-feira) estivemos sem água, sem luz, sem internet..."

Energia elétrica

O país já foi um dos mais adiantados da região sul-americana em telecomunicações. Hoje em dia, entre a falta de energia e a de investimentos, a conexão de internet da Venezuela é uma das piores do continente. Em busca de melhores condições de vida, a filha da administradora Mayuli Martínez é uma das mais de quatro milhões de pessoas que saíram da Venezuela. Para encurtar a distância entre o Chile e Ciudad Bolívar, no sul venezuelano, as duas tentam usar a internet. Mas nem sempre é possível, é o que conta Martínez:

"Minha filha mora no exterior e quero falar com ela através da internet. Então a conexão cai, fica reconectando e nunca reconecta. Porque o serviço de internet é, definitivamente, péssimo". Sem sinal de telefonia celular na cidade satélite em que mora, nas imediações de Caracas, Belkys Torres decidiu dar outro uso ao aparelho celular. "Há dois anos meu telefone em casa apenas serve como lanterna. Só tenho sinal quando vou a Cúa (cidade de pequeno porte do estado Miranda)".    

Fogão à lenha

As falhas no fornecimento dos serviços básicos remetem a uma volta no tempo. Esta mulher, que preferiu não se identificar, mora em Barquisimeto, cidade de pouco mais de um milhão de habitantes na região norte do país, conta como a família prepara as refeições:

"Também somos muito afetados pela falta de gás doméstico, que não está chegando. Não há gás na cidade. Isso faz com que as pessoas, entre os cortes de energia, não podem cozinhar em fogão elétrico e então acendem fogões à lenha. Isso está gerando uma forte contaminação ambiental".     

Nos lugares mais pobres do país também não há serviço de limpeza pública. Para não conviver com os dejetos, os moradores preferem queimar o lixo, o que acaba gerando mais contaminação ambiental.

Combustível

Há poucos dias chegaram à costa venezuelana navios-cargueiros vindos do Irã. Para comemorar a importação do combustível, bandeiras daquele país foram hasteadas em prédios do Centro de Caracas e comemorada pelo alto escalão do chavismo. Apesar da compra de mais de 1,5 milhão de barris de combustível iraniano, a população ainda aguarda em fila a normalização da venda do produto.      

Morador da Colônia Tovar, povoado de colonização alemã a poucos quilômetros de Caracas, Benjamin é produtor agrícola. Ele gasta mais tempo esperando abastecer que trabalhando: "Eu entrei (na fila) domingo às três da tarde e ontem, quarta-feira, às quatro da tarde é que pude colocar gasolina, e apenas pude colocar 25 litros". Ele teve sorte. Pagou em bolívares o combustível pelo qual muitos, sem opção, acabam pagando no mercado paralelo até US$ 4 dólares pelo litro da gasolina.   

O presidente Nicolás Maduro afirmou recentemente que o combustível importado foi pago em moeda estrangeira e que o preço que a população terá que pagar nos postos de gasolina ainda será analisado. Mas nem todos os produtores têm a mesma sorte de Benjamin. Alguns colegas dele, sem conseguir transportar os alimentos, decidiram doar ou jogar fora a produção. Um prejuízo incalculável e com consequências diretas ao bolso da população.

É o que conta a professora universitária Mina Vivas. Entre tantos problemas enfrentados pela população, ela destaca que, durante a quarentena, período que coincidiu com a escassez de gasolina, os preços subiram muito. "A inflação continua afetando. Somado a isso, está o desaparecimento de uma série de produtos que já não chegam, por causa dos problemas da gasolina. E, por exemplo, os (produtores) que traziam verduras antes agora estão trazendo verduras de má qualidade e isso está nos afetando, e estão cada vez mais caras".

Há quase um mês foi imposto um controle de preços pelo governo bolivariano. Os dados da inflação ainda não foram atualizados. Mas de acordo com a Assembleia Nacional, liderada pelo opositor Juan Guaidó, a inflação em abril deste ano foi de 80%. Maduro anunciou que em breve irá flexibilizar a quarentena, que já dura 70 dias.

Muitos problemas e pouca distração

Até semana passada a população contava com a diversidade de canais oferecido pela então principal operadora de TV a cabo do país. No entanto, por motivos legais justificados pelas sanções impostas pelos Estados Unidos, a proprietária AT&T apagou o sinal da DirecTV deixando cerca de três milhões de venezuelanos sem acesso à informação.

Sem alternativas, a indignação popular foi traduzida em panelaços que ecoaram pelo país durante dias. "A decisão desta empresa, que não obedece a critérios comerciais, mas apenas critérios políticos, me parece totalmente injusta e desumana. Viola, inclusive, os direitos humanos, porque em meio a uma pandemia é uma medida totalmente cruel. Nos afetou bastante no âmbito pessoal e familiar", desabafou o veterinário Ivan Fernández.