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Argentina anuncia projeto de reforma da Justiça, mas oposição vê uma "estratégia de impunidade"

30/07/2020 07h02

O governo anunciou o envio ao Congresso de um projeto de lei que visa aumentar a independência e a eficiência da Justiça, mas, para a oposição, a manobra esconde o objetivo de acumular poder e de garantir a impunidade de Cristina Kirchner, quem responde em processos de corrupção. Em Buenos Aires, foram registrados panelaços contra a reforma.

Márcio Resende, correspondente em Buenos Aires

O presidente Alberto Fernández enviou nesta quarta-feira (29) ao Congresso o denominado projeto de lei de Organização e Competência da Justiça Federal cujo objetivo declarado é o de "organizar melhor a Justiça Federal".

"Propomos uma Justiça independente que desenvolva processos com celeridade e eficiência. Estamos construindo uma Justiça sem influência dos poderes midiáticos, fáticos e políticos", anunciou o presidente na Casa Rosada, durante cerimônia marcada pela presença de apenas um dos cinco juízes da Corte Suprema e pela ausência da oposição.

"O único motivo que me impulsiona a pedir uma mudança na Justiça é o de fortalecer o estado de direito", defendeu-se, ciente das desconfianças em torno da iniciativa.

Propostas que geram desconfianças

O projeto de uma Reforma do Judiciário tem dois pilares: dilui o poder dos atuais juízes, ao duplicar a quantidade de tribunais penais, e cria o chamado Conselho Consultivo, composto por onze juristas que vão propor medidas para reformar também a Corte Suprema, ampliando a quantidade de juízes integrantes.

Para a oposição, no entanto, os dois aspectos significam a incorporação de novos juízes aliados que permitiriam ao governo avançar com um projeto hegemônico de poder e livrar a ex-presidente e atual vice-presidente, Cristina Kirchner, de todas os processos que responde na Justiça por corrupção.

Durante a noite desta quarta-feira (29), foram registrados panelaços em vários bairros da capital argentina sob o lema "Não à reforma judicial K (por Kirchner)".

O Conselho Consultivo, com oito dos onze integrantes ideologicamente próximos do governo, terá 90 dias para elaborar propostas de reforma para a Corte Suprema e para outras esferas da Justiça. As duas principais recomendações devem ser a ampliação da atual quantidade de cinco juízes e uma mudança no papel da mais alta instância jurídica.

Para reforçar as desconfianças da oposição, fazem parte desse Conselho advogados de acusados de corrupção como o advogado de Cristina Kirchner, Carlos Beraldi, e o advogado de ex-membros do governo Kirchner, León Arslanian.

"Recorri a juristas de reconhecimento técnico indiscutível", definiu Alberto Fernández enquanto a oposição avisou, num comunicado, que não aprovará essas mudanças na Corte.

Instrumento de poder

Pelo projeto, os 23 tribunais penais de primeira instância (doze varas criminais e onze varas econômicas) serão fundidos e duplicados a 46 tribunais penais que vão tratar de delitos como corrupção, delitos tributários, contrabando, tráfico de pessoas e tráfico de drogas.

"Desta maneira, propomos que o poder se desconcentre de um reduzido número de magistrados que têm o poder de conhecer e de decidir na quase totalidade dos processos com relevância institucional e midiática", afirmou Alberto Fernández.

Além dos novos 23 tribunais e das suas respectivas promotorias de primeira instância, o novo Foro Federal Penal terá cinco tribunais federais orais com os seus respectivos promotores e oito tribunais de defesa pública. Em todo o país, serão 132 novos cargos cujas designações significam um poderoso instrumento de poder para o governo que poderá incidir sobre aliados e negociar com a oposição.

A oposição desconfia que essa incorporação será de magistrados identificados com o Governo. Os candidatos deverão passar pelo crivo do Conselho da Magistratura, órgão responsável pela designação e pela remoção de juízes, onde o Governo tem forte influência.

"Os concursos que o Conselho da Magistratura realizar para selecionar candidatos para os novos tribunais terão prova oral e pública. Todo o procedimento será registrado e terá difusão pública", garantiu Alberto Fernández.

"De uma vez por todas, digamos 'nunca mais' a uma Justiça, utilizada para saldar discussões políticas e a uma política que recorre à Justiça para eliminar o adversário", pediu o Presidente que, com o argumento de perseguição política, reforçou as suspeitas da oposição.

Oposição critica uma "estratégia de impunidade"

A ex-presidente Cristina Kirchner diz-se vítima dessa perseguição, sob a figura do denominado "Lawfare", termo usado para definir uma guerra judiciária para intervir na política e para destruir adversários.

"Ninguém pode surpreender-se com o que estamos fazendo. Submeti o meu parecer ao voto popular e o povo, com o seu voto, acompanhou-me", disse Fernández, quem, no entanto, ao longo da campanha eleitoral, negou que pretendesse uma modificação da Corte Suprema.

Desde que o panorama eleitoral passou a indicar o retorno de Cristina Kirchner ao poder, dos 74 presos, acusados ou condenados por integrarem esquemas de corrupção durante os 12 anos de governos Kirchner, restam apenas cinco presos. Todos os demais saíram da prisão, mesmo que para a domiciliar.

A coligação Juntos pela Mudança, principal pólo opositor ao qual pertence o ex-presidente Mauricio Macri, havia denunciado que a reforma do Judiciário visava a impunidade dos acusados e que não tinha relação com a prioridade dos argentinos durante a pandemia.

"Uma reforma judicial e, particularmente, uma ampliação da Corte Suprema não são uma prioridade da sociedade, preocupada com angústias e carências evidentes em matéria econômica, social e de segurança", diz um comunicado dos líderes da oposição, para quem "a comissão de especialistas tem o objetivo de mudar a Corte Suprema para se tornar uma nova instância no sistema de Justiça que dite resoluções judiciais que garantam a impunidade".