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Bolívia: atentado contra presidente eleito mostra grave polarização política

O presidente eleito da Bolívia, Luis Arce, tomará posse no dia 8 de novembro, foi alvo de um atentado, mas não se feriu - EPA
O presidente eleito da Bolívia, Luis Arce, tomará posse no dia 8 de novembro, foi alvo de um atentado, mas não se feriu Imagem: EPA

06/11/2020 08h15

O presidente eleito da Bolívia, Luis Arce, sofreu um atentado na noite de quinta-feira (5), poucos dias antes da cerimônia de posse, agendada para domingo (8). De acordo com o porta-voz do Movimento ao Socialismo (MAS), uma banana de dinamite foi arremessada contra a sede do partido, em La Paz, onde Arce estava reunido com sua equipe.

Ninguém ficou ferido no ataque. No entanto, o episódio demonstra a forte polarização política no país desde a saída de Evo Morales do poder, em outubro do ano passado.

A posse de Arce e de seu vice, David Choquehuanca, marca a volta do MAS ao comando da Bolívia. O novo governo tem grandes desafios para o período 2020-2025. Além da retomada da economia, o novo presidente deve enfrentar a crescente divisão política no país. A oposição continua alegando que, mais uma vez, houve fraude eleitoral. O clima é de tensão, sobretudo na capital.

Eventos ligados à posse de Arce estão previstos para começar já no sábado (7). Ele e Choquehuanca deverão participar de uma cerimônia às 6h, no sítio arqueológico de Tiwanaku, nas imediações de La Paz. O local é considerado sagrado para algumas etnias da Bolívia, país que abriga cerca de 36 povos indígenas.

No total, 240 autoridades de diversos países foram convidadas para a posse. No entanto, uma saia justa marca a transmissão do cargo. A presidente interina, Jeanine Áñez, que governou o país por 11 meses após o exílio de Evo Morales, convidou o venezuelano Juan Guaidó para a posse, porque o reconhece como presidente da Venezuela. Ao mesmo tempo, assessores de Arce chamaram o presidente Nicolás Maduro, grande aliado do MAS, para a cerimônia. A chancelaria boliviana, que ainda obedece às ordens da opositora Áñez e está encarregada de organizar a cerimônia, decidiu de última hora cancelar o convite feito aos venezuelanos.

O chanceler do Irã, Mohammad Javad Zarif, que está há alguns dias na América do Sul, anunciou que iria à cerimônia de posse. Ele viajará à Bolívia após ter participado de uma intensa agenda em Caracas com integrantes do governo Maduro. Depois, o iraniano pretende ir a Cuba para reuniões com o presidente Miguel Díaz-Canel.

O líder argentino, Alberto Fernández, também havia confirmado presença para a posse. Já o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, embora tenha parabenizado Arce pela vitória, não deve comparecer à cerimônia.

Após o atentado desta quinta-feira, ainda não há informações oficiais sobre quais medidas de segurança serão aplicadas durante o evento.

Novo e enxuto gabinete

Nos próximos dias deve ser divulgada a lista dos nomes que irão compor o gabinete de Arce. Por mais de dez anos, ele foi ministro da Economia do governo de Evo Morales. "Lucho", como também é chamado, precisará ter jogo de cintura para equilibrar interesses partidários. Seu governo deve enfrentar três desafios: se distanciar da sombra do ex-presidente, atender os interesses do MAS e recuperar a economia nacional.

A Bolívia passa pela pior crise econômica em 40 anos. O Produto Interno Bruto (PIB) boliviano deve ter uma contração de 6,2% neste ano, a maior queda desde a década de 1980.

Em reunião com aliados na última quarta-feira (4), a economia foi um dos principais temas de discussão. Arce manifestou preocupação com o futuro econômico do país, que é um dos sócios comerciais do Brasil. Uma das alternativas para deslanchar o setor econômico seria investir nas minas de lítio, metal usado em veículos elétricos e em celulares.

Arce também enfrenta pressão para ampliar seu gabinete de governo. Porém, o vice Choquehuanca, que deixou o cargo de chanceler após divergências com Morales, afirmou que talvez seja necessário reduzir o número de pastas porque "não há dinheiro" nos cofres do Estado.

O atual governo interino conta com 17 ministérios. Apesar da ressalva do vice-presidente, integrantes do MAS têm planos de reintegrar pastas que foram extintas no governo de Áñez. A pressão pela ampliação levou Arce a brincar, afirmando que seriam necessários cerca de 147 ministérios para atender a todas as demandas.

A volta dos protestos

Apesar da vitória da dupla Arce-Choquehuanca, com 55,1% dos votos, ter sido bastante superior ao resultado do candidato Carlos Mesa, que recebeu 28,8% dos sufrágios, o fantasma da fraude eleitoral está de volta.

A dúvida remete à votação de 2019, quando uma auditoria da Organização de Estados Americanos (OEA) apontou irregularidades no processo eleitoral. Esse anúncio gerou uma série de tensões na política boliviana: Evo Morales abandonou a presidência após mais de 13 anos no poder, políticos do MAS se refugiaram em embaixadas, e o governo interino da conservadora Jeanine Áñez assumiu as rédeas do país.

Rosario Baptista Canedo, uma das autoridades do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE), pediu na quinta-feira, por meio de uma carta aberta, uma auditoria para investigar indícios de fraude. No entanto, dias antes, o presidente do TSE, Salvador Romero, havia descartado a revisão, alegando que a contagem oficial dos votos foi concluída e com o aval observadores nacionais e internacionais.

Nem mesmo a pandemia de Covid-19 desmotivou os opositores. Há dias eles fazem vigília em frente ao TSE, em La Paz, pedindo a recontagem dos votos.

O clima é de tensão: em diversas cidades do país há bloqueios ou manifestações. Grupos de toda a Bolívia, contrários ou favoráveis à posse, se dirigem a La Paz para protestar contra ou apoiar a volta do MAS ao poder.

Em Santa Cruz de la Sierra, bastião da oposição boliviana e centro econômico do país, manifestantes organizaram paralisações em protesto contra a posse de Arce. Alguns bolivianos, temendo confrontos, decidiram estocar alimentos.

Partidários do MAS afirmam que a mobilização contrária à posse tem o objetivo de desestabilizar a ordem pública.

Renovação do MAS

O novo governo também tem pela frente a reestruturação do partido socialista. A sigla passa por atritos internos, especialmente após a saída de Morales do poder. A fissura tende a ficar mais evidente quando o ex-presidente, que está na Argentina, voltar ao país. A previsão é que Morales retorne à Bolívia um dia após a posse de Arce.

Entre Morales e Choquehuanca há uma rusga antiga. Mas o ex-presidente tem um aliado de peso na presidência do Senado, Andrónico Rodríguez, representante do MAS no departamento de Cochabamba. A liderança de Rodríguez, considerado herdeiro político de Morales, pode resultar em um choque entre o Senado e a presidência.

A Coordenação Nacional em Defesa da Democracia, organização aliada ao MAS, defende que o governo de Arce-Choquehuanca peça às demais autoridades uma reforma da Constituição. O objetivo dessa manobra seria obter a criação de milícias armadas para defender o novo governo.

A organização desses grupos foi proposta há meses por Morales, seguindo os passos da política do presidente venezuelano. No entanto, Arce rejeitou essa possibilidade.

Na Venezuela, país visitado recentemente por Morales, existem grupos paramilitares - organizações armadas que defendem a revolução bolivariana -, os chamados "coletivos". Eles costumam amedrontar políticos e opositores ao governo vigente.