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"Putin drogou meu país com o ódio", diz opositor russo detido após criticar guerra na Ucrânia

08/06/2023 14h54

Ilya Yashin, um dos principais opositores ao regime de Vladimir Putin, foi condenado em dezembro a oito aos e meio de prisão por ter contestado a ofensiva russa na Ucrânia. A pena, uma das mais severas para esse tipo de processo, foi decretada após ele ter dito, ao vivo no YouTube, que o ataque à cidade ucraniana de Bucha representava um "assassinato de civis". Em entrevista exclusiva à RFI, ele segue denunciando a política do Kremlin.

Ilya Yashin, um dos principais opositores ao regime de Vladimir Putin, foi condenado em dezembro a oito aos e meio de prisão por ter contestado a ofensiva russa na Ucrânia. A pena, uma das mais severas para esse tipo de processo, foi decretada após ele ter dito, ao vivo no YouTube, que o ataque à cidade ucraniana de Bucha representava um "assassinato de civis". Em entrevista exclusiva à RFI, ele segue denunciando a política do Kremlin.

Anya Stroganova, da RFI

Próximo de Boris Nemtsov, rival de Putin assassinado em 2015 em Moscou, Ilya Yashin, 40 anos, também é ligado à Alexei Navalny, o mais famoso opositor russo, que também está detido. Parlamentar e presidente do conselho de deputados de Krasnosselski, em Moscou, Yashin foi preso em junho passado acusado de espalhar "informações falsas" sobre as ações do exército russo na Ucrânia, tendo sido condenado em dezembro. Seu processo foi acompanhado de perto pela opinião pública, já que ele foi um dos últimos oponentes russos proeminentes a não ter fugido de seu país, e que ainda estava em liberdade.

RFI: O que você está fazendo para não perder a coragem e aceitar a realidade ao seu redor na prisão ?

Ilya Yashin : Me inspiro na experiência dos dissidentes soviéticos e das pessoas que passaram pelos campos de concentração nazistas. Em suas memórias, todos aconselham a mesma coisa: entregar-se ao máximo ao trabalho intelectual, manter o senso de humor e visualizar o futuro. A coisa mais difícil atrás das grades é a sensação de tempo perdido. Aqui, os dias passam muito rápido. Por isso é muito importante gastar o tempo de forma útil, para que, ao adormecer na cela à noite, você possa dizer a si mesmo: não foi um dia perdido.

A minha estratégia é ter sempre papel e caneta. Estou constantemente anotando meus pensamentos, respondendo a inúmeras cartas de apoiadores e jornalistas, escrevendo manifestos políticos e antiguerra e preparando meus discursos para as audiências no tribunal. Além disso, quase desde o primeiro dia de minha prisão, comecei a coletar as histórias pessoais daqueles que conheci aqui. É uma espécie de obra literária, porque no destino desses prisioneiros se misturam drama, tragicomédia e histórias envolvendo policiais. Eu me banho em uma atmosfera sombria, mas há uma vitalidade, uma humanidade e até uma beleza particular. Quero compartilhar essa beleza e quero explorar esse mundo. Até comecei a fazer desenhos mais artísticos.

Para resumir, tento perceber a prisão não como uma privação de liberdade, mas como uma experiência antropológica, uma imersão em uma espécie de realidade paralela.

RFI: Você recebe visitas de amigos ou familiares?

I.Y.: Meus advogados me visitam regularmente na prisão, me trazem notícias e me apoiam moralmente. Minha mãe e meu pai também podem me visitar, mas ao contrário de meus advogados, eles precisam de autorização especial para cada visita. Muitas vezes alguns presos políticos ficam completamente isolados de seus parentes porque essas autorizações são recusadas. Alexei Navalny, por exemplo, não vê sua família há meses. Vladimir Kara-Murza [outro importante crítico do regime de Kremlin] não tem permissão nem para falar com seus filhos há mais de um ano. É uma verdadeira tortura. Sou tratado de forma diferente e meus pais vêm me ver na prisão cerca de uma vez por mês. Nós nos comunicamos através de um vidro meio embaçado, usando aparelhos telefônicos, mas isso já ma ajuda e me traz emoções mais positivas.

Quanto aos meus amigos e simpatizantes, só os vejo nos tribunais, quando eles vêm às audiências. Mas só podemos trocar sorrisos. Se alguém tentar falar comigo, é imediatamente escoltado para fora do tribunal.

