Teatro: Avignon consagra diretora brasileira em festival marcado por fábulas do apocalipse e lutas contemporâneas

Dentro e fora dos palcos desta 77ª edição do Festival de Avignon, no sul da França, o nome da diretora Carolina Bianchi se fez presente. Incensada pela crítica de jornais como Le Monde e The New York Times, a brasileira multiplica apresentações após sua participação explosiva neste que é um dos maiores eventos de artes cênicas do planeta. A gaúcha foi uma das apostas certeiras da programação assinada pelo diretor português Tiago Rodrigues, marcada por equilíbrio entre diversidade e tradição.

Márcia Bechara, enviada especial da RFI a Avignon

Não é todo mundo que tem em sua plateia nomes como a atriz francesa Isabelle Huppert, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie ou a diretora francesa Phia Ménard, apenas para citar três divas do star system das artes presentes nesta edição do Festival de Avignon, e que fizeram questão de prestigiar a estreia da diretora brasileira Carolina Bianchi nesta que é considerada uma das maiores vitrines do teatro mundial. Com uma pesquisa cênica reconhecida pela cena independente no Brasil, Bianchi desponta depois de Avignon nos grandes palcos do teatro mundial, com convites que se estendem de grandes festivais europeus até os Estados Unidos, na outra ponta do Atlântico.

Fruto de uma pesquisa teatral aprofundada durante os dois anos de um mestrado em Amsterdã, Carolina conecta em "A Noiva e o Boa Noite Cinderela" a trajetória de vários artistas como Pippa Bacca, Regina Galindo, Ana Mendieta e Roberto Bolaño para falar de violência sexual e feminicídio. Durante o trabalho, a artista brasileira optou por atravessar a cena com o gesto radical e performático de tomar em cena uma dose de Boa Noite Cinderela, conhecida no Brasil como " a droga do estuprador". 

"É tão louco, tão bonito e tão incríver ver que, junto com meu coletivo e pela primeira vez, numa história de quase 10 anos, estamos trabalhando com dignidade. E eu posso dizer isso tranquilamente. Somos um coletivo que viemos desse cenário independente", conta ela, ao relembrar que já fez uma peça 'Lobo', com dinheiro de crowfunding, e 'O Tremor Magnífico' foi possível graças a um empréstimo bancário.

"A gente sabe como é o mundo do teatro: são ondas, nunca se sabe o que vai acontecer. Poder estar assim é lembrar qual é o trabalho que a gente está fazendo aqui. Essa peça teve um processo total de três anos, que envolveu mestrado, pandemia. Estamos construindo um campo de vocabulário, de linguagem em comum que acontece há 10 anos", ressalta Bianchi.

Apocalipse e combate

Ainda na programação desta edição do Festival de Avignon, não passam batidas as referências de diversos espetáculos a um possível apocalipse, causado in extremis pela força da natureza, como é o caso de "O Jardim das Delícias", do diretor francês Philippe Quesne. Em cena, diversas referências de tonalidades surrealistas evocam as alegorias fantásticas do pintor holandês Hieronymus Bosch em sua famosa pintura homônima.

Mas enquanto o quadro espelhava a reviravolta radical de uma era em transição, entre a Idade Média e o Renascimento, as fábulas de Quesne e sua companhia Vivarium Studio exploram mundos à margem do nosso, onde a fantasia e a utopia perturbam a relação entre a natureza e a cultura, ao mesmo tempo em que formulam respostas lúdicas às ameaças que nos cercam. Raios, trovões e projeções em mapping na famosa Carrière de Boulbon, pedreira a céu aberto onde Peter Brook estreou o seu lendário The Mahabharata, em 1985, anunciam ao público a chegada de uma possível extinção. 

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No menu imaginado pelo diretor Tiago Rodrigues para sua estreia em Avignon, consta uma série de combates sociais e identitários, como "Antígona na Amazônia", do diretor suíço Milo Rau, que faz uma nova e ousada transposição da tragédia grega representando-a na Amazônia brasileira, para denunciar a destruição da maior floresta tropical do planeta. A última etapa da criação da peça aconteceu no Brasil, onde foi filmada a reconstituição do massacre de Eldorado do Carajás, que ocorreu em 1996 contra militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no estado do Pará.

Já "Neandertal", do francês David Geselson, retraça, através de uma narrativa fictícia, o trabalho do ganhador do Prêmio Nobel Svante Pääbo sobre os Neandertais, falando sobre as relações entre memória, guerras contemporâneas e ciência. A peça dialoga bastante, no plano narrativo, com um espetáculo que realiza uma turnê de grande sucesso no Brasil: "Ficções", de Rodrigo Portella, protagonizado pela premiada atriz Vera Holtz, cujo roteiro foi criado a partir do best-seller "Sapiens - uma breve história da humanidade", do professor e filósofo Yuval Noah Harari, que vendeu mais de 23 milhões de cópias em todo o mundo.

Em 2023, o festival traz em sua programação oficial 44 espetáculos, assinados por uma multiplicidade de diretores vindos do mundo inteiro, e mais de 1,4 mil peças em sua mostra paralela, ocupando a cidadela medieval de Avignon, no sul da França, até o dia 24 de julho.

Para Tiago Rodrigues, mais do que nunca a realidade atualiza o teatro, como comentou em entrevista à reportagem da RFI Brasil. "Julgo que o teatro é essa assembleia humana, onde nos reunimos para pensar o mundo com prazer. Porque é um jogo, o teatro. Há uma dimensão lúdica, de fruição, de prazer de estar em contato com uma obra artística, que não implica ser cego às injustiças do mundo, às desigualdade - pelo contrário, é o prazer de poder inventar a partir de uma observação da vulnerabilidade humana", salientou.

"Penso que esta edição do Festival de Avignon é muito marcada pela capacidade que os artistas têm de olhar vulnerabilidades coletivas ou individuais, e olhando para elas, encontrar um território fértil para a criação", sublinhou Rodrigues.

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