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Nova constituição do Chile: dúvidas e polêmicas permeiam o cenário político a um mês do plebiscito

04/08/2022 07h51

O Serviço Eleitoral chileno espera pouco mais de 15 milhões de eleitores em exatamente um mês. No domingo, 4 de setembro, cidadãos no Chile e fora do país aptos a votar devem escolher se aprovam ou rejeitam o texto da nova carta magna do país. Um processo que se iniciou em 2019 e que chega à sua reta final nos próximos 30 dias.

Camilla Viegas, correspondente da RFI em Santiago

Falta exatamente um mês para que os chilenos voltem às urnas para votar o projeto de uma nova constituição que busca mudar a Carta Magna atual do país, elaborada em 1980 durante a ditadura de Augusto Pinochet. No entanto, este pode não ser o fim do caminho, mas apenas mais uma etapa, pois, cercada de controvérsias, a campanha de aprovação não conseguiu capitalizar o apoio massivo que tinha antes do início do processo constituinte, e a maioria dos chilenos parece querer que o texto seja rejeitado em detrimento de um novo texto.

Esse capítulo da história do Chile que vemos agora começou ainda em 2019, mas foi em 25 de outubro de 2020 que os chilenos votaram a favor de um processo constituinte que fosse capaz de redigir uma nova constituição.

Cerca de 80% dos votantes escolheram a aprovação do processo constituinte (78% dos votos) e que este fosse liderado por uma assembleia constituinte (79% dos votos). Este modelo de órgão previa as eleições dos constituintes, um grupo de pessoas escolhidas especificamente para isso, sem a participação de partidos políticos, que enfrentam uma atual crise de credibilidade na nação sul-americana.

De olho no plebiscito

O plebiscito de saída, processo eleitoral que vai aprovar ou não a nova constituição no país, já está agendado e deve acontecer no dia 4 de setembro. A votação terá caráter obrigatório para todos os eleitores residentes no país, pouco mais de 15 milhões de pessoas.

Este será o primeiro processo com voto obrigatório desde que se estabeleceu no país o voto voluntário, em 2012, o que, segundo especialistas, pode gerar ainda mais dúvidas sobre o resultado.

 

 

As constantes polêmicas em que a assembleia constituinte esteve envolvida, somadas a alguns pontos controversos na proposta da nova constituição que redigiram, como a plurinacionalidade, os sistemas de justiça específicos para os povos indígenas e a eliminação do Senado, tornaram a opção do "rechaço" (rejeito) a que tem a maioria em todas as pesquisas de intenção de voto. Apesar disso, a diferença entre o "aprovo" e o "rejeito" tem diminuído nos últimos dias.

A pesquisa Criteria, divulgada nesta semana, por exemplo, revelou que a rejeição tem 45% das intenções de voto, contra 36% da aprovação. Isso representa uma queda de três pontos percentuais para a primeira opção e um aumento de cinco pontos para a segunda.

Essa pesquisa também mostra o que os chilenos acreditam que acontecerá se uma ou outra opção vencer. Para 57% dos entrevistados, os protestos vão acabar e a calma voltará às ruas se a aprovação vencer, enquanto que 58% acredita que a economia será beneficiada se a rejeição vencer.

Outra pesquisa, realizada pelo instituto Cadem, um dos mais prestigiados do país, apresenta números semelhantes: 48% para rejeição e 38% para aprovação, embora este estudo, pela primeira vez, tenha mostrado um empate técnico entre os chilenos que acreditam que uma ou outra opção pode ganhar.

"A medida que se conhece mais do texto [da nova constituição], que se reduzem as fake news e a desinformação, a opção pela aprovação sai fortalecida. Eu acho que esse aumento [de eleitores que dizem que votarão "aprovo"] tem a ver com isso", explica Claudia Heiss, acadêmica e chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade do Chile.

Ela completa: "Acho que as pessoas avaliam: 'Finalmente, depois de toda essa discussão e de todo esse ruído político e midiático, o que temos sobre a mesa?'".

Acusações de intervencionismo

Os resultados das pesquisas se estreitam à medida que o governo do esquerdista Gabriel Boric começou a participar mais ativamente da campanha, mesmo que de forma indireta. Como resultado deste maior protagonismo, Boric e os integrantes de seu governo foram acusados de intervencionismo eleitoral.

