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Tortura: Brasil viveu quatro anos de silenciamento e abusos do poder público, denuncia ministro na ONU

20/04/2023 17h07

Os últimos quatro anos foram de silenciamento da sociedade civil na área dos direitos humanos. A denúncia foi feita nesta quinta-feira (20) em Genebra, pelo ministro brasileiro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, que voltou a criticar a gestão do governo Bolsonaro nessa área. Durante dois dias, ele e outros representantes do Brasil responderam a mais de 50 perguntas dos peritos da ONU durante a 76ª Sessão do Comitê contra a Tortura da Organização das Nações Unidas (CAT/ONU).

Valéria Maniero, correspondente da RFI na Suíça

"A sociedade civil sofreu um processo de silenciamento na participação das políticas públicas nacionais nos últimos anos, em especial na área dos direitos humanos", disse Almeida, reafirmando a posição a favor do restabelecimento do diálogo em nível global a fim de fortalecer o combate à tortura no Brasil.

Na quarta-feira, em discurso na ONU, o ministro disse que o momento é de "reconstrução da política de direitos humanos" e de manter um diálogo honesto e construtivo com a ONU. "Nos últimos anos, tivemos à frente da condução do país um presidente da República que cultuava torturadores e incentivava toda sorte de abusos do poder público, particularmente daqueles que detém o monopólio do uso da força, contra a própria população", afirmou.

As perguntas aos representantes do Brasil foram feitas por peritos independentes internacionaistendo com o base o relatório enviado à ONU pelo governo Bolsonaro, mais de vinte anos após a apresentação do primeiro documento. Esse relatório, segundo Almeida, "não reflete de maneira honesta a realidade da prática da tortura em nosso país". Apresentado pelo governo anterior em 2020, sem contemplar o período de administração do próprio Bolsonaro, o relatório, de acordo com o ministro, é parcial e "omisso em relação aos desafios do combate à tortura no Brasil".

Os tópicos levantados durante a sessão tinham como temas problemas históricos, como questão racial, violência policial, tortura, políticas de memória, verdade, justiça e não repetição. O tom das respostas, segundo o ministro, ficou muito em cima do que se pretende fazer no futuro. "Eu acho que é olhar daqui pra frente. Diante dos problemas que nós temos, o que o governo está disposto a fazer pra gente avançar", disse ele, afirmando que o governo pretende também fazer uma grande articulação com o sistema de justiça para dar uma resposta ao problema do "sistema prisional brasileiro".

Brasil prende muito e mal, segundo ministro

Segundo Almeida, "estamos formando há muitos anos já fábricas de tortura, fábricas de produção de pessoas que não têm horizonte, não têm futuro. Nós prendemos muito, prendemos mal, do ponto de vista da maneira com que nós tratamos e banalizamos a prisão no Brasil. Então, eu acho que tudo isso vai ter que ser visto. Tem também o recorte racial que está muito evidente", afirmou o ministro, que já havia falado sobre esse tema em Genebra no mês passado. 

"A violência institucional no Brasil, particularmente contra a população negra e periférica, é fruto de uma longa trajetória de sucessivas violações, que remontam ao empreendimento colonial e à desumanização dos escravizados em nosso país. Não custa recordar que o Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão. Ainda hoje, a população negra, que constitui mais da metade de nossa população, é a principal vítima da violência policial, das execuções sumárias, do superencarceramento e da tortura", afirmou.

Mas segundo ele, está sendo inaugurado "um novo capítulo da história nacional e, como primeiro passo para curar nossas feridas, é necessário reconhecer os desafios diante de nós".

No discurso feito na ONU, Almeida defendeu que o sistema prisional brasileiro, que tem como alvo preferencial a população pobre e negra, deve ser revisto e humanizado. "Temos envidado esforços para o estabelecimento do chamado 'Projeto Mandela', com o objetivo de avançarmos no enfrentamento às sistemáticas violações de direitos humanos no sistema prisional brasileiro", disse. O projeto visa defender os direitos da população em situação de privação de Liberdade no que se refere ao devido processo legal, ao enfrentamento à tortura e à promoção de políticas de desencarceramento.

Outro tema que preocupa, segundo o ministro, está relacionado às crianças e adolescentes em situação de privação de liberdade. "A sociedade brasileira não pode simplesmente 'desistir' desses jovens e condená-los à estigmatização e à falta de perspectivas", insistiu.

"Estamos longe do ideal, mas nós pretendemos avançar"

O ministro se mostrou disposto a fazer bom uso das recomendações que vieram dos peritos para reforçar dentro do Brasil o compromisso com o combate à tortura.Ele afirmou que as perguntas do Comitê foram bem elaboradas, feitas por pessoas que, de fato, "se debruçaram sobre a situação dos direitos humanos no Brasil".

"Eventos como esse nos dão a oportunidade de nos olharmos no espelho, aprimorar a política de direitos humanos e reconhecer o problema que nós temos", elogiou Almeida.

À imprensa, ele disse que o governo de Lula da Silva está avançando na área e tem uma preocupação real. "Estamos muito longe do ideal, mas nós pretendemos avançar", avaliou, antes de criticar novamente o período de "profundo retrocesso, em que os avanços que estavam caminhando a passos lentos foram objetos de um ataque e de uma deliberada deterioração dos mecanismos estatais de prevenção e combate à tortura".