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França vive humilhação de não ter vacina contra Covid-19, depois de reduzir investimentos

As parcerias entre laboratórios públicos e grandes empresas privadas são muito menos desenvolvidas na França do que no exterior - iStock
As parcerias entre laboratórios públicos e grandes empresas privadas são muito menos desenvolvidas na França do que no exterior Imagem: iStock

05/02/2021 15h20

A crise sanitária revelou um declínio terrível da França na área da pesquisa científica. Os franceses têm encarado como uma humilhação não dispor de uma vacina contra a covid-19 desenvolvida em laboratórios do país, enquanto as outras potências mundiais - Estados Unidos, Grã-Bretanha, Alemanha, Rússia e China - ocupam essa liderança.

O país do cientista pioneiro da microbiologia, Louis Pasteur, fundador há mais de um século (4 de julho de 1887) de uma das instituições de pesquisa mais notáveis na luta contra doenças infectocontagiosas, se vê ultrapassado pelos concorrentes.

Na última década, a França privilegiou investimentos supostamente mais rentáveis, como na indústria de armamento e aeroespacial, inteligência artificial, neurociência e tratamentos contra o câncer, no caso da Medicina. Entre 2011 e 2018, o financiamento público para a pesquisa básica caiu 28% no país, enquanto aumentou 11% na Alemanha e 16% no Reino Unido.

As parcerias entre laboratórios públicos e grandes empresas privadas são muito menos desenvolvidas na França do que no exterior, o que limita a transformação das descobertas em produtos comercializáveis.

No final de janeiro, o Instituto Pasteur abandonou seu principal projeto de imunizante contra a Covid-19, após os resultados decepcionantes dos primeiros testes. Era um produto adaptado de uma vacina já existente contra o sarampo. O Pasteur mantém dois projetos: o de uma vacina anti-Covid administrável por via nasal, e outro à base da tecnologia do RNA mensageiro, que deu resultados nos fármacos da Pfizer/BioNTech e da Moderna. Mas esses estudos estão em fase preliminar.

Sanofi: "o fiasco francês"

Em dezembro, outro grande laboratório francês, o Sanofi, anunciou que seu projeto de vacina não estaria pronto até o final de 2021. O caso da Sanofi representa outra humilhação.

Reportagem da revista L'Express mostrou esta semana que, na corrida pelas vacinas contra a Covid-19, a Sanofi cometeu dois erros graves: para ganhar tempo, em vez de desenvolver seu próprio reagente, comprou o produto de um fornecedor que se mostrou incapaz de detectar a quantidade de antígenos presentes nas injeções. A empresa fez esta descoberta no final dos testes clínicos de fase 2 e teve de recomeçar do zero.

Segundo erro fatal: a Sanofi estava em negociação avançada com a Moderna, mas recuou diante do volume de investimento necessário e preferiu se associar, em 2018, a uma empresa de biotecnologia de porte menor, a Translate Bio, cuja especialidade são doenças raras. Resultado: a farmacêutica francesa largou atrasada e foi relegada ao posto de "fabricante" de seu principal concorrente, já que aceitou envasar o soro da Pfizer-BioNTech, enquanto torce para que seu projeto de vacina dê certo até o fim do ano.

A Sanofi sai de dez anos de governança errática, CEOs sucessivos que tomaram decisões contraditórias, como vender a área de imunoterapia, uma das mais promissoras no tratamento de doenças que vão do câncer à Covid-19. O atraso na criação de uma vacina contra o coronavírus é atribuído a erros estratégicos desse tipo.

A gigante farmacêutica é comparada ao Castelo de Versalhes do capitalismo francês. Durante muito tempo, a Sanofi liderou o ranking da Bolsa de Valores de Paris em volume de capitalização.

Nesta sexta-feira (5), a farmacêutica publicou um balanço excepcional: lucro de ? 12,3 bilhões em 2020, o que representa uma alta de 340%. Mas, paradoxalmente, está demitindo 1.700 empregados na Europa, a maioria na França, enquanto vai distribuir ? 4 bilhões em dividendos a seus acionistas.

Vacina da AstraZeneca a partir de sábado

O governo francês continua às voltas com o atraso na campanha de vacinação. Até quinta-feira (4), 1.687.026 pessoas receberam a primeira dose da vacina contra a Covid-19, o que representa 2,5% da população. As mulheres estão na frente na aceitação da vacina, numa proporção de 61% de todos os imunizados, contra 39% de homens. Mas ainda é muito pouco. Esse dado coloca a França perto do 40º lugar na lista de países que iniciaram a vacinação desde dezembro.

A União Europeia, que distribui as vacinas aos países membros, também tem 2,5% de cidadãos vacinados até agora. Mas o diretor-regional da Organização Mundial da Saúde (OMS), o belga Hans Kluge, disse nesta sexta que é preciso ir mais rápido e imunizar pelo menos 20% da população do bloco, antes que novas variantes surjam e se tornem mais resistentes, o que já vem ocorrendo. O belga vê a situação mais complicada atualmente do que em dezembro, quando chegaram as primeiras doses.

A partir deste sábado (6), a França começará a administrar a vacina da AstraZeneca/Oxford. Este terceiro imunizante em uso no país será destinado aos profissionais da saúde que ainda não receberam as vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna, e a pessoas de 50 a 65 anos, conforme recomendou a Alta Autoridade da Saúde (HAS, na sigla em francês).

O governo francês espera receber 5,5 milhões de doses adicionais das três vacinas até o final de fevereiro. A meta é ter 4 milhões de pessoas imunizadas, pelo menos com a primeira injeção, até o final do mês.