Prisão de usuário de maconha favorece mão de obra para o tráfico, dizem especialistas

Não se trata da descriminalização das drogas, mas da diferenciação entre usuário e traficante quanto à posse de maconha. A baliza determinada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de 40 gramas, também não é definitiva porque outros fatores podem qualificar o dono da droga e, politicamente, porque pode haver ainda desdobramentos. Ainda assim, analistas ouvidos pela RFI afirmam que o resultado do julgamento tem impacto importante, especialmente entre jovens negros.

Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília

O especialista Cássio Thyone, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, destacou que o atual modelo de combate às drogas, com o encarceramento em massa, não tem mostrado resultado. Mas acha que o Legislativo, com a formação conservadora de hoje, pode mudar o entendimento do STF e arrastar o debate:

"Pelo momento, pelo que já apareceu na mídia, vejo que deve haver uma reação do Congresso. A própria tramitação da PEC que trata da criminalização para qualquer quantidade de droga vai se antepor a esse tema e, se aprovada, pode voltar a ser questionada no STF. É um debate que ainda pode levar muito tempo", explicou.

"Os estudos mostram que essa repressão não resultou em redução do consumo e o que chamamos de guerra contra o tráfico também é bastante questionável. As pessoas são muitas vezes mortas em comunidades, com um número elevado de letalidade policial, etc. Enquanto isso os grupos do crime organizado têm ampliado sua atuação", concluiu Thyone.

Critérios ainda não absolutos

O advogado do EducAfro Brasil, Marlon Reis, recordou que os ministros ressaltaram outros elementos, e não apenas a quantidade de droga, que pesam na definição de usuário ou traficante. Reis cita a posse de balança de precisão ou caderneta com nome de clientes com a pessoa detida. "Não se estabeleceu uma régua linear e absoluta. Quem estiver portando substância com peso inferior a 40 gramas, por exemplo, num caso concreto, pode, sim, estar relacionado à prática de tráfico. A princípio não está, mas é apenas uma presunção relativa."

Ele acredita que ao serem fixados os parâmetros, a avaliação deve ser mais da justiça do que do legislativo. "Essa decisão é eloquente, didática, precisa necessariamente ter um impacto sobre a atividade policial. E acho que é uma decisão claramente do mundo judicial. Não faz sentido a lei substituir o papel do juiz na definição do que é ou não ilegal, na análise de caso a caso", defendeu Reis.

Aspecto Racial 

Um dos principais argumentos em favor da atuação do Supremo nesse caso é o aspecto racial que permeia o tema. O advogado Caio Cortez, especialista em direito penal e de relações raciais, avalia ser preciso estabelecer limites diante de um sistema que sempre puniu muito mais pretos que brancos, em qualquer circunstância.

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"Diversas pesquisas, inclusive uma que foi mencionada pelo ministro Alexandre Moraes no seu voto, mostra que jovens negros tendem a ser presos por tráfico com mais frequência, mesmo quando são pegos uma quantidade de droga inferior do que as aprendidas com pessoas brancas", sublinhou o especialista.

"No estado de São Paulo, por exemplo, uma pesquisa listou que 31 mil pessoas pardas e pretas foram enquadradas como traficantes em situações semelhantes às que brancos foram tratados como usuários. Existe um disparate aí", exemplificou Cortez, que também destacou que a mudança não atrapalha a atuação da polícia:

"A pessoa será encaminhada até autoridade policial, a droga vai ser apreendida, com a diferença de que não será mais lavrado o termo circunstanciado de natureza penal. E, fora isso, os procedimentos serão os mesmos. A pessoa terá de comparecer em juízo a fim de que sejam aplicadas as sanções administrativas previstas na legislação", descreveu Cortez.

Impacto na vida de jovens negros

À RFI, o advogado e fundador do JusRacial, Hédio Silva Júnior, analisou que a decisão do Supremo deve ser o início de mudanças necessárias para evitar a discriminação racial de todo o processo, da abordagem policial até o julgamento pelo judiciário.

"Essa decisão do STF impacta muito a vida dos jovens negros. Porém, repare, a diferença de tratamento entre negros e brancos acontece também com outras drogas, como cocaína, crack. A gente precisa começar a fixar critérios que diminuam a arbitrariedade, a tirania na aplicação da lei penal, que é uma aplicação seletiva. Quantos jovens negros são condenados no Brasil por crime de roubo, sendo inocentes? Se há aplicação seletiva na lei de drogas, há em toda lei penal", afirmou Hédio Silva Júnior.

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O especialista avalia ainda que a prisão em massa de usuários de maconha não ajudou a combater o tráfico, ao contrário, garantiu mão de obra certa para o crime organizado. Para ele, "são jovens que não têm vinculação com facção criminosa, pessoas de periferia, de famílias com baixíssima renda, quando tem renda, que caem no sistema penal e são presas fáceis do crime organizado".

"Então você tem uma cadeia de consequências e efeitos nefastos", observou o representante do JusRacial ao relatar o modelo que prevaleceu até agora no sistema policial.

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