Na semana passada, a Controladoria anunciou a investigação de alguns casos, principalmente relativos a uma campanha de informação do Ministério da Secretaria Geral de Governo, chefiada pela ministra Camila Vallejo.

"A Controladoria tem que fiscalizar, mas não tenho dúvidas de que o espírito com que agimos não é em nenhum caso de intervencionismo, mas de divulgação de informações", disse Boric após o anúncio do Controlador Geral da República Jorge Bermúdez.

A lei chilena proíbe que funcionários do governo façam campanha ou gastem fundos públicos em favor de uma ou outra opção em eleições, a menos que não estejam em horário de trabalho.

A argumentação de Boric garante que há apenas a promoção de uma campanha de informação, para a qual distribuiu milhares de exemplares da proposta da nova Constituição. Por outro lado, seus opositores políticos o acusam de usar isso como pretexto para dar força à opção do "aprovo", que, como todos sabem, ele apoia.

Partidos de direita censuram Boric por fazer alusões ao "processo histórico" que está ocorrendo no país, aos supostos bloqueios legislativos que a oposição poderia impor se o "rejeito" vencer e por dar autógrafos, a pedido de cidadãos que o encontram na rua, em textos da proposta constitucional.

A polêmica chegou também fora do país, já que a empresa que representa o cantor porto-riquenho Chayanne pediu para que não fosse feito o uso de sua imagem em campanhas políticas. Isso aconteceu depois que a conta oficial do presidente Boric no Instagram postou uma foto do cantor com uma legenda favorável à aprovação.

 

 

"Honestamente não acredito que o tema do intervencionismo eleitoral influencie na votação [do plebiscito]. Creio que isso é mais uma disputa entre elites, entre figuras do mundo político, e não uma disputa cidadã. Eu acho que o governo tem sido cuidadoso no que se refere a informar sobre o conteúdo do texto e não favorecer uma opção em detrimento da outra. Não acredito que seja um tema que influencie no resultado do plebiscito de saída", disse a acadêmica Heiss.

Acordos difíceis

O resultado do plebiscito de 4 de setembro ainda é incerto, mas o que as pesquisas deixaram claro é que, seja qual for a opção vencedora, os chilenos anseiam por um novo texto constitucional. Isso também ficou claro por políticos da oposição e da situação, que têm emitido falas no sentido de que a Carta Magna de 1980 "está morta".

Os partidos do grupo político Chile Vamos, a coalizão de oposição de direita, divulgaram um texto há algumas semanas com 10 mudanças que prometem implementar "se o 'rejeito' vencer", entre as quais estabelece que o Chile é um "Estado social e democrático de direito".

Esse documento propõe uma nova Constituição e também reformas ao Tribunal Constitucional, que setores da esquerda dizem ser um dos principais motivos do bloqueio legislativo no Congresso.

No entanto, todos os olhos estão voltados para o grupo político no poder, cujas forças não conseguiram chegar a um acordo sobre se querem ou não que a nova Constituição seja modificada caso seja aprovada.

Líderes do Partido Comunista (PC, que faz parte do governo) disseram que qualquer discussão sobre a modificação do texto deve vir após o plebiscito, enquanto que outros políticos do partido pediram um acordo prévio, como forma de dar certeza e atrair eleitores indecisos.

O próprio Boric se referiu ao assunto esta semana quando, ao ser questionado em uma entrevista coletiva, disse que não apenas vê, mas que "é viável chegar a um acordo (sobre as reformas) antes do plebiscito". A frase, segundo a imprensa chilena, incomodou o PC.

Desde então, sua coalizão, a Frente Ampla, realizou uma série de reuniões para ver se é viável chegar a tal acordo nos poucos dias que faltam para o plebiscito.

Uma das opções em discussão é formar uma comissão parlamentar de harmonização ou implementação para avançar nos trabalhos sobre possíveis reformas que serão necessárias caso o texto seja aprovado, mas a desconfiança que existe entre os chilenos em relação ao Congresso pode significar que isso não é suficiente.

Nesse cenário, as próximas quatro semanas vão determinar se os grupos políticos que apoiam o "aprovo" conseguirão entrar em acordo e dar fôlego a esta opção. A questão é se eles têm tempo suficiente para isso.