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Justiça francesa tenta mediação entre indígenas do Brasil e varejista Casino

09/06/2022 14h21

A primeira audiência do processo que organizações ambientalistas internacionais e indígenas brasileiras movem contra o varejista francês Casino, presente no Brasil pelo Grupo Pão de Açúcar, ocorreu nesta quinta-feira (9), em Paris. A Justiça de Paris propõe uma tentativa de conciliação entre as partes.

As entidades acusam a multinacional de não cumprir uma lei pioneira da França, de 2017, segundo a qual as companhias com mais de 5 mil funcionários têm um "dever de vigilância" quanto a violações ambientais e dos direitos humanos nas suas filiais pelo mundo. As organizações denunciam que o Casino, com suas marcas locais no Brasil e também na Colômbia, comercializa carne como resultado de desmatamento ilegal na Amazônia, incluindo em uma reserva indígena dos povos Uru-Eu-Wau-Wau.

"Se essa lei for mesmo cumprida, a responsabilidade do Casino ficará estabelecida", disse Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), em um protesto realizado em frente ao Tribunal Judiciário de Paris.

"Nós desejamos que o grupo Casino exerça uma rastreabilidade total da carne bovina vendida nos seus supermercados no Brasil e na Colômbia, de maneira a garantir que nenhum dos seus fornecedores, diretos ou indiretos, esteja implicado no desmatamento ilegal e a invasão de territórios indígenas. Já faz 18 meses que o grupo Casino tem a possibilidade nos fornecer provas de que faz isso, mas nós, atualmente, trazemos a prova no sentido contrário", explicou um dos defensores das organizações, Sébastien Mabile.

Casino garante aplicar rastreabilidade

Depois de uma advertência enviada ao grupo francês em 2020, as organizações entraram com um processo contra o varejista em março de 2021. Na audiência nesta quinta-feira, uma reunião de mediação judicial ficou acertada para julho. Se não houver acordo, o calendário processual será detalhado em setembro.

"Casino está satisfeito com a audiência. Ele luta, no seu nível, contra o desmatamento e está aberto ao diálogo, com já faz a cada dia no Brasil, com ONGs locais", apontou o advogado do grupo varejista, Sébastien Schapira, à RFI. "Casino já faz isso [o rastreamento total da cadeia bovina], de forma voluntária e colaborativa e além das suas obrigações legais. Nós utilizamos todos os meios tecnológicos para melhorar o monitoramento do gado", insiste.

A queda de braço entre os dois lados deve se focar nas provas de que produtores que atuam sobre áreas desmatadas ou ocupadas ilegalmente foram parar na cadeia de  fornecedores do frigorífico JBS, que vende a carne para o Pão de Açúcar. O Casino alega que até hoje não recebeu os detalhes sobre quais seriam esses pecuaristas irregulares, apesar de ter feito o questionamento no âmbito do processo.

Um relatório do Centro para Análises de Crimes Climáticos (CCCA), baseado em Haia (Holanda) e divulgado na semana passada, aponta que os produtores foram responsáveis pelo desmatamento ilegal de 50 mil hectares da Amazônia. O coordenador jurídico da Apib, Eloy Terena, ressaltou à RFI que imagens de sensoriamento remoto identificaram mais de 25 mil cabeças de gado em reservas dos Uru-Eu-Wau-Wau ilegalmente ocupadas, em Rondônia. Ele afirma que 37 fornecedores dessa zona entregaram carne para os frigoríficos da JBS e, na sequência, o produto parou nas lojas do Casino.

"Não existe um protocolo único no setor da carne, que reúna toda a cadeia, apesar de existirem vários diálogos entre o chamado G6, os três principais frigoríficos e os três principais varejistas, entre eles o GPA, que vem discutindo para tentar chegar num protocolo. Cada um acaba tendo um compromisso e uma prática próprios", aponta Fabíola Zerbini, da força-tarefa de rastreabilidade da carne da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura. A entidade reúne mais de 300 organizações, empresas e especialistas engajados com uma agricultura sustentável. A JBS e o Grupo Pão de Açúcar (GPA) integram a iniciativa.

"No Brasil, é difícil você trazer uma informação padronizada sobre a carne. Muitas ações vem acontecendo, sim, mas a cadeia da pecuária é enorme", salienta Fabíola, por telefone. "Tanto JBS, quanto Marfrig e quanto Minerva têm políticas, mas não para a gente afirmar que elas estejam cobrindo 100% da cadeia. Não estão. E essas políticas não estão sendo regulamentadas ou monitoradas por nenhum sistema que vá além do seu próprio", explica.

Alerta internacional

"A lei francesa faz com que as multinacionais se responsabilizem. No Brasil, as leis não são cumpridas, mas aqui na Europa elas existem e podem o ser", comenta Edilena Krikati, conselheira da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e também presente no protesto.

"Talvez as pessoas aqui desconheçam totalmente a realidade brasileira e dessas empresas europeias e francesas lá, em que a atividade parece legal, mas não é. Já é uma vitória o fato de chamarmos a atenção para isso e alertar as pessoas na Europa, mesmo que a Justiça talvez seja lenta", afirma.

Dinamam Tuxá reconhece que não foram criados mecanismos legais no Brasil para que a rastreabilidade do gado ocorra como deveria, mas avalia que essa falha não pode servir de desculpa para multinacionais estrangeiras não fazerem a sua parte para a proteção das florestas e dos povos indígenas no Brasil. "Eles podem até estar cumprindo a legislação brasileira, mas não estão cumprindo a francesa", acusa.