RFI: Em seus textos escritos na prisão você fala muito dos outros detentos. Quem são esses presos? Há um perfil específico ou qualquer um pode acabar atrás das grades na Rússia?

I.Y.: De acordo com minhas observações, a prisão é, até certo ponto, uma amostra da sociedade russa. Claro, há reincidentes aqui para quem a prisão se tornou seu habitat natural. Eles são um tipo especial de prisioneiros que têm sua própria filosofia, seus próprios conceitos e um código de honra específico. Em qualquer sociedade e em qualquer país, imagino que exista uma casta para a qual o crime e a perda de liberdade que ele acarreta se tornam um modo de vida.

Mas há várias pessoas nas prisões russas que nunca imaginariam acabar atrás das grades. Há muitos empresários que se tornam presas fáceis para as autoridades. Eles são privados de seus negócios, alvos de processos criminais de fraude ou evasão fiscal e jogados na prisão. Há também muitos funcionários de baixo escalão acusados ??de corrupção, mas que na verdade são condenados pelas falhas de seus superiores. Para minha surpresa, também conheci muitos funcionários de alto escalão de diferentes administrações de segurança e defesa. Generais do Exército, do Ministério de Situações de Emergência e do Comitê de Investigação, policiais de alta patente e até oficiais do FSB [antiga KGB]. Os serviços de segurança russos estão passando por uma espécie de 'limpeza'. Acho que isso se deve ao fato de que Putin está irritado com os fracassos da Rússia na frente de guerra.

Mas, para responder à sua pergunta, sim, qualquer um pode acabar na cadeia. A justiça em nosso país é totalmente tendenciosa. É quase impossível usar a lei para se defender e nem todos conseguem resolver seus problemas informalmente com a polícia ou o FSB. Há muito tempo isso está enraizado na Rússia.

RFI: Qual é a sua relação com esses prisioneiros? Eles compreendem o seu engajamento?

I.Y.: A atitude dos internos em relação a mim é correta e até respeitosa. Todos entendem que não sou um verdadeiro criminoso e que estou preso por causa de minhas opiniões. Mesmo para aqueles que discordam de minha visão da situação política, o processo criminal contra mim e minha condenação continuam sendo vistos como algo chocante. Na Rússia, ladrões e assassinos são condenados com cinco a sete anos de prisão. Eu peguei oito anos e meio por algumas palavras ditas na internet. Nunca conheci ninguém na prisão que pensasse que isso era normal e certo.

Claro que há muitas conversas, mas são bastante inteligentes e calmas. As pessoas estão interessadas na minha opinião sobre as perspectivas econômicas, sobre o resultado da guerra, ou sobre a saída de Putin.

RFI: O que dizem os demais detentos sobre Putin e a guerra? É possível falar abertamente sobre esse assunto? E como é a sua relação com os que defendem o conflito ?

I.Y.: Não hesito em expressar minha opinião abertamente, mesmo sabendo dos riscos. É uma questão de princípio para mim:

acho importante defender o meu direito de dizer a verdade, mesmo na prisão.

Os presos ouvem com interesse e muitas vezes concordam. Não há muitos fãs de Putin na prisão, porque se você acabar atrás das grades, terá, por definição, uma relação antagônica com o governo e o Estado. Minhas observações, portanto, encontram terreno fértil. Muitas pessoas sabem que a Rússia é um Estado ineficiente e corrupto, que a arbitrariedade dos serviços de segurança é perigosa e ameaça a todos, e que o sistema judicial é caricatural e injusto.

No entanto, a guerra desperta sentimentos e emoções mais complexos. Poucas pessoas acham que valeu a pena começar. Mas, para alguns, a lógica é esta: uma vez que você entrou em uma batalha, você tem que lutar até a vitória a todo custo e depois se preocupar com quem estava certo ou errado. Mas independentemente de sua atitude em relação à guerra, a maioria dos meus interlocutores está preocupada e teme a possível mobilização de seus parentes e amigos, bem como a propagação de combates em grande escala em território russo. A frase que mais ouço é : "que isso acabe logo".

Também conheci pessoas que participaram da guerra diretamente. Um de meus companheiros de cela era um sargento de infantaria que lutou perto de Svatovo, em fevereiro de 2023. Ele agora é acusado de tráfico ilegal de armas e me contou muitos detalhes terríveis. Eu tentei persuadi-lo de que esta guerra era bárbara e criminosa, mas ele me respondeu que o exército agora oferece a possibilidade de ganhar mais dinheiro do que na vida civil. Mesmo assim, espero que meus argumentos tenham surtido algum efeito. Ele acabou me prometendo que, se algum dia voltasse para o front, seria apenas motorista e nunca mais pegaria em armas.

