Soldados canibais: "atrocidades" cometidas no Mali e Burkina Faso não são inéditas, dizem especialistas

A divulgação nos últimos dias de vídeos de soldados envolvidos em práticas canibais no Mali e em Burkina Faso gerou medo e indignação. Mas essa violência extrema também levanta questões sobre a natureza desse fenômeno. 

Baptiste Condominas, da RFI

Recentemente, vários vídeos circularam nas redes sociais mostrando soldados no Burkina Faso e no Mali cometendo atos de canibalismo. Em uma das imagens, os soldados "anunciam" que vão comer o fígado de sua vítima, antes de colocar o ato em prática. As cenas mostram os militares cozinhando órgãos e embrulhando um dedo dentro de um papel alumínio para guardar de "lembrança". 

Na semana passada, outros casos semelhantes foram relatados, segundo o jornalista da RFI especializado em África, David Baché.

Em um comunicado, o exército do Mali afirma que "se distanciou" dessas práticas, que descreveu como "atrocidades". Atos que "constituem um crime grave, um crime de guerra que viola a dignidade humana", segundo a pesquisadora Caroline Brandão, especialista em direito internacional humanitário da Cruz Vermelha Francesa.

Apesar de chocantes, esses atos infelizmente não são inéditos, ressalta. "Durante a Segunda Guerra Mundial, houve decisões de tribunais militares, particularmente nos Estados Unidos e na Austrália, que condenaram essas práticas", lembra.

Canibalismo de vingança

Mesmo que permaneçam raros, esses crimes pontuam os conflitos do século XX. Há relatos durante as guerras civis em Serra Leoa e na Libéria, em meio à crise no leste da RDC, em conflitos na Colômbia ou na China, no regime do Khmer Vermelho no Camboja, ou ainda no califado do grupo Estado Islâmico, no Iraque ou na Síria. 

Os testemunhos de sobreviventes, depoimentos dos autores dos crimes e até imagens obtidas mostram as atrocidades que o antropólogo Mondher Kilani, da universidade de Lausanne, descreve como "canibalismo de vingança".

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Segundo ele, o termo pode ser empregado porque não se trata de um "canibalismo de sobrevivência" que pode levar indivíduos ou populações, diante da escassez, a recorrer aos últimos meios de subsistência disponíveis. 

Também não se trata de um "canibalismo ritual", uma prática cultural de certas sociedades tradicionais que faz parte de "uma relação de reciprocidade", onde o outro é devorado "para construir a sua própria identidade", com a ideia de integrar a sua força e reconhecer o seu valor, explica Kilani.

O "canibalismo de vingança" tem um objetivo completamente diferente, explica. Para ele, trata-se de uma "lógica predadora", que visa a "destruição pura e simples, a aniquilação total do inimigo através do tratamento desumano de seu corpo". A vítima se torna um "objeto e é excluída do mundo do carrasco". No assassino que transgride todas as regras, há "o desejo do poder", diz Mondher Kilani.

Há também "a intenção de espalhar o terror, aterrorizar a população civil e desacreditar os Exércitos", diz Caroline Brandão. Especialmente porque esses crimes atrozes são filmados, depois transmitidos e retransmitidos para serem visualizados pelo maior número possível de pessoas. 

Dramatização do ato de guerra

O antropólogo Mondher Kilani vê nisso uma "dramatização do ato de guerra e vingança", em um século marcado por imagens violentas e conflitos particularmente sangrentos.

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O pesquisador não vê nesses atos o "ressurgimento de práticas tradicionais", mas a tradução de "violência extrema ligada às guerras modernas". Guerras "totais" e de "aniquilação", cuja intensidade, tecnologias, escala e cobertura midiática têm contribuído para a expressão de uma violência desenfreada.

Mas se tais crimes foram registrados durante os conflitos do século XX, "não é específico das guerras modernas", diz o antropólogo Bruno Boulestin, da Universidade de Bordeaux. "Isso existe em todas as épocas", explica o pesquisador, que acredita que há "uma tradição muito forte de canibalismo de guerra em todo o mundo" e que essas práticas "são generalizadas, sem serem sistemáticas".

Além dos atos excepcionais relacionados à fome, ele lembra que o canibalismo costuma ser dividido em duas categorias: o endocanibalismo, que consiste em comer membros do próprio grupo social, muitas vezes associado a ritos fúnebres, e o exocanibalismo, onde os estrangeiros são consumidos. No entanto, isso geralmente está ligado a conflitos armados, e as razões para isso são "a destruição do inimigo, a indignação e o desejo de aterrorizar".

"Não é fácil comer o próximo"

E se muitas vezes há uma ritualização desses atos, é "porque não é evidente comer o próximo", lembra Bruno Boulestin. O ritual organiza, enquadra e estabelece um simbolismo, uma forma de significado. O antropólogo também enfatiza que a guerra, mesmo a guerra moderna, é sempre ritualizada, por meio de códigos ou cerimônias.

Sem contar que, em um contexto de confrontos, muitos obstáculos socioculturais tendem a ser removidos. Fenômenos grupais, liberdade de regras, perda de pontos de referência e sentimento de poder são alguns dos fatores aos quais podem ser adicionadas as ordens da hierarquia, porque a questão da responsabilidade também pode ser colocada. 

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"Existe uma estrutura que permite isso", diz o antropólogo Mondher Kilani, para quem esses atos não são obra de "monstros". "Os carrascos nunca estão sozinhos, há uma ideologia por trás disso - que pode ser nacionalista, religiosa, vingativa - e um discurso de legitimação", mesmo que essa ideologia ou seus inspiradores não afirmem sê-lo.

Do ponto de vista do direito internacional, "toda a cadeia de comando é responsável, quem comete o ato, mas também quem dá a ordem", explica a jurista Caroline Brandão. Esses crimes minam a dignidade de um corpo, mas também "da família e de toda a humanidade", constituindo, se comprovados, um ataque aos direitos humanos.

Mas isso infelizmente "não é surpreendente", por mais insustentável que pareça, porque "comer o inimigo faz parte das práticas dos conflitos armados", reitera o antropólogo Bruno Boulestin.

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