Dinheiro e moral
Ultimamente, a desigualdade social voltou a ser um tópico das conversas nos Estados Unidos. O movimento Occupy Wall Street deu visibilidade a essa questão, e o Departamento Congressual do Orçamento forneceu dados relativos ao aumento da desigualdade na sociedade norte-americana.
E o mito de uma sociedade sem classes foi desmascarado. Entre os países ricos, os Estados Unidos se destacam por serem o país no qual é maior a probabilidade de que o status social e econômico seja herdado.
Portanto, nós sabíamos o que aconteceria a seguir. De repente os conservadores estão nos dizendo que o problema não diz respeito de fato a dinheiro, e sim a uma questão de ordem moral. Esqueçam a estagnação salarial e outros fenômenos similares.
Segundo os conservadores o problema real é o colapso dos valores familiares da classe trabalhadora, e isso, de alguma forma, é culpa dos liberais.
Mas será que essa é de fato uma questão de ordem moral? Não, todo esse problema gira basicamente em torno da questão do dinheiro.
É verdade que o novo livro que inspira a reação conservadora, “Coming Apart: The State of White America, 1960-2010” (algo como,
“Fragmentação: A Situação da População Branca dos Estados Unidos de 1960 a 2010”), de Charles Murray, aponta algumas tendências notáveis. Por exemplo, entre os norte-americanos brancos que têm até um nível de educação secundário, os índices de casamento e de participação masculina na força de trabalho caíram, enquanto que os índices de nascimentos fora do casamento aumentaram.
É evidente que a classe trabalhadora branca norte-americana vem passando por modificações que não parecem ser muito boas.
Mas a primeira pergunta que deve ser formulada é: a situação anda assim tão ruim na área de valores e moral? Murray e outros conservadores muitas vezes parecem assumir que o declínio da família tradicional tem implicações terríveis para a sociedade como um todo. É claro que esse é um ponto de vista antigo. Ao ler Murray, eu me recordei de uma crítica similar anterior, o livro “The De-Moralization of Society: From Victorian Virtues to Modern Values” (“A Des-moralização da Sociedade: Das Virtudes Vitorianas aos Valores Modernos”), que abordou mais ou menos o mesmo assunto, alegando que a nossa sociedade estaria desmoronando e prevendo uma desagregação social ainda maior à medida que as virtudes vitorianas continuassem a ser erodidas.
Mas a verdade é que alguns indicadores de disfunção social melhoraram drasticamente, ainda que a família tradicional continue a perder terreno. Até onde eu sei, Murray jamais menciona nem a queda do índice de gravidez de adolescentes em todos os grupos raciais a partir de 1990, nem a redução de 60% dos crimes violentos a partir de meados da década de noventa. Será possível que a família tradicional não seja tão crucial quanto se pensava para a coesão social?
Entretanto, sem dúvida há algo acontecendo com a família tradicional da classe trabalhadora. A questão é saber o que. E, francamente, é impressionante constatar a rapidez e a satisfação com que os conservadores descartaram uma resposta aparentemente óbvia: uma redução drástica das oportunidades de emprego disponíveis para os trabalhadores do sexo masculino de nível de escolaridade mais baixo.
A maioria das estatísticas existentes sobre as tendências salariais e de renda nos Estados Unidos diz respeito aos domicílios e não aos indivíduos, o que faz sentido para alguns objetivos. Mas, quando presenciamos um aumento de renda modesto para as camadas inferiores da pirâmide salarial, temos que entender que todo – isso mesmo, todo – esse aumento diz respeito às mulheres. Isso porque há mais mulheres no mercado de trabalho e, ao contrário do que ocorria no passado, os salários delas não são mais tão menores do que os dos homens.
No entanto, para os trabalhadores do sexo masculino com baixo nível de escolaridade, essa tendência tem sido totalmente negativa. Ao fazermos um ajuste para a inflação no período, constatamos que os salários iniciais para os trabalhadores do sexo masculino que concluíram o segundo grau sofreram uma queda de 23% desde 1973. Ao mesmo tempo, os benefícios empregatícios foram varridos do mapa. Em 1980, 65% dos indivíduos recém-formados na escola secundária que trabalhavam no setor privado contavam com benefícios de saúde, mas em 2009 esse número havia caído para apenas 29%.
Assim, nós nos transformamos em uma sociedade na qual os homens com menor nível educacional enfrentam uma grande dificuldade para encontrar salários decentes e benefícios trabalhistas. Mas, sob a ótica conservadora, nós deveríamos de alguma forma nos mostrar surpresos pelo fato de esses homens terem uma menor probabilidade de participarem da força de trabalho ou de se casarem. E também deveríamos concluir que tem que ter havido um misterioso colapso moral provocado pelos arrogantes liberais. E Murray nos diz ainda que os casamentos na classe trabalhadora, quando acontecem, tornaram-se menos felizes. Por mais estranho que pareça, problemas financeiros provocam fenômenos desse tipo.
E mais uma coisa: o verdadeiro vencedor nesse debate é o distinto sociólogo William Julius Wilson. Em 1996, no mesmo ano em que Himmelfarb estava lamentando o nosso colapso moral, Wilson publicava o livro “When Work Disappears: The New World of the Urban Poor” (“Quando os Empregos Desaparecem: O Novo Mundo dos Pobres Urbanos”), no qual ele argumenta que grande parte da desagregação social presenciada entre os negros norte-americanos, e cuja causa é popularmente atribuída ao colapso de valores morais, foi causada na verdade pela falta de empregos para a classe operária nas áreas urbanas. Se ele estiver certo, seria de se esperar que algo de similar ocorresse se um outro grupo social – digamos, os trabalhadores brancos – se deparassem com uma perda comparável de oportunidades econômicas. E foi isso o que aconteceu.
Portanto, nós temos que rejeitar a tentativa de desviar o debate nacional sobre a disparada da desigualdade para os supostos fracassos morais dos norte-americanos que estão caindo na pobreza. Os valores tradicionais não são tão cruciais quanto os conservadores querem dar a entender. E, ademais, as mudanças sociais que estão ocorrendo na classe trabalhadora dos Estados Unidos são basicamente a consequência – e não a causa – da disparada da desigualdade econômica.
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