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O prazer de jogar coisas fora

O jornalista Jorge Ramos, colunista do New York Times - Cindy Karp/NYT
O jornalista Jorge Ramos, colunista do New York Times Imagem: Cindy Karp/NYT

18/06/2015 00h01

Primeiro o óbvio. Estamos cercados de coisas, e portanto temos duas opções que nos definem como pessoas: acumular coisas inúteis ou jogá-las fora. Eu sempre preferi a segunda opção. "The New York Times" relatou em 2013 que até 5% da população é "hoarder" [acumuladora], ou seja, sofre de uma recém-diagnosticada doença clínica que as leva a juntar coisas sem conseguir livrar-se delas. Eu devo sofrer exatamente do contrário.

Quando caminho por minha casa, sou uma espécie de aspirador ambulante. Tudo o que sobra, estorva ou não foi usado em mais de um ano vai direto para a lixeira. As quartas-feiras são dias de felicidade; é quando passa o caminhão do lixo e leva todas as coisas grandes que não cabem em uma sacola plástica. Às vezes me escondo atrás de uma parede ou vejo através das janelas o momento --libertador-- em que todas as coisas que não quero caem na barriga do caminhão e são trituradas sem misericórdia.

Os EUA são um país que vive fundamentalmente do consumo interno, isto é, das coisas que seus cidadãos compram e vendem. Isso significa que quase toda a sociedade é estruturada em torno da frenética atividade do consumo. Consumir implica, antes de mais nada, adquirir e descartar. Em média, cada americano joga no lixo mais de 1,8 quilo por dia (segundo a Agência de Proteção Ambiental). Mas, sem dúvida, tendemos a guardar mais coisas do que jogamos fora.

Livrar-se das coisas é uma arte. Primeiro é preciso identificar o objeto a se descartar, depois avaliar se serve para alguma coisa ou tem um significado emocional e, em seguida, fazer o esforço de desfazer-se dele. Guardamos muitas coisas porque é mais fácil devolvê-las ao mesmo lugar do que jogá-las.

Eu gostaria de descartar mais coisas, mas nem sempre me atrevo. Em minha última mudança encontrei um par de gravadores de som cujos cassetes nem são mais fabricados. Tenho montes de CDs com minhas reportagens em formatos que não existem mais. E lembranças --cartões, fotos, presentes, relíquias, máscaras africanas, pedaços do Muro de Berlim e até uns bonecos de Chiapas-- que há tempo deixaram de significar algo. Isso é o mais fácil de jogar fora: objetos que em um momento tiveram valor afetivo e que o tempo transformou em simples pedaços de papel ou de madeira. Em que momento algo valioso deixa de sê-lo?

A escritora japonesa Marie Kondo, em seu livro "A Mágica da Arrumação", propõe limpar completamente sua casa em um só dia, descartar por categorias (não por quartos) e só guardar o que lhe causa alegria. "Gera prazer? Nesse caso, guarde", escreve. "Se não, jogue fora." Sua filosofia de limpeza é simples: limpar sua casa limpará sua mente e o libertará. Mas não é fácil.

Há cinco anos minha contadora me envia por e-mail minha declaração de impostos, e cada um desses documentos está devidamente guardado e copiado. Mas, diante do justificado temor que todo habitante dos EUA deve ter do IR, tenho caixas e caixas de recibos, notas e comprovantes desde 1983. O que faço com esses malditos papéis? Jogo fora?

A velocidade com que a tecnologia avança acelerou o ritmo com que guardamos coisas inúteis. Para começar, quase tudo o que tem um cabo é obsoleto ou está prestes a sê-lo, desde computadores e telefones até televisores.

Também há lixo cibernético. Todas as noites saio do escritório depois de apagar meus e-mails. Apago todos, menos os que preciso responder no dia seguinte. Mas tenho colegas de trabalho que vivem inundados por milhares de mensagens que não se atrevem a apagar, "caso algum dia precise delas". (Não cito seus nomes para evitar humilhações públicas.) Passam anos acumulando-os e não se atrevem a apertar o salvador botão "Delete".

Meu pior pesadelo é a Pink House. É como chamamos a república de estudantes onde vivi no início dos anos 1980, perto da Universidade da Califórnia em Los Angeles, cujo dono passou décadas guardando tudo, desde jornais até caroços de abacate. Acho que tinha uma doença que o impedia de se desfazer das coisas. Morreu no meio de montanhas de lixo, mas, sim, protegido pelo escuro e malcheiroso mundo que construiu pedaço a pedaço.

O oposto foram uns monges que vi recentemente no aeroporto de Varanasi, na Índia, que subiram no avião sem sapatos. Suas longas túnicas eram sua única posse. E me atrevo a dizer que pareciam felizes e livres. Mas duvido que o princípio budista de não desejar mais (para não sofrer) possa ser aplicado a nossa sociedade ocidental.

Afinal, advertem os psicólogos, é uma questão de equilíbrio. Nem muito muito nem tão tão. Mas nosso problema é novo na história: produzimos e temos tantas coisas que, se não as descartarmos razoavelmente depressa, morreremos soterrados por elas.