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Martins Pena, o "Molière brasileiro", inventou a comédia nacional

24/05/2022 10h07

Dois autores fundamentais para o desenvolvimento do teatro brasileiro provam que a obra de Molière era bem conhecida no Brasil desde o século 19. Martins Pena (1815-1848) foi apelidado de o "Molière brasileiro" e Artur Azevedo (1855-1908), que também se inspirou do francês, foi o grande homem do teatro nacional do final do século 19.

Martins Pena foi o primeiro "comediógrafo" brasileiro, considerado o fundador da comédia de costumes. Ele morreu muito jovem, aos 33 anos, e escreveu cerca de trinta farsas ou comédias, que faziam um retrato realista do Brasil. O apelido de "Molière brasileiro" foi dado por João Caetano, o grande ator romântico da época. Para João Roberto Faria, professor titular da USP, Martins Pena era o "Molière da baixa comédia, não o Molière das comédias de caráter".

O carioca não cita o dramaturgo francês, mas em suas peças mostra que conhecia bem sua obra e assimilou sua estrutura narrativa. "Martins Pena é o primeiro a dar provas do vigor dessa estrutura narrativa, desses tipos sociais, desses problemas que não são unicamente do Molière, mas são problemas universais e eternos, como ser avarento, como ser um doente imaginário, o deboche em cima da medicina, dos médicos, o marido cornudo", indica Walter Lima Torres Neto, professor de teatro da Universidade Federal do Paraná e especialista em teatro francês.

João Roberto Faria, um dos maiores especialistas de teatro no Brasil, não tem dúvidas de que Martins Pena, que era um homem culto, falava vários idiomas e foi adido da embaixada brasileira em Londres, leu Molière. "Alguns personagens típicos do Molière, como o médico charlatão, nós vamos ter numa comédia do Martins Pena chamada de 'Os três médicos', em que a alopatia vai ser ridicularizada, como nas peças do Molière. Isso é certo, o Martins Pena leu Molière e colheu ali algumas sugestões para as suas farsas", revela.

Walter Lima Torres Neto ressalta que Martins Pena conseguiu em uma de suas peças,"Os Ciúmes de Um Pedestre", fundir ou fazer uma síntese na primeira metade do século 19 das tendências anglófila e francófila que caracterizam o desenvolvimento do teatro brasileiro na segunda metade do século 20. "Nessa peça, o Martins Pena trabalha com uma temática que é muito cara ao Molière, que é o ciúme. No auge do seu ciúme, o pedestre revela que ele mataria, esquartejaria e diz: 'eu vi muitas vezes Otelo'. Juntou Otelo, que já era representado no Brasil, e a estrutura cômica da comédia que é própria do Molière".

A tradutora e professora da UFRJ Angela Leite Lopes sintetiza dizendo que Martins Pena "é sem dúvida nenhuma o primeiro autor do tão desejado teatro brasileiro. Ele é um grande autor de comédias do Brasil".

Artur Azevedo

Artur Azevedo (1855-1908) foi o grande homem do teatro nacional do final do século 19. Jornalista, escritor e dramaturgo, foi o sucessor de Martins Pena e de França Júnior. Deixou cerca de uma centena de peças de vários gêneros. Morou na França e assinou mais de trinta traduções e adaptações livres de peças francesas, encenadas no Brasil. Uma das traduções que fez foi da "Escola de Maridos", de Molière, na década de 1880.

Na opinião de João Roberto Faria, as formas da comédia utilizadas por  Azevedo em suas peças eram francesas, mas com uma referência maior a autores contemporâneos (do século 19). "Ele fez um teatro popular. Fez operetas, revistas de ano, comédias. Tudo isso tem base francesa, mas são os atores contemporâneos, as operetas de Offenbach, que foram modelo para ele. Ele foi para a França em 1883 e lá aprendeu como fazer uma 'Revue de Fin d'année', que é a revista francesa, e ele trouxe tudo isso para o Brasil", conta o professor da USP.

"A boa comédia europeia encontra aqui logo um campo fértil: Martins Pena, Artur Azevedo, França Junior. Molière foi um dos influenciadores, mas não sei se foi o único porque teve uma presença italiana forte", relativiza Angela Leite Lopes.

A atriz e diretora Clara Carvalho considera Artur Azevedo um dos grandes autores brasileiros e acha que ele se inspirou em Molière. "Ele bebeu tudo lá no Molière, que ele não era bobo nem nada. Os sainetes, o chistes, a cadência, a musicalidade. Acho que ele é uma espécie de patrono da comédia brasileira, junto com Martins Pena. Eles certamente sabiam ler todo o Molière. Essa influência ela está aí", pontua.

Clara Carvalho lamenta que as peças de Artur Azevedo sejam pouco montadas hoje em dia. Martins Pena também é pouquíssimo encenado. As peças do "Molière brasileiro", como "Judas" e "Sábado de Aleluia", são normalmente objeto de leitura para o vestibular, pondera Walter Lima Torres Neto. Às vezes, cai [nas provas] o "'Noviço' que é uma obra prima. Você lê o noviço, você está vendo Molière".