RFI: As celas nos centros de detenção estão equipadas com televisões e rádios.Como a presença constante de propaganda afeta você e outros presos?

I.Y.: Na Rússia, em algumas prisões, os prisioneiros são literalmente torturados pela propaganda do Estado.

Navalny, por exemplo, é forçado a ouvir os discursos de Putin o dia todo em sua cela.

Mas isso não existe na minha prisão e os presos podem escolher seus programas livremente. Normalmente, eles assistem a programas de entretenimento, partidas de futebol ou videoclipes. Às vezes também assistimos ao noticiário, mas quase todo mundo é cético quanto a isso. Pelo que percebi, os presos sabem o que dizem os propagandistas e poucos acreditam no que é dito.

RFI: Houve um momento de sua carreira política você começou a se preparar para uma eventual prisão?

I.Y.: Em 2012 eu escapei da prisão miraculosamente (...). Foi o ano de mais uma eleição presidencial de Putin e, ao mesmo tempo, o ano dos maiores protestos da história moderna da Rússia. Eu era um dos organizadores desses comícios e marchas que exigiam eleições justas, reformas democráticas e se opunham à usurpação do poder.

Putin perdeu a paciência e, na véspera de sua posse, lançou uma repressão brutal. Um porta-voz do Kremlin chegou a dizer que a polícia deveria "espalhar o fígado dos manifestantes na rua". Eu tive sorte e consegui escapar da prisão. Mas entendi que a pressão das forças de ordem se tornaria a norma na Rússia enquanto Putin estivesse no poder e que, em função da minha oposição ao governo, ser detido seria uma possibilidade e que seria apenas uma questão de tempo.

Após o início da guerra contra a Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022, percebi que o hipotético estava se tornando inevitável. Uma semana após a invasão, Putin assinou várias leis de censura militar que criminalizavam todo discurso antiguerra. A mensagem do governo aos seus críticos era muito clara: ou cale a boca, ou saia do país ou vá para a cadeia. Estou convencido de que nesta situação um político e patriota russo não pode ficar calado nem fugir. Ele deve ficar e falar a verdade sobre a guerra, o mais alto possível. Minha prisão era, portanto, inevitável.

RFI: O Ocidente pode ajudar as forças de oposição russas?

I.Y.: Não acho que esse seja o papel dos países estrangeiros. A democracia não pode ser introduzida de fora, isso só provocaria a rejeição da sociedade. A oposição deve aprender a negociar e cooperar sem a ajuda do Ocidente. A Rússia deve se tornar uma sociedade civil, percebendo que precisa [da democracia] não porque é aconselhada a fazê-lo do exterior. A democracia só criará raízes em nosso solo se for uma escolha consciente de nosso povo.

O Ocidente, a meu ver, deveria se concentrar em ajudar a Ucrânia a defender sua segurança e sua soberania. E, acima de tudo, ajudar os ucranianos a implementar as reformas do pós-guerra. A Ucrânia deve tornar-se uma vitrine da democracia e da liberdade europeias, um exemplo do progresso. Deve ser um exemplo positivo para todas as potências pós-soviéticas atoladas na autocracia.

RFI: Qual a sua opinião sobre o futuro da Rússia, a curto prazo?

I.Y.: Acho que a Rússia passará por um período de turbulência e que será muito difícil para ela sair de seu estado atual. Pode ser comparado a uma forte ressaca. Putin drogou meu país com imperialismo e ódio; os olhos da sociedade estão injetados de sangue. Mas Putin não é eterno e o país acabará ficando sóbrio. Haverá um momento de grande vergonha. Teremos que nos desculpar com os vizinhos cujas vidas arruinamos. Reconhecer nossos erros. Teremos que aturar olhares humilhantes e desconfianças. A estrada à frente é dolorosa e espinhosa. Mas não somos os primeiros a seguir este caminho: os alemães, depois da Segunda Guerra Mundial, conseguiram construir sobre as ruínas do regime de Hitler uma sociedade livre que é hoje um exemplo de justiça e humanismo.

Não sei se é o futuro imediato... A julgar pela história, acho que não está tão longe assim. Caberá à minha geração dar novamente vida à Rússia e trazê-la de volta à comunidade dos países civilizados.